Autor; Batuira Rogério Meneghesso Lino (*)
"Impatients de leur présent, ennemis de
leur passé et privés d’avenir, nous ressemblions bien ainsi à
ceux que la justice ou la haine humaines font vivre derrière
des barreaux." (Albert Camus – La Peste ) (1)
De início, repito aqui no Blog, ao meu caro amigo Werneck, que embora me
tenha reservado a área de Direito, para escrever, procuro fazê-lo com o
mínimo de tecnicidade, visto que seu alcance vai além da comunidade
jurídica.
A questão de que me proponho a tratar aqui tem a ver com a ideia de
Liberdade, cujo conceito é objeto de discussão desde a mais remota
antiguidade e que tem, inclusive, um conceito que lhe é oposto, qual seja o
do Determinismo.
Mas, como não sou filósofo e nem quero que me digam, como fez Apeles (2)
ao sapateiro, "não vá além das sandálias" vou às "obviedades", - conceitos
que apesar das aparências não têm nada de óbvios – e foram aprendidos nos
bancos de primeiro ano da saudosa Faculdade de Direito.
O primeiro deles é que, para viver-se em civilização, nenhum direito e
nenhuma liberdade podem ser absolutos. Deixar ao ser humano a liberdade
total e absoluta é retornar ao período anterior ao da idade da pedra, para
dizer o mínimo.
Em interessante artigo o teólogo Leonardo Boff afirma:
"Segundo Nietzsche,
o ser humano é um ser paradoxal, são e doente: nele vivem o santo e o
assassino. Bioantropólogos, cosmólogos e outros afirmam: o ser humano é,
ao mesmo tempo, sapiente e demente, anjo e demônio, diabólico e simbólico.
Freud dirá que nele vigoram dois instintos: um de vida que ama e enriquece
a vida e outro de morte que busca a destruição e deseja matar. Nele coexistem as duas forças. Por isso, nossa existência é complexa e dramática.
Ora predomina a vontade de viver, tudo irradia e cresce. Noutro momento,
ganha a partida a vontade de matar e então irrompem violências e crimes." (3)
Daí o porquê da necessidade da Lei, conjunto de normas fixadas – quase
sempre - por consenso social, para traçar os limites desses direitos e
liberdades individuais. Tais limites estão fundados em um outro princípio
geral, a saber "A liberdade de cada um termina onde se inicia a liberdade do
próximo".
Todos esses conceitos são intuitivos a qualquer do povo.
Nesse passo, tomemos o texto da Lei. A Constituição Federal, em seu artigo
5º, garante a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país, o direito
inviolável “à liberdade”, entre outros, nos termos que passa então a
estabelecer para, logo em seguida (inciso II do art. 5º) afirmar que "ninguém
é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei".
Ou seja, o "óbvio": sou livre para fazer o que a lei não proíbe, mas não posso
fazer o que ela proíbe.
Parece um lugar-comum, não é? Até crianças entendem um conceito tão
simples. Mas daí a respeitar a Lei vai uma abissal distância.
Há necessidade de algum mecanismo para forçar a sua observância.
O que nos leva a um terceiro princípio: "Não existe lei sem sanção" (4).
Com efeito, na maioria dos casos não se pode impedir que alguém cometa
um ilícito, penal ou civil. Por esse motivo, como fator desestimulador ou
punitivo, a lei estabelece sanções a quem a viola, sejam sanções físicas
(prisão) sejam pecuniárias (multas e indenizações)
Dito isso, vamos passar a um tema polêmico da atualidade, envolvendo
liberdade, lei e sanção.
- A vacinação contra a Covid pode ser obrigatória?
- Em sendo, essa obrigatoriedade viola a liberdade individual?
- Não sendo obrigatória, é possível restringir certos direitos aos não
vacinados, ou isso violaria sua liberdade individual?
Para tentar responder às questões, lembremo-nos do conceito sobre a
amplitude de Liberdade, acima exposto: "A liberdade de cada um termina
onde se inicia a liberdade do próximo".
Já é mais do que sabido que o vetor do vírus da Covid é o próprio ser humano.
