Ana Flávia Santos(*)
"Os escafandristas virão", ecoa a música do Chico. E isso acende em mim uma esperança. Mas quem são eles? Os verdadeiros protagonistas da batalha ora enfrentada. Que, muitas vezes, acabam sendo relegados ao posto de coadjuvantes a despeito de uma figura mítica que insiste em protagonizar, e obstaculizar, mas que, por outro lado, como peixe, morre pela boca, pondo em xeque a figura de salvador messiânico com cuja alcunha a si próprio coroou.
Os profissionais da saúde, escafandristas que são por ofício, não só vêm, já aí estão e lutam! Batalham arriscando-se, por mim e por você também, em meio a uma pandemia sem precedentes dadas suas conjuntura e amplitude. Expõem-se e também aos seus em uma tentativa de salvar. Note: é uma tentativa, não se há garantias. Como tudo na vida!
Temos senão a garantia da morte, em algum ponto de nosso percurso, a qual tentamos, vivendo, driblar, acreditando que não é dada ainda a hora de chegar. Mas como disto saber? Inclusive, neste momento, em virtude do fazer de sua atuação, nem mesmo a garantia de sua própria sobrevivência o tem o profissional de saúde, frisa-se, pelas mesmas razões do seu ofício. E só essa imagem me faz refletir.
Remete-me ao há pouco acontecido com aqueles estudantes tailandeses, que saíram para treinar futebol e acabaram ficando presos em uma caverna, após se dirigirem até lá para se esconderem da chuva. Cada vez mais foram impelidos a adentrar a caverna, diante de uma inundação que só crescia... Essa história comoveu um mundo. A mim, e espero que a você também. Foram salvos por um ato de fé dos escafandristas - em seu sentido literal - uma vez, que acreditaram que os estudantes e seu treinador ainda estariam vivos; que estariam na caverna; que conseguiriam encontrá-los e que, encontrando-os, em uma arriscada manobra, os mergulhadores conseguiriam retirá-los de lá. E com vida! E de fato conseguiram. Ao sacrifício de um mergulhador, muito experiente, inclusive, que se arriscou para salvar a quem nem conhecia, voluntariamente, e, por isso, morreu, só por acreditar, solidarizar-se e, presumo eu, não renunciar à batalha, ainda que se colocasse sob o risco do próprio afogamento. Nas águas, em seu próprio meio, tão conhecido, seu próprio ofício...
E penso ser esse o movimento de tantos profissionais da saúde, que, neste momento, como mergulha-dores nesta pandemia, estão sob o mesmo e forte risco de todos os perigos daqueles a quem buscam salvar, sejam tempestades, naufrágios, afogamentos e até de sua própria morte. E por isso mesmo expõem-se ao contágio e à proliferação do vírus. Daí a necessidade do uso de algo como um escafandro - aquela vestimenta impermeável e hermeticamente fechada própria dos mergulhadores - apropriado à condição de sua atuação.
Assim, tal qual os mergulhadores que não renunciaram a seu ofício, eis os profissionais que mergulham, muitas vezes, sem os escafandros apropriados, expondo-se ainda mais. Se mesmo a vestimenta mais adequada e os demais recursos podem falhar - o próprio mergulhador profissional pode se afogar em águas que tão bem conhece -, imagine o quadro que se pinta quando da falta do paramento essencial... E lá vão eles, sem seus escafandros, inclusive. Uma frente de batalha desde o início esburacada. Mas vão. Sob o risco de não retornarem, sob o risco da contaminação. De si e dos seus. Que sacrifícios já não estão fazendo, devotando-se a sua atuação? Terão que se sacrificar também? Qual será o preço a pagar por uma dívida que nem mesmo contraíram?
A luta destes é minha também. Como profissional que sou, da mesma área, formada por tantos outros, e com tantos outros que integram esta mesma frente, infelizmente, vazada. O que não é de agora! Não estou falando só da falta de "escafandros", máscaras, luvas que, afirmo, são extremamente essenciais.
Falo também da falta de investimento, do boicote ao SUS, aos servidores públicos, à pesquisa científica, ao financiamento destas pesquisas, à Universidade Pública, à Educação, ao sistema educacional público, com os consequentes retrocessos nas áreas da saúde, da saúde mental e da educação, para citar alguns exemplos, instalando-se uma crise ética e humanitária.
E falo da perspectiva tanto de profissional que estudou e atuou nesses sistemas todos, quanto de usuária, posto que sou/fui "filha/fruto" e beneficiária de todos os sistemas apontados, discursando, pois, de um lugar desde dentro. E uma filha grata, diria eu, que, neste momento mesmo, assumindo a frente da denúncia, devolve o material que me constitui, de cujo tecido orgulhosamente me formei. Não só como profissional. Mas sobretudo como pessoa.
