Autor: Alberto Schiesari(*)
A questão referente a algum tipo de compartilhamento de moedas na América do Sul está em pauta. Preocupa o mercado financeiro, assusta a população leiga no assunto, entusiasma esquerdistas desavisados e, ao menos até agora, silencia os outros blocos econômicos (a concorrência) que há no resto do planeta.
Na verdade, compartilhamento de moedas em países diferentes pode ser algo com diversas características, em diferentes intensidades. Todos conhecem um pouco o exemplo do Euro, mas esse não foi o primeiro caso de algum tipo de compartilhamento. Por enquanto, foi o único que foi feito observando-se os diversos aspectos envolvidos numa operação dessa magnitude.
Historicamente, há outros exemplos em que foi feita opção por algum tipo de compartilhamento. Desde antes da Era Cristã, os romanos faziam os povos conquistados usar o mesmo tipo de moeda vigente em Roma. Era a tática do fórceps, do dominador sobre os dominados. Em tempos mais recentes, pode-se citar dois exemplos no século 19, em que houve experiências importantes de compartilhamento de moedas. Não foram forçadas, e sim negociadas.
Uma delas foi a Scandinavian Monetary Union (União Monetária Escandinava), iniciada pela Dinamarca e Suécia em maio de 1873, e com a adesão da Noruega em 1875. Essa união perdurou até a Primeira Guerra Mundial. Neste caso, cada país usava sua própria moeda, mas foi estabelecido um padrão de equivalência que permitia fácil conversão de uma moeda para outra. De forma semelhante ao que ocorreu no Brasil durante o Plano Real, embora neste caso as duas moedas fossem a antiga (Cruzeiro Real) e a nova (Real) de um mesmo país.
Outro exemplo foi a criação do LMU (Latin Monetary Unit - Unidade Monetária Latina), sistema formado em 1865, e que contou com a participação inicial da França, Bélgica, Suíça e Itália, esta última recém unificada (1861). Em 1867 a Grécia se uniu aos quatro países membros fundadores da LMU, e posteriormente diversos outros países aderiram formal ou informalmente ao sistema.
Tanto no sistema escandinavo quanto no LMU não havia uma única moeda, mas um padrão comum que estabelecia a proporção de equivalência entre as moedas dos países membros, o que permitia fácil conversão de uma moeda para outra.
O objetivo principal do compartilhamento monetário é facilitar e agilizar o pagamento e o recebimento de transações de compra e venda de bens e serviços. Os cidadãos igualmente se beneficiam, pois podem circular em outros países sem a necessidade de efetuar operações de câmbio, visto que as moedas dos países membros são aceitas normalmente em todos os países do sistema. É como se brasileiros fossem à Argentina e pagassem lojas e restaurantes com cédulas de Real, ou argentinos viessem ao Brasil e pagassem suas despesas na padaria usando as cédulas do Peso argentino.
Isso obviamente fomenta indústria, comércio e serviços entre países, e simplifica o intercâmbios comercial, mas esse processo é acompanhado de vários aspectos que podem atuar de forma negativa, muitas vezes beneficiando um país, e prejudicando outro.
Hoje em dia, por exemplo, transações de envio e recebimento de pagamentos entre países (ou blocos de países) sem laços de compartilhamento monetário, sofrem duas taxações, nascidas de duas conversões necessárias e consecutivas, que determinam quanto uma moeda vale em relação à outra. A moeda de origem é convertida para dólares, e o valor em dólares é convertido para a moeda de destino. Para cada conversão é cobrada uma taxa, e um dos principais pontos negativos é que ambos os lados ficam à mercê das flutuações do dólar, ou seja, da política e da economia norte-americanas.
O compartilhamento pode existir apenas para operações de comércio exterior, pode abranger ou não o uso e aceitação da moeda de um país em território estrangeiro, pode ser baseado (ou não) na existência de moeda única aceita universalmente por todos os países membros. Neste último caso, em geral todos eles podem fazer a cunhagem da moeda (a "fabricação" do dinheiro).
