Autora: Kelly Lima Martins*
O feminicídio, assassinato de mulheres, em um contexto marcado pela desigualdade de gênero, vem se agravando e crescendo alarmantemente. Tal crime vem avançando em todo mundo, sendo El Salvador o líder do maior número de casos. O Brasil, entre os 84 países, está em 5° lugar no ranking.
Por setenta anos, a igualdade de gênero foi consagrada na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Há quase quarenta anos, foi adotada a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher; e há 25 anos, a Declaração e o Programa de Ação de Viena estabeleceram que os direitos das mulheres são uma parte indivisível dos Direitos Humanos.
No entanto, especialistas apontam que nenhum país do mundo eliminou com sucesso a discriminação contra as mulheres ou alcançou a igualdade de gênero total, existindo, portanto, a urgente necessidade de proteger as conquistas passadas e avançar para garantir a igualdade para as mulheres em todos os lugares do planeta.
O feminicídio traduz claramente um crime de sexismo, uma vez que retém, mantém ou reproduz uma lógica de poder a que as mulheres estão submetidas, ou seja, território não é o mesmo que espaço ou lugar, mas refere-se à administração política do espaço, contudo, território é espaço traçado, delimitado e controlado, seja por um sujeito individual ou coletivo. Portanto, falar em território é falar de relações de domínio e de poder.
Um vultuoso numero de mulheres são mortas diariamente simplesmente em virtude do gênero, são vítimas de toda ordem de agressões físicas, morais e psicológicos, e, infelizmente, tais agressões, na maioria dos casos, vem de alguém próximo como, marido, namorado ou ex-parceiros. Mortas não pelo que são biologicamente e sim pelo que, socialmente, são impelidas a não serem.
Com base na dimensão de gênero, tais ações compreendem a verdadeira natureza de um crime que importa na despersonificação das mulheres. O feminicídio revela uma ação depredadora dos corpos femininos ou feminizados, Uma ocupação calcada em um sistema que não só a tolera, como, ao subalternizar o feminino, a promove. Assim, o território corporal das mulheres é violado para consumar a morte, ou efetivar sua tentativa.
A Lei nº11.340/2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha, surgiu como forma de combate à violência doméstica e trouxe amparo legal para os casos de crimes envolvendo essa problemática. Foi apregoada em 7 de agosto e 2006 e batizada com este nome pelo então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, em homenagem a uma vítima da violência e ícone da luta contra a violência doméstica no Brasil, a biofarmacêutica Maria da Penha Maia.
Essa lei foi embasada no parágrafo 8º do artigo 226 da Constituição Federal, na Convenção sobre a eliminação de todas as formas de violência contra a mulher, na Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher e em outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil, com o objetivo de criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.
A Lei Maria da Penha instituiu a criação de juizados especiais para os crimes previstos nessa legislação e estabeleceu medidas de assistência e proteção às vítimas, além de assegurar a criação de políticas públicas para a garantia dos direitos da mulher.
Em março de 2015, viu-se outro momento importante desse contexto tomar lugar – a sanção da lei nº 13.104/2015, que instituiu a qualificadora do feminicídio, cujo ideário consistiu na sua previsão como circunstância qualificadora do crime de homicídio e na sua inclusão no rol dos crimes hediondos. Em seguida à aprovação, veio a sanção pela Presidenta da República, sob a declaração: "Não aceitem a violência dentro e fora de casa. Denunciem, e vocês terão o Estado brasileiro ao seu lado".
Há que se atentar para o fato de que o reconhecimento expresso das particularidades que envolvem o feminicídio justifica o tratamento diferenciado que lhe fora conferido nessa lei.
Sendo assim:
Ela não significa que a vida de uma mulher ou de uma criança do sexo feminino tenha mais valor do que a de um homem ou de um menino.
O que ocorre, na dura realidade brasileira, é que as mulheres e as meninas vêm sofrendo muito mais violência no âmbito doméstico e familiar e também em razão de pertencer ao sexo feminino, do que os homens, merecendo, por isso, maior proteção do legislador penal. Isso nada tem a ver com igualdade ou desigualdade de sexos. A nosso ver, trata-se de acertada política criminal que não só́ acrescentou o feminicídio como uma das modalidades de homicídio qualificado, como também considerou-o crime hediondo, alterando o art. 1º, I, da Lei nº 8.072/1990 (DELMANTO et al., 2016, p. 444).
