Autor: Benedito Moroni(*)
Esta é uma história real. Alteramos as identidades a fim de evitar eventuais constrangimentos.
Rogério, no início dos anos 1960, era um estudante que morava em uma cidadezinha do interior de São Paulo. Estudou o primário e o ginásio (atual ensino fundamental) em escolas públicas que eram na ocasião excelentes e renomadas. Seus pais, de parcos recursos, entretanto faziam questão que ele fizesse um bom curso para ter maiores oportunidades de vencer na vida. Mas o dinheiro da família só dava para o essencial. Rogério, para outros gastos seus, fazia bicos.
Já tivera algumas namoradinhas, mas sem maiores compromissos. Certo dia chegou a sua cidade uma família vinda do Rio de Janeiro. Era o casal com três filhos: uma mocinha, um menino e uma menininha. Os rapazes logo que viram Suzana, este era o nome da mocinha, sentiram aflorar o interesse em namorá-la. Tratava-se de uma garota extremamente atraente e encantadora. Ainda mais, falava de uma maneira totalmente diferente das garotas do local e região. Ela nascera e aprendera a falar no Rio de Janeiro e assim, não tinha o "r" carregado dessa parte do interior. Estava na flor da idade, loirinha, bonita, com um jeitinho especial de falar que encantava de imediato a todos que a viam e ouviam. Pretendentes a tornarem-se namorado dela despontaram. Todavia, havia um problema enorme para namorá-la. Como era hábito na época e no local, o pretendente tinha que pedir autorização do pai dela, Carlos, para namorar e todos sabiam que ele era extremamente bravo e irascível. Não bastasse isso, era hábil professor e lutador de judô, com fama de bom de briga, ocasião em que punha em prática seus conhecimentos de artes marciais. Isto tudo era como uma muralha entre o eventual candidato e Suzana.
Rogério, um dos interessados, pensou, pensou e após muito pensar resolveu colocar um plano em ação, sem arriscar-se a ser vítima da ira do pai da moça: resolveu entrar na academia para aprender judô na academia em que Carlos era instrutor a qual estava montada e funcionando nos fundos da casa dele. Fazendo bicos juntou dinheiro e mandou confeccionar o roupão apropriado para praticar judô. Ato contínuo, matriculou-se. Iniciou as aulas e frequentava-as assiduamente. Com o tempo tornou-se "amigo" de Carlos. Rogério, quando entrava para as aulas, geralmente via Suzana e trocavam olhares, inicialmente tímidos e depois mais significativos e promissores. Poucas aulas depois, sentindo que já não era mais um estranho para a garota e muito menos ao pai dela, Rogério, em certo dia, procurou Carlos na casa dele e, tomado por uma coragem significativa, pediu para namorar Suzana. Carlos ouviu o pedido e, antes de dar resposta, chamou Suzana e disse-lhe:
- Suzana, o Rogério veio aqui pedir você em namoro. Eu quero saber de você, o que acha?
- Se o senhor permitir e autorizar, eu aceito – respondeu a garota.
- Então, já que você aceita, está bem e podem namorar – respondeu Carlos, com isto aprovando pedido do jovem. E eles começaram a namorar.
Tudo correu bem por vários meses, até causando despeito a uns pretendentes preteridos e inveja a outros. Entre os namorados, tudo seguia normalmente, sem turbulências, nem contratempos. Porém, certa ocasião, quando Rogério foi encontrar-se com Suzana para irem ao cinema, Carlos pediu para Rogério conversar com ele na sala.
Os dois estavam a sós. Então Carlos perguntou:
- Rogério, você já está namorando há um tempo com Suzana. Pretende casar-se com ela?
- Meu namoro é sério – respondeu Rogério - e, quando for a ocasião certa e apropriada, isso deverá ocorrer.
- Preciso contar uma coisa a você – continuou Carlos. Se você não vai casar-se agora, o primo da Suzana pediu-me para casar agora com ela. E você, o que decide então?
- Como já falei ao senhor, seu Carlos, – argumentou Rogério – meu namoro é sério, mas sou estudante, ainda não tenho emprego, tenho 17 anos e creio ser muito cedo para assumir uma responsabilidade tão grande tirando uma jovem de uma casa onde ela tem de tudo, para viver sem estabilidade econômica e financeira!
- Mas o primo da Suzana quer casar-se com ela, e imediatamente, pois gosta muito dela. E agora? – retrucou Carlos.