Nos casos em que há moeda única, os países do acordo deixam de usar a moeda anterior ao compartilhamento e passam a usar somente a moeda única. Quando da implantação do euro, a França deixou de utilizar o franco, a Alemanha deixou de utilizar o marco, a Grécia não mais utilizou o dracma.
Com moeda única, um país pode oferecer um produto ou serviço por determinado valor, e outro país do grupo pode cobrar outro valor por produto similar ou igual. O objetivo é haver concorrência leal entre os participantes do acordo.
Mas, para que isso seja possível e produza resultados justos, é importante que um vasto conjunto de medidas sejam tomadas antecipadamente.
Quando é formado um bloco econômico baseado em algum tipo de compartilhamento de moeda, sempre há nesse bloco países com economia mais evoluída e outros com economia mais frágil. Há países ricos e países mais pobres. O PIB per capita apresenta grande variação entre um país e outro.
No caso do Euro, antes da unificação da moeda houve um grande conjunto de medidas preparatórias.
Houve ajustes na área política, foi formada a União Europeia, com dirigentes e parlamento próprios. Houve adequação de legislação, ao menos no âmbito comercial e fiscal. Houve um intenso trabalho de padronização de requisitos de qualidade para todos os tipos de produtos e serviços. Houve, por exemplo, dificuldades para que o queijo gorgonzola pudesse ser livremente comercializado entre os países da União Europeia, devido aos seus "componentes" muito heterodoxos... Houve a redefinição de normas técnicas.
Houve necessidades de adequação dos sistemas de aposentadoria. Houve ajustes no sistema político e na legislação de praticamente todos os países da União.
Houve a reformulação de procedimentos aduaneiros. Houve a possibilidade de países do bloco europeu não aderirem à moeda “única”, o euro. A Inglaterra e os países nórdicos, por exemplo, preferiram continuar com suas respectivas moedas.
Todo esse trabalho durou vários anos e foi absolutamente necessário para estabelecer bases sólidas que dessem suporte e continuidade à unificação da moeda. E mesmo assim, houve momentos nos quais países mais ricos do bloco tiveram que dar apoio financeiro a países menos favorecidos, como Grécia e Portugal. É importante observar que, nestes casos, a capacidade de apoio que os países mais ricos tinham (e ainda têm) é mais do que suficiente para fornecer apoio aos países mais pobres, sem que haja prejuízo para a população dos países mais ricos.
Houve a determinação e a vontade férrea de colocar interesses locais em segundo plano, dando prioridade a interesses do continente europeu ocidental. Houve a estratégia baseada no entendimento de que apenas um bloco forte e unido tem condições de enfrentar a China e a Rússia, e os perigos que essas nações com regime totalitário apresentam, muito além dos aspectos econômicos e comerciais.
Houve mais ideias, objetivos e ações em comum do que ideias, objetivos e ações "nacionalistas" egoístas e/ou ideológicas.
Houve a vontade política de fazer uma União que fosse efetiva. Com raras exceções, os países membros tiveram sensibilidade e honestidade no trato das diferenças culturais, sociais e econômicas. A estabilidade política era um destaque entre os membros da União Europeia. Apenas em raros casos havia grandes flutuações causadas por líderes mal humorados ou mal intencionados...
Mas...
No caso de um eventual compartilhamento de moeda na América Latina o quadro é totalmente diferente. A Europa aprendeu muitas lições terrivelmente macabras nas duas guerras mundiais. Os europeus sabem a importância da união entre os países, o que para eles é fundamental para conseguir manter sua liberdade. Há mais de um século o quadro político e econômico da América Latina é instável e turbulento. Uma sucessão interminável de ditadores é o tom maior da política da maioria dos países latino-americanos.
A democracia é constantemente violentada em nome de ideologias de esquerda ou de direita, abrindo espaço para aproveitadores de toda a espécie. Apesar da riqueza de recursos naturais, poucos são os países desse bloco que podem ser chamados de desenvolvidos.