Ou seja, o que a concepção do fenômeno feminicídio para a autora em questão objetiva comunicar é que o corpo das mulheres acaba assimilando todos os reflexos de uma cultura patriarcal que se funda em dois eixos: um eixo assimétrico vertical (que coloca as mulheres em posição de submissão aos homens) e um eixo simétrico horizontal (que relaciona os homens com seus pares e constitui uma lógica social de submissão das mulheres).
Essa arquitetura das relações de gênero resvala no espaço mais íntimo da existência humana, que é o corpo. Por fim, nesse sentido, o corpo das mulheres acaba sendo invadido e exterminado pelos pares de um eixo masculino voraz que nele inscrevem a assinatura de uma fratria inteira. Enfim, esse horizonte inteiro é negado pela supressão da expressão gênero e sua substituição pela expressão sexo, no texto legal.
Os movimentos feministas têm desempenhado um papel fundamental no descortinamento de intrincadas relações de desigualdade e assimetrias de poder pautadas pelas desigualdades de gênero.
Na prática, as teorias feministas demonstra como complexas redes de relações e estruturas sociais localizam diferentemente os diferentes sujeitos em relações assimétricas de poder e, mais ainda, que tais relações independem, em grande medida, do fato de como os indivíduos exercem ou experimentam individualmente esse poder ao longo de suas vidas.
Apesar das diferentes ênfases e enfoques, podemos afirmar que as teorias feministas não negam o papel da ação individual e coletiva, ou as possibilidades de autonomia. Entretanto, essas teorias iluminam o fato de que, para tratarmos de temas como autonomia e liberdade, é necessário dar atenção a estruturas e sistemas de dominação e opressão.
Salientamos, então, que a criminalização possui um papel político importante para a construção do status da cidadania igual para todas/os, em determinadas circunstâncias. Este papel, de reprovação, não é apenas um papel simbólico ou subjetivo na construção de um imaginário comum que reprova um crime. A questão é que a reprovação pública possui efeito concreto no aumento de segurança, confere possibilidades, confere direitos, e isso vai além de um sentimento subjetivo, passando por uma redistribuição de poder.
A questão tem efeito prático na medida em que aumenta as salvaguardas das mulheres e estas salvaguardas são construídas de modo público, amplo, quiçá, diminuindo a deferência, o temor e a benevolência das mulheres em relação àqueles que devem ser seus iguais (sejam homens ou mulheres) e, principalmente, diminuindo o poder dos agressores.
Desde a sanção da lei nº 13.104/2015, tem havido certo dispêndio de energia e um engajamento fundamental de diversas frentes feministas brasileiras dedicadas a demonstrar que há um ganho significativo com o processo de criminalização. Esse ganho, em boa parte das vezes, é referido como um registro simbólico do problema.
Ao defender que a ênfase seja atribuída à dimensão política desse processo de judicialização, não ignoramos que esta também pode se apresentar como um terreno simbólico. Entretanto, cremos que o registro meramente simbólico tende a comprometer movimentos concretos que são alçados com base na lei, deixando-a no campo da alegoria, da crença vazia.
A constituição de um tipo penal derivado pode contribuir para gerar novas estatísticas, novos discursos jurídicos, mudanças no imaginário cultural, novas demandas por igualdade. Constitui-se, também, na tradução política de uma vivência das mulheres – política na medida em que vai para a esfera pública, transformando-se em lei. Não se pode esquecer, igualmente, que as demandas por judicialização fazem parte de uma configuração específica dos feminismos latino-americanos. É uma marca da incessante busca pelo exercício da cidadania.
A dignidade humana deriva das qualidades peculiares aos seres humanos e sua salvaguarda visa a possibilitar o desenvolvimento dessas capacidades e a realização integral da pessoa.
Para que a condição de vulnerabilidade se extinga, é necessário que haja mudanças drásticas na relação entre os vulneráveis e o grupo social mais amplo do qual fazem parte.
Em tese, o gênero representa uma diferenciação. Neste sentido, pode ser até mesmo muito positivo. Todavia, é extremamente negativo quando a diferenciação entre homens e mulheres se transforma em hierarquias, seja na direção de inferiorizar a mulher, o que acontece em todas as sociedades em maior ou menor grau, seja na direção oposta.
Para todas as sociedades, o ideal seria uma organização de gênero que mantivesse no mesmo patamar, quanto às probabilidades de exercício do poder, homens e mulheres. Condição sine qua non para isto consiste em atribuir o mesmo valor ao feminino e ao masculino. Esta é uma utopia que vale a pena perseguir.
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*KELLY LIMA MARTINS
Bacharela em Direito pela Faculdade Maurício de Nassau/PB;e
-Pós graduada em criminologia e psicologia investigativa criminal pela UNIPÊ/PB;
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