Rogério, sem titubear, respondeu:
- Se o senhor quer que Suzana se case agora, comigo isso não é possível. Então a única solução é acabarmos nosso namoro e vocês aceitarem a proposta de casamento feita pelo primo dela. Foi um silêncio acabrunhador. Sem mais nada a conversar, Rogério despediu-se e saiu. O namoro estava desfeito naquele instante.
A vida continuou para o moço até que, um mês depois do fim do namoro, Carlos bateu na porta da casa do Rogério. Quem o atendeu foi justamente o rapaz. Carlos, sem delongas, falou:
- Rogério, vim aqui para pedir a você que reate o seu namoro. Suzana, desde que o namoro foi desfeito, está doente. Volte, por favor.
- Mas e o primo que queria casar-se com ela? - arguiu Rogério.
- Ele não voltou mais ao assunto e ela está sentindo demais a falta de você. Ouça um pai aflito que está lhe pedindo: por favor, volte para a Suzana!
Rogério, calado, analisou a situação e, condoído da situação de Suzana, acabou concordando em reatar o namoro. Contudo, a partir daí, o namoro não foi mais do mesmo jeito. Começou a esfriar até o levar que era de se esperar: o fim do mesmo.
Encerrado definitivamente o namoro, a vida continuou... Rogério teve outra namorada. No período que não estava estudando, trabalhou em uma loja e a vida seguia. Certo dia Suzana passou pela loja e vendo Rogério foi conversar com ele. Conversaram amenidades. Depois disso ela passou a ir até a loja para falar com o jovem.
Todavia, eram apenas amenidades até que um dia ela falou a Rogério:
- Sabe ontem, domingo à noite, procurei você na praça e não o encontrei. Você imagina porque eu queria encontrá-lo?
- Não tenho a menor ideia. Por quê? – perguntou Rogério;
- Eu saí para matá-lo. Estava disposta a encontrar você e matá-lo. – respondeu Suzana.
O jovem até riu do que entendeu como sendo uma brincadeira. Passados uns poucos anos contam a Rogério que Suzana casara-se com Cassiano, um homem bem mais velho que ela. Ele era vendedor e tinha rictu (1) que o deixava, no mínimo, com uma aparência estranha devido ao sorriso permanente que ele estampava em seu rosto. Um dia corre na cidade a notícia de que Suzana havia matado Valquíria.
Em cidade, pequena, os fatos ficam rapidamente conhecidos por todos. Neste, especificamente, foi assim:
- Meu nome é Valquíria. Preciso conversar com o Cassiano.
- Ele não está – respondeu Suzana. Posso ajudá-la?
- O assunto meu é com ele. Só ele pode resolver – continuou Valquíria.
- Mas, - respondeu Suzana - se contar-me sobre o assunto, talvez eu possa responder.
- Eu já disse. Meu assunto é com ele.
- Sim, mas como sou mulher dele, talvez eu possa resolver o problema – continuou Suzana.
- Já falei, é problema que o Cassiano, e mais ninguém, tem que resolver comigo.
- Minha senhora, assim, sinto muito, mas não posso fazer nada – ponderou Suzana.
- Depois que se casou com você, ele mudou muito e quase não me procura mais – retrucou Valquíria.
- Como é que você está falando do Cassiano e você?
- Sim, nós sempre tivemos e temos um caso, tanto é assim que o filho que estou esperando é dele – asseverou Valquíria.
- Por favor, retire-se daqui e não venha importunar-me mais - reagiu Suzana.
- Você precisa saber que o Cassiano sempre foi meu antes de vocês se casarem, até mesmo depois de casado com você ele continua meu homem – esbravejou Valquíria.
- Retire-se daqui, imediatamente – falou Suzana e, ainda sob o efeito terrível de tais fatos que ouvira, fecha a porta.
Valquíria continuou esbravejando por algum tempo. Depois, desfere pontapés na porta enquanto grita impropérios. Finalmente retirou-se, mas não sem gritar palavras de baixo calão. Valquíria voltou outros dias e fazia sempre escândalos, cada vez maiores.
Em uma tarde, ao perceber que Valquíria estava novamente esmurrando a porta, Suzana abriu e, em meio a gritaria insana daquela, atirou a queima roupa.
A morte de Valquíria foi instantânea com o tiro no peito.
O júri do caso de Suzana foi realizado no salão de um dos clubes da cidade, pois o fórum local não comportaria o público que, sabia-se, queria assistir tal julgamento.