E, assim como os mergulhadores socorristas se preveniram para a realização da expedição de resgate aos meninos tailandeses, faz-se necessário que os profissionais de saúde também contem com galão extra de oxigênio. Para não ficarem intoxicados com um discurso estéril que impõe novas ameaças, podendo-se indagar a respeito de qual seria o maior inimigo, neste momento, contra o qual todos tanto estamos a lutar. E penso que seria a esterilidade do pensamento que nada gera, agrega, ou faz pensar. Deseja, antes, amordaçar e paralisar, só porque pode.
E diante de tanto discurso estéril, penso, mais do que nunca, na importância de cuidar de quem cuida, perspectiva esta que sempre atravessou a minha atuação e formação, que pesquisa-a-dor, seja como profissional seja em minha incursão em uma instigante, ao menos para mim, investigação científica.
E, em razão disso, escrevo em agradecimento a quem tanto contribuiu, seja em minhas necessidades pessoais de saúde ou dos meus, e antecipadamente, pelas que ainda teremos; ou mesmo contribuiu para a minha formação acadêmica e/ou científica. A respeito desta, inclusive, foram estes mesmos profissionais que compuseram meu olhar como pesquisadora iniciante, ao me emprestarem suas vozes e experiências para que pudesse compreender, não apenas minha pergunta de pesquisa, mas que constituíram meu olhar sobre o mundo, sobre o outro e sobre o cuidado em saúde e, em especial, à saúde mental, a quem sou especialmente grata.
E é por isso que hoje, em um gesto de retribuição, ofereço uma experiência que vem alimentando minha atuação profissional, datada do fim de minha formação acadêmica:
"Em uma reunião de rede, um usuário de serviço de saúde mental tomou a palavra e dividiu com todos os representantes oficiais de cargos municipais, profissionais e estudantes, como eu, na época, uma vivência muito singular. Compartilhou que, de todos os tratamentos que fizera, e tinham sido muitos, na sua opinião, o melhor remédio que recebera tinha sido "umas poucas palavras boas" e, só por isso, no momento estaria ali, vivo, e contribuindo para se pensar as práticas em saúde.
À época, aquilo me comoveu - o alcance e a penetração das palavras, como podem atingir lonjuras adentro, atravessando epiderme, derme, hipoderme, chegando, quem sabe, ao cerne do que é o ser. "Talvez isso ajude um barco a não afundar! Ou a um mergulhador salvar.". O poder de as palavras sustentarem alguém e, assim, conjurarem um mundo. E, assim, um escafandro precisaria de certa permeabilidade para que, ainda que devidamente protegido, uma palavra e um cuidado possam entrar e fazer, no outro, morada. Para salvar o que / a quem salva.
Por isso, hoje, em um gesto de admiração e respeito, estendo "umas poucas palavras boas" a você, profissional da saúde, que, em um ato de fé, ainda acredita, apesar de tudo, assim como eu, que há um mundo em defesa do qual vale a pena lutar. Que não renuncia à batalha, mesmo diante de agressões, boicotes e disparates de toda sorte. A você que reconhece que a palavra tratamento, antes de um sentido médico, remete, sobretudo, a uma capacidade de hospitalidade e acolhimento, a um tato e um trato sensíveis diante de quem sofre. Que sabe que, por baixo das máscaras, das suas e das do paciente, existe alguém. E esse alguém tem um nome. Que tem uma história. Que tem uma família. Que tem uma vida. E que isso configura um mundo. E que uma perturbação neste mundo pode provocar efeitos devastadores, traumáticos e permanentes, com efeitos exponenciais e transgeracionais.
Por isso, a você, que está na frente desta batalha, minha profunda admiração e gratidão. A sua luta é minha também. A você, algumas "poucas palavras boas". Ao menos espero eu. Afinal, clinicar refere-se ao ato de se dobrar e se debruçar sobre um leito para escutar o seu paciente. Mas hoje, profissional, quem se inclina em direção a você sou eu. Como um ato de reverência a quem de fato inspira consideração e deferência e, sobretudo, um ato de gratidão. Por tudo. Acima de tudo. Apesar de tudo.
*ANA FLÁVIA DE OLIVEIRA SANTOS
-Psicóloga Clínica (CRP 06/90086);
-Graduada em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP);
-Mestre em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP);
-Especialista em Psicologia Clínica pelo Conselho Federal de Psicologia;
-Membro Titular do Instituto de Estudos Psicanalíticos de Ribeirão Preto - IEPRP, onde também integra a Diretoria de Ensino e o quadro de psicólogos clínicos e supervisores;
-Possui experiência nas áreas clínica, da saúde, escolar/educacional, social e judiciária, além de ensino e pesquisa;
Atualmente, atende criança, adolescente e adulto na abordagem psicanalítica nas cidades de Batatais-SP e Ribeirão Preto-SP e
-Ainda, atua como professora em curso de Especialização em Psicologia,Orientadora de Monografia e como funcionária pública do Tribunal de Justiça de São Paulo.
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