"Não esvazie a tua alma mais profunda para todos, nem estrague (assim) a tua influência"
Amenope
Berço da humanidade e das mais antigas civilizações do mundo, como a civilização egípcia, o continente africano é composto por 55 países e mais de 800 povos diferentes, constituindo uma cultura riquíssima nos mais diferentes aspectos, inclusive na produção de pensamento filosófico. Contudo, o continente permanece um grande desconhecido para o ocidente, que tem pouco acesso à cultura produzida na África, por vários motivos, sobretudo o preconceito presente no rótulo de primitivismo atribuído ao continente desde a colonização europeia moderna.
Esse preconceito, que no Brasil se estende não somente à história e a cultura da África, mas também às religiões de matrizes africanas, afeta diretamente a educação, de modo que foi necessária uma lei, a lei 10.639 de 2003, que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas tanto públicas quanto privadas do país, visando minimizar esse problema.
Não seria diferente com o ensino de filosofia, onde se reproduz certo “racismo acadêmico e epistemológico” que nega tacitamente a relevância ou mesmo a existência de um conhecimento filosófico africano. Exemplo desse fato é que mesmo nas universidades não há espaço nos currículos para a produção filosófica africana, com poucas exceções, como a iniciativa do professor Wanderson Flor, da Universidade de Brasília (UNB), que desenvolve uma pesquisa sobre as “Colaborações entre os estudos das africanidades e o ensino de filosofia” e criou um blog para divulgar e dar suporte aos estudantes que procuram os escassos materiais em língua portuguesa sobre a filosofia africana. No ensino médio, vemos outro exemplo, pois entre os sete livros didáticos de filosofia recebidos em 2017 para avaliação e adoção pela escola em 2018, apenas um abordava a filosofia africana.
Não obstante, existem pesquisadores contemporâneos que defendem a ideia de que a África, mais especificamente o Egito, é o verdadeiro berço da filosofia, pois muito antes de Sócrates, Platão, Aristóteles e mesmo dos pensadores pré-socráticos, já havia no Egito uma produção de um saber filosófico. Sábios como Ptah-Hotep (por volta do séc. XXIV a.C), que escreveu um texto de caráter moral direcionado a seu filho, que ficou conhecido as Máximas de Ptah-Hotep, o polímata Imhotep (cerca de 2655 a 2600 a.C.), considerado o primeiro engenheiro, médico e arquiteto da antiguidade, tendo projetado inclusive a primeira pirâmide do Egito, a pirâmide de Sacara e o grande sábio Amenope (nascimento carece de fontes), que escreveu uma obra literária chamada as Instruções de Amenope, contendo trinta capítulos com conselhos para uma vida bem sucedida, são exemplos dessa tradição.
Embora o assunto gere muitas controvérsias, o fato é que as duas culturas trocaram experiências, Tales de Mileto, que é considerado pela tradição ocidental o primeiro filósofo, esteve no Egito e na Babilônia para aprofundar seus conhecimentos em geometria e Pitágoras, o grande matemático e filósofo grego, viveu no Egito e estudou com os sacerdotes locais, absorvendo sua cultura e conhecimento. Mais tarde, Plotino (Egito / 204/5 – 270 d. C.) filósofo neoplatônico e autor das Enéadas, deu grande contribuição à filosofia e influenciou o pensamento cristão, islâmico e judaico, além de diversos pensadores até a modernidade. Agostinho de Hipona (Atual Souk Aras, na Argélia) ou simplesmente Santo Agostinho (354 – 430), foi um dos mais importantes filósofos do cristianismo primitivo, autor de uma vasta obra que influenciou não somente o cristianismo, mas a filosofia ocidental. Esses exemplos mostram que a filosofia africana tem lugar relevante na história do pensamento.
No entanto, é preciso fazer uma distinção entre a filosofia produzida no norte da África, que manteve um intercâmbio cultural desde cedo com a Grécia, da filosofia produzida na África Subsaariana, que, ao contrário, estabeleceu um contato tardio com a Europa, ocorrido somente no século XVI com a expansão marítima e o empreendimento colonial das grandes potências europeias.