Contaram a Rogério que Suzana, grávida, estava deslumbrante. Ele não quis comparecer ou saber a decisão final do corpo de jurados e nem a que pena Suzana fora condenada. A vida continuou.
Anos depois corriam notícias de que Suzana separara-se e que se tornara dançarina em um programa famoso na televisão e que, depois, sumira.
Mas nada era afirmado com certeza quanto ao destino ou vida dela.
Aproximadamente 20 anos depois disso, quando Rogério era gerente de uma agência bancária em São Paulo, durante o atendimento, uma senhora se senta na poltrona à frente da mesa ocupada por ele.
- Bom dia, em que posso ajudá-la? – pergunta Rogério.
- Você não está me reconhecendo? – arguiu a cliente.
- A fisionomia da senhora não me é de todo desconhecido, mas infelizmente não estou me lembrando – desculpa-se Rogério.
- Eu sou a Suzana. Vim aqui para contar algumas coisas que acredito serem desconhecidas por você.
- Depois de encerrarmos nosso namoro, eu não queria mais namorar ninguém. Foi difícil para mim – continuou Suzana.
- Em certa ocasião conheci Cassiano e começamos a namorar. Eu não gostava dele, mas para tentar superar minha tristeza, aceitei o namoro.
Um dia ele convidou-me para passar o fim de semana na chácara dele. Aceitei, mas combinei de levar comigo meu irmão mais novo que eu, afinal não queria ficar sozinha com o Cassiano. Durante o dia foi feito churrasco e ele nos servia, bem como bebidas alcoólicas. Sem malícia, eu ainda uma garota e meu irmão ainda uma criança, fomos tomando, tomando até que em certo momento perdermos a consciência. Cassiano colocou-me e a meu irmão, desacordados, em quartos diferentes. No dia seguinte ele nos levou de volta à casa de meus pais. Lá chegando ele pediu para conversar com meu pai. Na conversa ele falou a meu pai que havíamos bebido demais e, infelizmente, o instinto havia prevalecido e que tinha consumado comigo o ato sexual, mesmo eu estando totalmente inconsciente.
Continuou dizendo saber que isso foi errado e queria corrigir o erro casando-se comigo. Meu pai, para consertar o acontecido, concordou. Eu fiquei estarrecida, pois não me lembrava de nada. Sabendo-me desonrada, conforme Cassiano descreveu, só me restou aceitar casarmo-nos. O triste é que só na noite de núpcias é que vim a descobrir toda a mentira contada por Cassiano. Eu não havia perdido a virgindade naquela ocasião. Não houve ato sexual algum naquele dia. Fora tudo um embuste para poder convencer-me a casar com ele, pois Cassiano tinha plena consciência de que normalmente eu não aceitaria casar-me com ele.
- Mas, minha desdita não parou aí – continuou Suzana. O mentiroso continuou sua vida traindo-me com outra, que vim a descobrir depois tratar-se de conhecida prostituta moradora em um bordel. Como manteve o caso com ela, acabou engravidando-a quase na mesma época que fiquei grávida dele. A amante procurou-me e começou a infernizar minha vida. Isto repetiu-se por muitas vezes, levando-me em momento de desespero, desengano e desilusão, a cometer o ato insano de atirar e acabar com a vida dela e do ser que ela carregava em seu ventre. Mas isso, desgraçadamente, não tem mais como consertar. Paguei por meu crime. Tive meu filho e hoje, moço e um rapaz lindo, ele é tudo que tenho agora em minha vida. Rogério ouvia tudo estupefato.
- Mas de uma coisa outra você não sabe, nem imagina. Eu sempre acompanhei, de longe, toda a sua vida. Sei de tudo que você fez de bom, as dificuldades que enfrentou e superou, além das vitórias que conseguiu com sua perseverança e garra. E quero que você fique sabendo: eu nunca, nunca me esqueci de você! – arrematou Suzana.
Dizendo isso, ela com um breve gesto de despedida levantou-se e saiu, igual a quando havia entrado, como um espectro que chegou materializando-se e depois partiu esfumando-se no tempo e no espaço, para nunca mais reaparecer.
REFERÊNCIA
(1) Ricto: contração da face e dos lábios para dar aparência de riso.
*BENEDITO GODOY MORONI
-Advogado, jornalista e escritor;
-Graduado em Direito pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, Universidade de São Paulo(1972); e
-Membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e da Academia Venceslauense de Letras.
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