Por tal motivo têm-se imposto normas sobre isolamento social, lockdown, uso
obrigatório de máscaras etc. Tais normas, evidentemente restringem a
liberdade individual, mas, de modo geral, têm sido voluntariamente
respeitadas pela grande maioria da população.
A discussão, porém, se acirra, quando se trata da compulsoriedade da
vacinação. Com efeito, como ninguém pode ser vacinado à força (isto sim,
um atentado à liberdade individual) necessário se faz um controle para evitar
a exposição dos vacinados e os que ainda aguardam vacinas, contra aqueles
que não querem se vacinar, seja por puro negacionismo, seja por motivos
religiosos ou quaisquer outros.
E agora estamos tratando não mais de direitos individuais, mas do direito
coletivo à saúde, cuja violação não pode ser admitida e que supera, em muito,
a liberdade individual, justamente por abranger toda a sociedade.
A esse respeito dispõe a Constituição Federal:
“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e
de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços
para sua promoção, proteção e recuperação.”
“Redução do risco de doença”, ou seja, medicina preventiva, categoria na
qual se destaca a proteção vacinal.
Consequentemente, não sendo possível vacinar ninguém à força, o que resta
é estabelecer sanções àqueles que se negam a tomar vacina.
A rigor a sanção a tal comportamento já existe, porque não se vacinar e
circular livremente, com ou sem máscaras e outras medidas protetivas, pode,
em tese, tipificar o crime de periclitação de vida ou saúde, regulados nos
artigos 130 a 136 do Código Penal, com destaque para o artigo 132:
"Art. 132 - Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e
iminente:
Pena - detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui
crime mais grave.
Parágrafo único. A pena é aumentada de um sexto a um terço se a
exposição da vida ou da saúde de outrem a perigo decorre do
transporte de pessoas para a prestação de serviços em
estabelecimentos de qualquer natureza, em desacordo com as
normas legais."
Porém, num momento em que estamos novamente vivendo a Peste, os
legisladores, no Brasil e no mundo, tentam encontrar uma solução que, ao
mesmo tempo sirva como incentivo a que as pessoas se vacinem, ou de
punição a quem se nega a fazê-lo.
Trata-se de medida administrativa de obrigatoriedade de apresentação do "passaporte vacinal", para várias atividades, que vão da frequência a lugares
fechados, a viagens de longa distância, em veículos fechados, sejam ônibus,
navios ou aviões.
Alegam os detratores dessa medida que isso constitui uma ofensa à sua
liberdade individual, o que é, a meu ver, é um total disparate. Com efeito, o
que impede o dono da quitanda, de atender o freguês que está sem máscara?
Trata-se da contraposição de dois direitos constitucionais: o de propriedade
e o de livre locomoção.
A questão, como sempre, é de uso de puro bom senso. Quem não quer
vacinar-se, não o faça, mas não coloque em risco a saúde da maioria.
Enfim, como diz Nietzsche, citado por Leonardo Boff: "o ser humano é um ser
paradoxal, são e doente: nele vivem o santo e o assassino".
Referências
1 Impacientes com seu presente,
inimigos de seu passado, e privados do porvir, parecíamos muito com os que a
justiça ou o ódio fazem viver atrás das grades
2 Apeles (370 a 306 a.c.)
escultor grego, dirigindo-se a um sapateiro que começou a criticar uma sua
obra, a partir de como estavam esculpidas as sandálias e se pôs a criticar toda
a escultura.
3 Leonardo Boff,
https://www.otempo.com.br/opiniao/leonardo-boff/o-ser-humanoe-um-ser-paradoxal-nele-vivem-o-santo-e-o-demonio-1.215820
4 Segundo Hans Kelsen. A questão
tem comportado discussões teóricas, que não vem ao caso analisar nessas curtas
considerações, mas parece intuitiva a questão de que uma lei sobre comportamento
humano que não tenha sanção, é absolutamente inútil.
(*) BATUIRA ROGÉRIO MENEGHESSO LINO
-Advogado em São Paulo;
Graduado em 1972 pela USP;
-Atuando na área de consultivo e contencioso cível;
-É sócio do escritório Lino, Beraldi e Belluzzo Advogados.
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