Foi somente no contexto do processo de descolonização da África ocorrida no século XX que surgiu nos países subsaarianos o debate acerca da existência e o caráter de uma filosofia especificamente africana. A princípio, devido à predominância da população negra nesses países, esse debate se desenvolveu em torno de movimentos como a Diáspora Negra, a Negritude e o Pan-Africanismo.
A diáspora negra diz respeito ao reconhecimento de uma identidade social comum entre os povos que foram sequestrados de seus lares e levados como escravos para o continente americano e o oriente. A Negritude, conceito desenvolvido por Léopold Sédar Senghor (Senegal) e Aimée Cesaire (Martinica) no período entre as guerras mundiais, é um movimento literário de valorização da cultura negra e das africanidades nos países africanos e nos países de passado colonialista, como o Brasil, onde vivem milhões de afrodescendentes. E o Pan-Africanismo é um movimento político, social e filosófico que visa unir os povos africanos e afrodescendentes que vivem fora da África para realização de ações afirmativas.
Entre as principais correntes da filosofia africana do século XX está a etnofilosofia, que tem como marca a tentativa de aproximar-se da sabedoria popular presente em provérbios, máximas e contos tradicionais, sobretudo das sociedades tribais.
Outra corrente importante é a escola da sagacidade filosófica, criada por Henry Odera Oruka (Quênia) na década de 70, que busca identificar indivíduos como sendo representativos da cultura e visão de mundo africanas, diferentemente da etnofilosofia, que busca essa mesma visão não nos indivíduos, mas no discurso não-filosófico. Nesse sentido, enquadram-se como representantes da sagacidade filosófica escritores como Chinua Achebe e Wole Soyinka, no campo da literatura, assim como teóricos políticos e eruditos em geral.
Outras vertentes que podemos destacar na filosofia africana são as chamadas Filosofia profissional, cujos pensadores buscam nos conceitos e metodologias de análise da filosofia europeia um instrumento para refletir sobre diversos aspectos da realidade africana, a Filosofia Ideológica Nacionalista, cujos pensadores buscam a construção de uma ideologia de emancipação africana e a Filosofia Ubuntu, que expressa a consciência da relação de fraternidade entre o indivíduo e a comunidade, o que foi de grande importância para a luta contra o Apartheid na África do Sul, influenciando inclusive o líder Nelson Mandela.
Por tudo isso, propor uma reflexão nas aulas de filosofia a respeito do racismo, partindo da leitura de pensadores africanos, como Achille Mbembe e Mogobe Ramose, entre tantos outros, ganha um contorno político-pedagógico relevante a nosso ver. Pois, além de valorizar o saber e a cultura africana, essa abordagem colabora também com própria construção do conceito de negritude. Ademais, parece-nos necessário superar a centralidade do ensino de filosofia fundado numa imagem do pensamento eurocêntrica,ou mesmo de um racismo epistemológico interno à própria filosofia, que ignora não somente as matrizes africanas, mas qualquer matriz não europeia. Portanto, esse enfoque justifica-se e tem como ponto de apoio o cumprimento à lei 10.639 de 2003, acima referida e mostra-se em sintonia com o currículo de filosofia na sua interseção com o tema racismo, buscando efetuar uma problematização em seus pressupostos mesmos.
POR ZÓZIMO ADEODATO
-Graduado e licenciado em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP - 2010);
-Trabalha como professor de Filosofia na rede estadual de ensino de São Paulo desde 2011; e
-Atualmente, faz pós-graduação na UNIFESP(Especialização no Ensino de Filosofia para o Ensino Médio-EAD) e mestrado em filosofia na Universidade Federal do ABC - UFABC).
-Trabalha como professor de Filosofia na rede estadual de ensino de São Paulo desde 2011; e
-Atualmente, faz pós-graduação na UNIFESP(Especialização no Ensino de Filosofia para o Ensino Médio-EAD) e mestrado em filosofia na Universidade Federal do ABC - UFABC).
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