Há algumas décadas ouvimos falar da famigerada crise que recai sobre a sociedade. Ela afeta todos os estames da vida social, cultural, religiosa, política e educacional. As instituições perderam seu caráter normativo para a vida humana, deixaram de ser referência norteadora para a construção do cidadão, foi entregue ao indivíduo a responsabilidade por sua elaboração. É uma época na qual o indivíduo goza de uma liberdade sem precedentes, se diversificou as possibilidades de ser numa infinidade de formas. Sociólogos e filósofos como François Lyotard, Gilles Lipovetsky e Zyngmunt Bauman e outros referenciam este período como a pós-modernidade; o fim das grandes narrativas onde tudo tem que ser rápido, mesmo o espaço que era uma estrutura limitante, foi quebrado pelas novas tecnologias digitais; pelo smartphone posso estar em vários lugares ao mesmo tempo. Um mundo extremamente veloz, que exige do indivíduo constante atualização. Tudo deve ser personalizado, e a sensação de os sujeitos estarem somente justapostos cada vez mais se torna intensa.
A percepção do mundo nos faz perceber a história e a realidade sem uma perspectiva de finalidade. As gerações mais jovens cada vez mais desconfiam da possibilidade de se criar um Estado capaz de regular a vida dando uma orientação sólida, justa, boa, sem conflitos ou ambivalências, isso parece ser uma quimera romântica. O indivíduo percebe-se como responsável por encontrar-se e realizar-se. Aquilo que era confiado a humanidade enquanto tal, agora é dado a administração do indivíduo e seus recursos, como afirmará Bauman. Tudo depende da astucia, vontade e poder do sujeito. Não se pode ficar parado, o mundo é veloz e eu devo ser também. Devo estar num processo de atualização constante, quem para logo é marginalizado, substituído. O processo é contínuo, mas não é claro o caminho a ser seguido, somente que devemos correr em direção a algo.
Este discurso, faz com que aumente o papel da atuação individual e se prejudique o lugar do cidadão. Ser cidadão é entender que qualquer coisa que faço ou realizo está vinculado a sociedade. O cidadão busca seu bem-estar através do bem-estar da cidade. A cidadania une os sujeitos numa trama complexa, na qual toda a realidade deve se desenvolver de forma uníssona. Há o protagonismo individual, mas este vincula-se ao crescimento do todo e não a si próprio simplesmente. A individualização é a lenta desintegração da cidadania; uma das raízes do mal-estar atual.
A vida aos poucos tem perdido seu aspecto de preservação e continuação e as nuances revolucionárias induzem ao direcionamento de um mundo novo, onde o protagonismo esteja completamente encarcerado nas mãos deste indivíduo livre de qualquer amarra moral, dotado de vontade e desejo, emancipado da razão instrumental e dominadora da realidade. A autoridade tem um teor negativo e toma ares de imposição arbitrária ligadas a tradição e a hierarquia.
Na educação, este tipo de pensamento adentrou avassaladoramente. Os diversos teóricos acreditam que a formação deste mundo novo passa pela a formação dos mais novos. É necessário se indispor com o tradicional para construir esta nova ordem. A educação perde seu caráter pré-político, ou seja, que visa preparar o sujeito para a vida na Pólis, torná-lo virtuoso e maduro o suficiente para viver como cidadão; e se torna uma ferramenta Política, que quer fazer um sujeito crítico contra o status quo, questionando qualquer forma de autoridade e conteúdo. Em outras palavras, a educação deixa de ser parte da apropriação da criança deste mundo que existe antes dela, para que ela possa amadurecer e viver no mundo dos adultos, ou seja, ingressar na vida pública, construir a sociedade e a cultura. Ela própria se torna referencial para si e qualquer conteúdo a ser transmitido parece ser “matéria morta” se não foi engendrado por ela mesma. A educação se torna um tipo de ciência em si, e ao professor, o domínio de sua matéria se torna secundário, pois o importante não é o saber, mas ensinar a fazer, ensinar como sujeito criar algo. Sua autoridade é desvelada e igualada aos alunos. Tudo se faz junto e no contexto social do aluno.
É relevante ressaltar que no campo Político as coisas devem sim passar por um processo constante de renovação. Uma atitude puramente conservadora faz com que esta instituição perca seu caráter vital e em constante ajuste. Cada geração traz em si uma renovação que mantém esta vitalidade e inconformidade.
