terça-feira, 10 de setembro de 2024

Entraves à Ascensão da Pretitude no Mercado de Trabalho


 

Autora: Cinara Luísa Souza Ventura (*)


Em novembro de 2023, foi publicado em diversos meios de comunicação que apenas no ano de 2190 o mercado de trabalho brasileiro alcançará a igualdade no tocante ao emprego de pessoas negras e não negras.

Pensar que em tão somente em 167 anos o Brasil poderá alcançar a igualdade racial laboral é consideravelmente absurdo, todavia, não se mostra assustador, tendo em vista que o país sediou o regime escravocrata por mais de 300 anos.

Mesmo que de uma forma breve, far-se-á prudente rememorar o que acometeu o Brasil no século XVI. No ano de 1500, algumas caravelas que saíram de Lisboa com destino às Índias, encontraram a chamada "[1]Pindorama" pelos nativos que ali residiam, os indígenas. Por julgar o território como altamente promissor de "[2]bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho", com "águas infinitas, em tal maneira graciosa, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo", bem como por julgar os nativos ali como seres inocentes e bons, entendeu-se como prudente explorar aquele território como um todo, catequizando os indígenas e explorando-os, tornando assim a primeira mão-de-obra daquela terra.

Todavia, não suficientemente, em 1530 ancorou a primeira embarcação em Pindorama (que passou a ser chamar "Ilha de Vera Cruz[3] " pelos portugueses e posteriormente "Brasil") trazendo pessoas negras, que serviriam de mão-de-obra para manutenção e crescimento da economia no país, àquela época em processo de colonização.

Com pessoas negras oriundas de países do continente africano e indígenas nativos explorados, deu-se início à escravidão no Brasil, a qual perdurou por 388 anos, vindo a ser declarada extinta através da Lei nº 3.353 de 1888, também conhecida como "Lei Áurea". E não custa ressaltar aqui como essas pessoas foram tratadas, bem como que não chegaram por livre e espontânea vontade, e que essas pessoas foram alvos de tratamento desumano e degradante, ante o fato de serem vistas como seres inferiores e passíveis de dominação por pessoas ditas superiores.

Seria possível que uma sociedade pudesse evoluir, sem trazer raízes de um sistema que explorou, dizimou, estuprou e animalizou pessoas negras? Pois bem, ao que parece, não foi possível evoluir socialmente sem os resquícios da escravidão, pois embora a Lei Áurea tenha declarado a extinção da escravidão em seu primeiro artigo, revogando as disposições em contrário, a referida lei não garantiu, tampouco reconheceu as pessoas ex-escravizadas e seus descendentes como pessoas passíveis de direitos e deveres.

Salienta-se que após a abolição, uma parcela de negros continuou trabalhando nas casas dos senhores de engenho, realizando as mesmas funções já desempenhadas, como labor em plantações e dentro das casas grandes (servidão), outra porcentagem tentou retornar aos seus países de origem e outros optaram por recomeçar a vida àquele lugar.

Dessa parcela que resolveu recomeçar a vida longe das casas de engenho, retomaram ao sofrimento da época escravocrata, pois embora a lei tenha extinguido a escravidão, esta não previu a possibilidade de educar a sociedade de uma forma a enxergar àquelas pessoas negras como passíveis de direitos e deveres, enfim, de possuir uma vida digna à sociedade.

Dessa forma, os ex-escravizados, passaram a realizar funções advindas dos ofícios exercidos à época da escravidão, auferindo assim renda insuficiente para sobreviver de forma digna, tendo que optar entre comer ou possuir uma boa morada, bem como entre vestir-se bem ou estudar. Àquela altura, o racismo já mostrava sua resistência dentro da sociedade, aparecendo de formas distintas, mesmo com a abolição da escravatura.

Com toda a discriminação racial e péssimas condições de subsistência, o Direito Penal em 1890 passou a entender como ilícito o ato de não "exercitar profissão, ofício ou qualquer mister em que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistência e domicílio certo em que habite", também chamado como "vadiagem". Não obstante, o pouco de lazer existente à vida daquelas pessoas também foi criminalizado, visto que "exercícios de agilidade e destreza corporal" conhecidos como "capoeira" poderiam provocar lesão corporal, além de tumultos e desordem.

