Autora: Cinara Luísa Souza Ventura (*)
Em novembro de 2023, foi
publicado em diversos meios de comunicação que apenas no ano de 2190 o mercado
de trabalho brasileiro alcançará a igualdade no tocante ao emprego de pessoas
negras e não negras.
Pensar que em tão somente em 167
anos o Brasil poderá alcançar a igualdade racial laboral é consideravelmente
absurdo, todavia, não se mostra assustador, tendo em vista que o país sediou o
regime escravocrata por mais de 300 anos.
Mesmo que de uma forma breve,
far-se-á prudente rememorar o que acometeu o Brasil no século XVI. No ano de
1500, algumas caravelas que saíram de Lisboa com destino às Índias, encontraram
a chamada "Pindorama" pelos nativos que ali residiam, os indígenas. Por julgar o território como
altamente promissor de "bons
ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho", com "águas
infinitas, em tal maneira graciosa, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo",
bem como por julgar os nativos ali como seres inocentes e bons, entendeu-se
como prudente explorar aquele território como um todo, catequizando os
indígenas e explorando-os, tornando assim a primeira mão-de-obra daquela terra.
Todavia, não suficientemente, em
1530 ancorou a primeira embarcação em Pindorama (que passou a ser chamar "Ilha
de Vera Cruz " pelos portugueses e posteriormente "Brasil") trazendo pessoas negras, que
serviriam de mão-de-obra para manutenção e crescimento da economia no país,
àquela época em processo de colonização.
Com pessoas negras oriundas de
países do continente africano e indígenas nativos explorados, deu-se início à
escravidão no Brasil, a qual perdurou por 388 anos, vindo a ser declarada
extinta através da Lei nº 3.353 de 1888, também conhecida como "Lei Áurea". E
não custa ressaltar aqui como essas pessoas foram tratadas, bem como que não
chegaram por livre e espontânea vontade, e que essas pessoas foram alvos de
tratamento desumano e degradante, ante o fato de serem vistas como seres
inferiores e passíveis de dominação por pessoas ditas superiores.
Seria possível que uma sociedade
pudesse evoluir, sem trazer raízes de um sistema que explorou, dizimou,
estuprou e animalizou pessoas negras? Pois bem, ao que parece, não foi possível
evoluir socialmente sem os resquícios da escravidão, pois embora a Lei Áurea tenha
declarado a extinção da escravidão em seu primeiro artigo, revogando as
disposições em contrário, a referida lei não garantiu, tampouco reconheceu as
pessoas ex-escravizadas e seus descendentes como pessoas passíveis de direitos
e deveres.
Salienta-se que após a abolição, uma
parcela de negros continuou trabalhando nas casas dos senhores de engenho,
realizando as mesmas funções já desempenhadas, como labor em plantações e
dentro das casas grandes (servidão), outra porcentagem tentou retornar aos seus
países de origem e outros optaram por recomeçar a vida àquele lugar.
Dessa parcela que resolveu
recomeçar a vida longe das casas de engenho, retomaram ao sofrimento da época
escravocrata, pois embora a lei tenha extinguido a escravidão, esta não previu
a possibilidade de educar a sociedade de uma forma a enxergar àquelas pessoas
negras como passíveis de direitos e deveres, enfim, de possuir uma vida digna à
sociedade.
Dessa forma, os ex-escravizados,
passaram a realizar funções advindas dos ofícios exercidos à época da
escravidão, auferindo assim renda insuficiente para sobreviver de forma digna,
tendo que optar entre comer ou possuir uma boa morada, bem como entre vestir-se
bem ou estudar. Àquela altura, o racismo já mostrava sua resistência dentro da
sociedade, aparecendo de formas distintas, mesmo com a abolição da escravatura.
Com toda a discriminação racial e
péssimas condições de subsistência, o Direito Penal em 1890 passou a entender
como ilícito o ato de não "exercitar profissão, ofício ou qualquer mister em
que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistência e domicílio certo em que
habite", também chamado como "vadiagem". Não obstante, o pouco de lazer
existente à vida daquelas pessoas também foi criminalizado, visto que "exercícios
de agilidade e destreza corporal" conhecidos como "capoeira" poderiam
provocar lesão corporal, além de tumultos e desordem.