O Brasil, por seu tamanho continental, é um aglomerado de regiões e grupos sociais com imensos contrastes no âmbito econômico, com diversos graus de desenvolvimento (e de subdesenvolvimento), o que o torna uma incubadora de deploráveis desigualdades sociais. Há regiões do Brasil que rivalizam com o primeiro mundo, mas há também aquelas que fazem par com países subdesenvolvidos.
No balanço geral, a dimensão de nosso país, faz com que ele seja o principal da América Latina em termos de economia. Isso o torna muito forte no caso de qualquer sistema de compartilhamento de moeda. E a força é tanto no âmbito da economia quanto da política.
A grande questão é: qual o uso que se quer dar a tal força? Há fortes indícios de que ela tende a ser usada para dar sustentação ideológica. Não são apenas indícios: há, de fato, um firme propósito de assim agir. Em sua recente visita ao Uruguai, Lula falou textualmente em unificar o pensamento político e ideológico na América Latina. Isso significa claramente que a moeda comum que Brasil e Argentina querem criar é algo que transcende os limites da Economia, para se estender lastreando e enraizando um projeto ideológico, o qual está longe de ser uma unanimidade.
Lula fez essa viagem para pressionar os uruguaios a desistir de um acordo comercial que está sendo costurado entre nosso vizinho do sul e a China. Felizmente o Presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, foi sensato e firme o suficiente para não ceder à pressão do governo brasileiro. O Mercosul ainda é uma instituição extremamente ineficiente, com pouca expressão no comércio mundial. É muita pretensão, ainda neste contexto, querer concorrer com a China.
Infelizmente o isolacionismo é marca registrada das nações subdesenvolvidas.
Os Estados Unidos, com toda a força que têm no mundo ocidental, procuram se aliar à rica Comunidade Europeia, e não a pobres países africanos ou latino-americanos.
A Rússia e a China, poderosas no mundo oriental, aliam-se entre si, e não a nações que as usem como alavanca de crescimento.
As nações com poder econômico sempre procuram ter pares de perfil similar. Então qual a razão de o Brasil querer se aliar a países pobres, como a Venezuela ou Cuba? É o caminho inverso do que seria o recomendável. É inevitável que, dessa forma, o Brasil em algum momento muito próximo, passe a subsidiar déficits comerciais dos países mais pobres que farão parte do grupo com moeda comum.
Isso certamente irá prejudicar muita gente no Brasil, e os primeiros candidatos nessa fila do infortúnio são os cidadãos mais pobres. Em ocasiões anteriores, o Brasil procurou aliar-se a Cuba e países africanos, para quem forneceu ajuda substancial, sem que houvesse qualquer tipo de retorno. Nem ao menos houve pagamento justo por serviços prestados e obras realizadas por nós em território desses “parceiros” brasileiros.
Enfim, apesar dos aspectos positivos que pode haver num bloco de países latino-americanos que façam uso de moeda comum, é provável que os aspectos negativos sejam os dominantes.
Há inúmeras outras prioridades a serem trabalhadas e consideradas para colocar nosso pais nos eixos. Mas a bússola dos donos do poder neste país tem um norte muito diferente. Alemanha, Taiwan e Coreia do Sul são alguns exemplos de modelos bem sucedidos que poderiam ser seguidos para, em pouco tempo, mudar o destino de nossa nação. De 15 a 20 anos é o prazo que tais países precisaram para transformarem o seu subdesenvolvimento em exemplos de desenvolvimento e de justiça social. Eles conseguiram pois mais agiram do que falaram.
O Brasil patina há muitas décadas, falando um discurso de rosas, mas agindo no cultivo de espinhos. E parece que várias décadas ainda virão, durante as quais nosso passo será trôpego e nosso caminho será tortuoso, tal como ocorre há tanto tempo.
*ALBERTO ROMANO SCHIESARI
-Economista;
-Pós-graduado em Docência do Ensino Superior;
-Especialista em Tecnologia da Informação, Exploração Espacial e Educação STEM;
-Professor universitário por mais de 30 anos;
-Consultor e Palestrante.
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