Neste diapasão, verifica-se que poucos anos após a promulgação da lei que extinguiu o racismo não houve criação de medidas de acolhimento e sim de punições, visto que pessoas negras e ex-escravizadas não possuíam ganhame suficiente para manter-se de forma digna, de modo que a sociedade e legislação rotulou essas pessoas de "vadias" e as penalizaram levando à prisão, conforme [4]artigo 399, caput do Decreto nº 847 de 1890.

Contudo, há de se ponderar que com o passar do tempo, o ordenamento jurídico passou a tecer legislações que passaram a enquadrar as pessoas negras como dignas de direitos e deveres na sociedade. Assim, embora o ordenamento jurídico tenha promulgado leis que coibissem a prática do racismo, os números de desigualdade salarial, ora laboral, se mostravam e ainda se mostram alarmantes. Alegação tão verdadeira que o marco central deste artigo é a notícia de que o mercado de trabalho brasileiro levará cerca de 167 anos para tornar-se igualitário.

Por mais que a Constituição da República de 1988 proíba em seu artigo 7º, inciso XXX, a diferença de salário, de exercício de funções e critérios de admissão por motivo de cor, segundo o [5]IBGE em 2022, enquanto o rendimento médio real habitual do trabalho da população branca é de R$3.273, a da população preta ou parda é de R$1.994. Ao aprofundar nos dados apresentados pelo IBGE encontramos também que o rendimento médio real ao classificar sexo e raça são ainda mais discrepantes, visto que a renda de homens brancos são R$3.600, homens pardos ou negros R$2.170, mulheres brancas R$2.766 e mulheres pardas ou pretas R$1.735.

Dos dados acima ilustrados, observa-se que embora mulheres brancas recebam menos que homens brancos, ainda sim, estas recebem mais que homens pardos ou pretos e mulheres pardas ou negras, e que homens pardos ou negros recebem um pouco a mais que as mulheres pardas ou pretas.

Para além da discriminação que ainda circundam esse grupo étnico, frisa-se que diferença salarial pode estar atrelada ao acesso à rede de ensino. O IBGE apurou que no país a porcentagem de pessoas negras analfabetas é o dobro da população branca que não sabe ler e escrever, de modo que a porcentagem de analfabetos negros no Brasil é de 7,1%, enquanto analfabetos brancos correspondem a 3,2% da população.

Nesta senda, extrai-se que embora pessoas negras tenham conseguido livrar-se da escravidão, seus reflexos escravocratas ainda pairam à sociedade, de modo que o número maior de analfabetos no país é de pessoas negras e os salários baixos pairam em maior escala sobre as pessoas negras, o que dificulta e muito a ascensão destas últimas no mercado de trabalho.

De todo modo, uma vez que o Instituto Identidades do Brasil[6] (ID_BR) realizou a projeção de que serão necessários mais de 165 anos para alcançar a igualdade racial no mercado de trabalho, não seria prudente traçar medidas para reduzir esse tempo?

Desta feita, observa-se que no decorrer dos últimos anos, instituições e governo federal, estão instituindo programas que possuem o condão de reduzir o tempo estimado para a igualdade racial no mercado de trabalho.

Para além das ações afirmativas existentes, como por exemplo, o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288) promulgado em 20 de julho de 2010, há também a Lei nº 12.711 de 2012 que assegura no ingresso em universidades e ensino técnicos, através das cotas raciais e atualmente o Decreto nº 11.443 de 2023 que versa acerca de um quórum para pessoas negras ocuparem cargos de confiança no ambiente da administração pública federal.

Todavia, far-se-á imperioso o fortalecimento das políticas públicas voltadas a inclusão e oportunidades às pessoas pardas e pretas, como forma de acessar a igualdade racial no mercado de trabalho antes do tempo estimado.

Após mais de dez anos da promulgação da lei de cotas, foi possível constatar que o número de pessoas negras que ingressaram às universidades foi de 400%, conforme exposto pelo IBGE. 

A título de conhecimento, importante ressaltar que a referida legislação de cotas não possui apenas o escopo de auxiliar pessoas negras a ingressarem no ensino técnico e superior, mas também indígenas, pessoas com deficiência, estudantes de escola pública e quilombolas. Em que pese a dita legislação possuir cunho de reparação histórica, extirpando as raízes escravocratas no Brasil, esta também ampara pessoas descendentes ou não das mazelas causadas pelo capitalismo e pelo regime escravocrata. 

Assim sendo, aliando as políticas públicas de ensino para com as de labor, no sentido de as ações afirmativas atuarem para auxiliar à ascensão de pessoas negras em bons cargos em corporações, já será de grande valia para reduzir o tempo 167 anos para a igualdade salarial.