Neste diapasão, verifica-se que
poucos anos após a promulgação da lei que extinguiu o racismo não houve criação
de medidas de acolhimento e sim de punições, visto que pessoas negras e
ex-escravizadas não possuíam ganhame suficiente para manter-se de forma digna, de
modo que a sociedade e legislação rotulou essas pessoas de "vadias" e as
penalizaram levando à prisão, conforme artigo
399, caput do Decreto nº 847 de 1890.
Contudo, há de se ponderar que
com o passar do tempo, o ordenamento jurídico passou a tecer legislações que
passaram a enquadrar as pessoas negras como dignas de direitos e deveres na
sociedade. Assim, embora o ordenamento jurídico tenha promulgado leis que coibissem
a prática do racismo, os números de desigualdade salarial, ora laboral, se
mostravam e ainda se mostram alarmantes. Alegação tão verdadeira que o marco
central deste artigo é a notícia de que o mercado de trabalho brasileiro levará
cerca de 167 anos para tornar-se igualitário.
Por mais que a Constituição da
República de 1988 proíba em seu artigo 7º, inciso XXX, a diferença de salário,
de exercício de funções e critérios de admissão por motivo de cor, segundo o IBGE
em 2022, enquanto o rendimento médio real habitual do trabalho da população
branca é de R$3.273, a da população preta ou parda é de R$1.994. Ao aprofundar nos
dados apresentados pelo IBGE encontramos também que o rendimento médio real ao
classificar sexo e raça são ainda mais discrepantes, visto que a renda de
homens brancos são R$3.600, homens pardos ou negros R$2.170, mulheres brancas
R$2.766 e mulheres pardas ou pretas R$1.735.
Dos dados acima ilustrados,
observa-se que embora mulheres brancas recebam menos que homens brancos, ainda
sim, estas recebem mais que homens pardos ou pretos e mulheres pardas ou
negras, e que homens pardos ou negros recebem um pouco a mais que as mulheres
pardas ou pretas.
Para além da discriminação que
ainda circundam esse grupo étnico, frisa-se que diferença salarial pode estar
atrelada ao acesso à rede de ensino. O IBGE apurou que no país a porcentagem de
pessoas negras analfabetas é o dobro da população branca que não sabe ler e
escrever, de modo que a porcentagem de analfabetos negros no Brasil é de 7,1%,
enquanto analfabetos brancos correspondem a 3,2% da população.
Nesta senda, extrai-se que embora
pessoas negras tenham conseguido livrar-se da escravidão, seus reflexos
escravocratas ainda pairam à sociedade, de modo que o número maior de
analfabetos no país é de pessoas negras e os salários baixos pairam em maior escala
sobre as pessoas negras, o que dificulta e muito a ascensão destas últimas no
mercado de trabalho.
De todo modo, uma vez que o
Instituto Identidades do Brasil
(ID_BR) realizou a projeção de que serão necessários mais de 165 anos para
alcançar a igualdade racial no mercado de trabalho, não seria prudente traçar
medidas para reduzir esse tempo?
Desta feita, observa-se que no
decorrer dos últimos anos, instituições e governo federal, estão instituindo
programas que possuem o condão de reduzir o tempo estimado para a igualdade
racial no mercado de trabalho.
Para além das ações afirmativas
existentes, como por exemplo, o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288)
promulgado em 20 de julho de 2010, há também a Lei nº 12.711 de 2012 que
assegura no ingresso em universidades e ensino técnicos, através das cotas
raciais e atualmente o Decreto nº 11.443 de 2023 que versa acerca de um quórum
para pessoas negras ocuparem cargos de confiança no ambiente da administração
pública federal.
Todavia, far-se-á imperioso o
fortalecimento das políticas públicas voltadas a inclusão e oportunidades às
pessoas pardas e pretas, como forma de acessar a igualdade racial no mercado de
trabalho antes do tempo estimado.
Após mais de dez anos da
promulgação da lei de cotas, foi possível constatar que o número de pessoas
negras que ingressaram às universidades foi de 400%, conforme exposto pelo
IBGE.
