A comparação entre textos literários e composições musicais é eleita com frequência como foco de discussão e investigação, em vista da influência constante que uma arte exerce sobre a outra. A riqueza de seus campos permite inúmeras formas de interação, tanto na criação artística quando na apreensão de seus significados. Música e literatura costumam ser aproximadas, entre outros motivos, pelo fato de se desenvolverem no tempo e por terem sua base material na sonoridade. Em decorrência desse diálogo e do aproveitamento que a sua exploração pode gerar na escola, propõe-se uma reflexão sobre o estudo da canção no Ensino Médio, considerada em suas relações com a literatura e em sua especificidade enquanto gênero de caráter intersemiótico.
É comum que o professor de Língua Portuguesa e Literatura contemple a canção em suas aulas, uma vez que se trata de uma produção cultural presente no cotidiano dos alunos e representativa de questões essenciais do seu tempo. Os próprios Parâmetros Curriculares Nacionais da Educação Básica indicam a canção como um gênero discursivo a ser estudado na escola, admitindo, por um lado, a importância do gênero na formação cultural brasileira e, por outro, seu papel na ampliação do repertório de leitura dos estudantes. No entanto, cabe questionar em que medida a canção é efetivamente entendida em sua natureza específica e se o seu estudo de fato implica em um ir além dos textos e abordagens tradicionalmente presentes no contexto escolar.
Nos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio, a canção é referida em dois momentos. Inicialmente, ela é mencionada na seção que trata das habilidades e competências a serem desenvolvidas na disciplina de Língua Portuguesa, mais especificamente na habilidade de “reconhecer recursos expressivos das linguagens”, sendo apontada como um dos exemplos de produção em que é possível identificar o recurso expressivo da sonoridade:
"Na vida social, e não somente na sala de aula, o aluno deve ser capaz de reconhecer como a linguagem foi organizada para produzir determinados efeitos de sentido. É desejável, portanto, que saiba apreciar esteticamente a sonoridade de uma canção que ouça no rádio, os efeitos de sentido de uma frase lida em um outdoor, as entrelinhas de um texto publicitário publicado em uma revista, e assim sucessivamente (BRASIL, 2002, p. 65)."
Depois, a canção é referida novamente no capítulo dedicado à área da Arte: “Nas canções, poderemos encontrar a articulação do signo linguístico (palavra) e a simbologia referente a ele na melodia. Assim, uma canção romântica tem a melodia articulada ao romantismo da letra” (BRASIL, 2002, p. 181). Como se observa, embora a canção seja sugerida como objeto de estudo, não há uma orientação em relação à abordagem a ser adotada em sala de aula, o que gera um vazio em termos metodológicos e acaba, muitas vezes, restringindo o estudo da canção à discussão de sua temática.
O trabalho com a canção pode ser parte do estudo direto de um movimento estético que tenha exercido papel importante na identidade cultural em um dado período histórico. Um exemplo marcante nesse sentido é o estudo das canções do Tropicalismo, que se configurou em um movimento cultural brasileiro com manifestações na literatura, nas artes plásticas, no teatro e, em especial, na música.
Definir o que é canção é fundamental para a sua inserção como conteúdo na escola. Embora o contato com o gênero seja comum na experiência cultural do estudante, sua definição nem sempre é mencionada em situações de ensino. Massaud Moisés aponta que várias conotações revestem o vocábulo “canção”. De modo genérico, a canção designa toda a composição poética destinada ao canto ou que encerra nítida aliança com a música (1999, p. 68).
Do latim cantione, “canto, canção, encanto, encantamento”, pode incluir textos de índole bastante diversa, podendo ser popular ou erudita. Desse modo, por estar situada na fronteira entre literatura e música, a canção é definida como um gênero híbrido, de caráter intersemiótico, resultante da conjugação de dois tipos de linguagens, a verbal e a musical. Por sua constituição híbrida, a canção pressupõe o domínio da competência lítero-musical, que consiste na articulação entre as linguagens verbal e musical (COSTA, 2002, p. 18). Além disso, a canção é um gênero produzido entre a oralidade e a escrita, requerendo um entendimento dessa heterogeneidade.
O exame mais detido dos elementos constituintes da canção contribui para o aprimoramento de habilidades e competências de expressão oral e escrita, bem como de leitura e interpretação. Portanto, a formação de leitores/ouvintes críticos de canção na escola está em consonância com os objetivos dos Parâmetros Curriculares Nacionais da área das Linguagens, que visam tornar o aluno apto a ler, interpretar e produzir textos dos distintos gêneros textuais que circulam nas diversas situações da vida social. O papel do professor é o de organizar atividades e conhecimentos, a fim de promover a interação dos alunos com o maior número possível de textos de forma aprofundada, dialógica, crítica e criativa. Nesse sentido, ao ampliar o contato com os gêneros discursivos na escola, o estudo da canção pode se constituir em uma prática produtiva para a configuração de uma sociedade mais autônoma nos modos de pensar, agir e interagir.
REFERÊNCIAS:
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros curriculares nacionais: ensino médio. Brasília: MEC, 2002. 360 p;
COSTA, Nelson Barros da. Canção popular e ensino da língua materna: o gênero canção nos parâmetros curriculares de língua portuguesa. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, v. 4, n.1, p. 9-36, jul./dez. 2003;e
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1999.
POR CINARA FERREIRA
- Doutora em Letras, área de Literatura Comparada, UFRGS e
-Docente do Instituto de Letras, da UFRGS.
-Docente do Instituto de Letras, da UFRGS.
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