Não obstante, a criação de medidas institucionais para coibir a prática de salários diferentes em virtude de sexo e cor, respeitando o artigo 7º, XXX, da Constituição Federal de 1988, será de grande valia para afastar a desigualdade salarial, visto que uma vez atendido todos os requisitos de um cargo, não faz sentido uma pessoa ganhar menos, em virtude sua etnia e gênero.

Ante o elucidado, foi possível compreender os motivos pelos quais há desigualdade racial, no tocante ao mercado de trabalho no Brasil, pois as raízes de um sistema tão hostil às pessoas negras, foi capaz de resistir com o decorrer de séculos e ainda macular os descendentes de escravizados.

Entretanto, é possível notar a existência de uma corrente que vem lutando assiduamente contra a discriminação, de modo que há muitos anos as denúncias quanto ao racismo em ambiente institucional vêm sendo ouvidas, de modo que a Constituição vigente já repudia o racismo (artigo 4º, VIII da CRFB/1988), bem como coíbe desigualdade salarial em mesmas funções laborais por questões de cor, fora outras políticas públicas de inclusão que vem sendo aplicadas no decorrer dos anos.

Neste ínterim, compreende-se que as políticas públicas e legislações existentes já estão lutando em prol da redução da estimativa de mais de cem anos para igualdade racial, cabendo agora o auxílio da sociedade como um todo para auxiliar a reduzir tal conjectura, afastado a entendimento de que pessoas negras e/ou pardas devem ocupar posições inferiores às pessoas não negras, bem como receber valores inferiores à essas pessoas, uma vez exercendo os mesmos cargos.

 

REFERÊNCIAS

https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/08/29/participantes-de-sessao-celebram-resultados-e-pedem-aprimoramento-da-lei-de-cotas#:~:text=%E2%80%94%20O%20IBGE%20ratifica%20que%20com,o%20negro%20sempre%20foi%20discriminado

https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/educacao/audio/2024-03/raca ainda-e-fator-determinante-no-acesso-educacao-no-brasil

https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/35467-pessoas-pretas-e-pardas-continuam-com-menor-acesso-a-emprego-educacao-seguranca-e-saneamento

https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202311/gestao-e-enap-inauguram-turma-do-lideragov-para-ampliar-numero-de-negros-em-cargos-de-liderancas-no-governo

https://www.conjur.com.br/2024-mai-10/acoes-afirmativas-para-promocao-da-igualdade-racial-no-ensino-juridico/

https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9221-sintese-de-indicadores-sociais.html

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12288.htm

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/d11443.htm

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/d11443.htm

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

https://portalabel.org.br/images/pdfs/carta-pero-vaz.pdf

https://www.simaigualdaderacial.com.br/

https://veja.abril.com.br/coluna/veja-gente/mercado-de-trabalho-no-pais-deve-ser-mais-igualitario-em-2190-diz-estudo#google_vignette

[1] Denominado como “Região das Palmeiras” para o povo tupi-guarani.

[2] Carta de Pero Vaz de Caminha, disponível em: https://portalabel.org.br/images/pdfs/carta-pero-vaz.pdf

[3] Primeiro nome dado ao território invadido, o Pindorama, pelos portugueses.

[4] Artigo 399 do Código Penal: Deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistência e domicilio certo em que habite; prover a subsistência por meio de occupação prohibida por lei, ou manifestamente offensiva da moral e dos bons costumes.

[5]Disponível: 

https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/35467-pessoas-pretas-e-pardas-continuam-com-menor-acesso-a-emprego-educacao-seguranca-e-saneamento

[6] Disponível em: https://www.simaigualdaderacial.com.br/


* CINARA LUÍSA SOUZA VENTURA
















-Bacharel em Direito pela Doctum – Campus, João Monlebade/MG (2019);

-Pós-Graduada em Advocacia Criminal pela Escola Superior de Advocacia (ESA/MG) (2020);

-Pós-Graduanda em Mercado Financeiro e de Capitais pela PUC Minas.

-Advogada atuante desde 2019.

-Membra da Comissão de Promoção de Igualdade Racial e Diretos Humanos da OAB/MG Subseção João Monlevade/MG.

-Membra da Comissão de Promoção de Igualdade Racial da OAB/MG Seccional de Minas Gerais.

-Membra da Associação Mulheres em Ação de João Monlevade/MG

Nota do Editor:

Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.

Nenhum comentário:

Postar um comentário