A título de conhecimento,
importante ressaltar que a referida legislação de cotas não possui apenas o
escopo de auxiliar pessoas negras a ingressarem no ensino técnico e superior,
mas também indígenas, pessoas com deficiência, estudantes de escola pública e
quilombolas. Em que pese a dita legislação possuir cunho de reparação
histórica, extirpando as raízes escravocratas no Brasil, esta também ampara
pessoas descendentes ou não das mazelas causadas pelo capitalismo e pelo regime
escravocrata.
Assim sendo, aliando as políticas
públicas de ensino para com as de labor, no sentido de as ações afirmativas
atuarem para auxiliar à ascensão de pessoas negras em bons cargos em
corporações, já será de grande valia para reduzir o tempo 167 anos para a igualdade
salarial.
Não obstante, a criação de
medidas institucionais para coibir a prática de salários diferentes em virtude
de sexo e cor, respeitando o artigo 7º, XXX, da Constituição Federal de 1988,
será de grande valia para afastar a desigualdade salarial, visto que uma vez
atendido todos os requisitos de um cargo, não faz sentido uma pessoa ganhar
menos, em virtude sua etnia e gênero.
Ante o elucidado, foi possível
compreender os motivos pelos quais há desigualdade racial, no tocante ao
mercado de trabalho no Brasil, pois as raízes de um sistema tão hostil às
pessoas negras, foi capaz de resistir com o decorrer de séculos e ainda macular
os descendentes de escravizados.
Entretanto, é possível notar a
existência de uma corrente que vem lutando assiduamente contra a discriminação,
de modo que há muitos anos as denúncias quanto ao racismo em ambiente
institucional vêm sendo ouvidas, de modo que a Constituição vigente já repudia
o racismo (artigo 4º, VIII da CRFB/1988), bem como coíbe desigualdade salarial em
mesmas funções laborais por questões de cor, fora outras políticas públicas de
inclusão que vem sendo aplicadas no decorrer dos anos.
Neste ínterim, compreende-se que
as políticas públicas e legislações existentes já estão lutando em prol da
redução da estimativa de mais de cem anos para igualdade racial, cabendo agora
o auxílio da sociedade como um todo para auxiliar a reduzir tal conjectura,
afastado a entendimento de que pessoas negras e/ou pardas devem ocupar posições
inferiores às pessoas não negras, bem como receber valores inferiores à essas
pessoas, uma vez exercendo os mesmos cargos.
REFERÊNCIAS
https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/08/29/participantes-de-sessao-celebram-resultados-e-pedem-aprimoramento-da-lei-de-cotas#:~:text=%E2%80%94%20O%20IBGE%20ratifica%20que%20com,o%20negro%20sempre%20foi%20discriminado
https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/educacao/audio/2024-03/raca
ainda-e-fator-determinante-no-acesso-educacao-no-brasil
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/35467-pessoas-pretas-e-pardas-continuam-com-menor-acesso-a-emprego-educacao-seguranca-e-saneamento
https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202311/gestao-e-enap-inauguram-turma-do-lideragov-para-ampliar-numero-de-negros-em-cargos-de-liderancas-no-governo
https://www.conjur.com.br/2024-mai-10/acoes-afirmativas-para-promocao-da-igualdade-racial-no-ensino-juridico/
https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9221-sintese-de-indicadores-sociais.html
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12288.htm
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/d11443.htm
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/d11443.htm
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
https://portalabel.org.br/images/pdfs/carta-pero-vaz.pdf
https://www.simaigualdaderacial.com.br/
https://veja.abril.com.br/coluna/veja-gente/mercado-de-trabalho-no-pais-deve-ser-mais-igualitario-em-2190-diz-estudo#google_vignette
Denominado como “Região das Palmeiras” para o povo tupi-guarani.
* CINARA LUÍSA SOUZA VENTURA
-Bacharel em Direito pela Doctum – Campus, João Monlebade/MG (2019);
-Pós-Graduada em Advocacia Criminal pela Escola Superior de Advocacia (ESA/MG) (2020);
-Pós-Graduanda em Mercado Financeiro e de Capitais pela PUC Minas.
-Advogada atuante desde 2019.
-Membra da Comissão de Promoção de Igualdade Racial e Diretos Humanos da OAB/MG Subseção João Monlevade/MG.
-Membra da Comissão de Promoção de Igualdade Racial da OAB/MG Seccional de Minas Gerais.
-Membra da Associação Mulheres em Ação de João Monlevade/MG
Nota do Editor:
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