Todavia, a educação sempre teve um caráter pré-político, em outras palavras, de formação para ingresso da vida em sociedade. E em 1957 a filosofa Hanna Arendt escreve um artigo com o título The Crisis in Education. No qual avaliava alguns aspectos nos quais geravam certa crise no modelo educacional americano. Diante do quadro no qual nossa sociedade e a educação se desenvolve em nossa época, este artigo parece conservar certa atualidade. Vejamos alguns pressupostos que a filosofa desenvolve, extraindo alguns pontos para nossa reflexão teórica.
Arendt estabelece duas esferas nas quais a vida humana se forma e se realiza: privado e público. A esfera privada é onde a criança nasce e desenvolve. Os pais dão a vida e são responsáveis pelo desenvolvimento, mas também pelo processo de humanização, na qual este novo indivíduo vai assumindo este mundo. Existe ali uma separação exata entre o público e o privado. Na segurança privada da família é o lugar onde a vida se consolida, é o espaço da vida. Neste obscurantismo ela pode crescer e sem ser forçada a uma existência pública, ali existe segurança. A criança está separada do mundo público para ganhar maturidade não só física, mas também social. A vida existe, de fato, dentro da família. Os adultos asseguram que ela adquira o mínimo para a humanização, dando limites e formas de agir, e assegurando segurança emocional e afetiva.
A esfera pública é onde se produz. Na luz dos fatos e da comunidade humana, o sujeito estabelece relações, negócios e cria artefatos. É o mundo feito pelos homens que acontece pela ação e pelo discurso. Nele se dá a luta pela sobrevivência biológica e é onde acontece a Política.
E educação é uma instituição que se põe entre os limites do privado e do público e que torna possível ao sujeito a transição da família para o mundo. A família e a educação consistem neste processo do qual o sujeito conhece gradualmente o mundo e se introduz nele, se tornando cidadão. Fazer parte do mundo é passar por um processo de maturação, assimilação e preparação para este mundo que já está disposto. Para a partir dele agir e o transformá-lo. Este processo exige certo conservadorismo e autoridade, pois isto dá segurança e abrigo para que esta criança amadureça sem perturbações.
Diante disso, se ressalta a importância em manter esta segurança e os limites do privado. A escola tem esse papel de mediação entre as duas esferas e torna possível esta transição. A criança deve ser introduzida gradualmente ao mundo, e esta responsabilidade exige autoridade do educador. Além da competência que o professor deve ter em conhecer o mundo e saber transmiti-lo, sua autoridade se dá pela responsabilidade por este mundo, em ser o representante deste mundo que apresenta a ela esta realidade. Abandonar a autoridade é abrir mão da responsabilidade pelo mundo e pelas crianças. É uma concepção completamente distante do autoritarismo que percebemos comumente.
Assim, podemos extrair que a crise se dá em grande escala quando a autoridade que são próprias da família e da educação são postas de lado, e é dada a criança a individualidade indevida que a faz perder-se por não conhecer aquilo que já foi construído ao longo da história.
Ensinar e educar assumem um caráter de conservação pois introduzem este novo ser neste mundo antigo, ele terá a responsabilidade de criar um mundo novo. Não é puro conservadorismo, mas é a responsabilidade de formar e conservar nas gerações mais novas seu caráter revolucionário de novidade no mundo que só pode existir quando se compreende o que é este mundo. A crise na educação, se liga em grande parte a crise da tradição e a nossa atitude com relação ao passado. Ao longo dos diversos períodos históricos isto sempre foi preservado, mas atualmente em nome desse mundo novo tudo foi desprezado, abominado.
A autoridade do professor é outorgada por sua reverência a tudo aquilo que foi produzido, e permitir que os mais novos seja dignos de seus antepassados. O atual cenário quer privar a educação do uso da autoridade e da tradição. Uma educação que não quer ensinar não é educação, somente retórica, afirma Arendt.
Com isso, queremos afirmar que o papel da educação básica neste mundo em crise, mas também ao longo da história, foi sempre o de preparar cidadãos para serem introduzidos na sociedade. Entrar no mundo dos adultos e ser capaz de analisar e produzir elementos que produzem a história humana ao longo dos tempos. Nada novo surge do nada, a sociedade e a história humana são produzidas e antecedidas por ideias. Cabe a educação indicar estes caminhos que rompem a individualidade egoica de nossa época, e contribuem para a formação e a educação de novos cidadãos. É o um dever social e também uma contribuição para crise sistêmica que enfrentamos.
POR FÁBIO DA FONSECA JÚNIOR
-Graduado em Filosofia e História;
-Professor de Filosofia, Sociologia e História e
-Mestrando em Educação pela Universidade Federal de Lavras.
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