Muitas
são as profissões no Brasil que se submetem à regulamentação e fiscalização dos
chamados conselhos de classe profissional, sendo alguns bastante conhecidos
pela população, como o Conselho Federal de Medicina, Conselho Federal de
Engenharia e Agronomia, Conselho Federal dos Corretores de Imóveis, Conselho
Federal de Economistas, e tantos outros, bem como seus respectivos Conselhos
Regionais, muitas vezes até mais famosos, eis que atuam diretamente na ponta,
em contato direto com a sociedade.
Por óbvio, ao falar das entidades mencionadas, muitas pessoas se lembrarão da Ordem dos Advogados do Brasil, a OAB, talvez a mais conhecida, popular e atuante na sociedade dos órgãos que lidam com categorias profissionais. Mas a OAB tem algumas distinções e peculiaridades que a diferencia das demais entidades referidas, e que não serão discutidas nesta oportunidade.
Tais órgãos são necessariamente criados por lei federal, e possuem natureza de autarquia federal sui generis, com delegação do Estado para o exercício da regulamentação e fiscalização das profissões ditas liberais, exercendo assim, atividade típica de Administração Pública, o que as sujeita aos requisitos e princípios que norteiam o serviço público.
Diz-se que sua natureza é sui generis, porque ao contrário das outras autarquias federais, os conselhos de classe profissionais não estão vinculados, nem sujeitos à supervisão ministerial, possuindo liberdade e autogestão que independem completamente da estrutura do Governo Federal, sendo mantida e gerida justamente pela classe profissional regulamentada e fiscalizada.
Desta forma, seus funcionários são servidores públicos, cujos cargos, salvo as exceções constitucionais, são acessíveis por concurso público, e suas gestões são submetidas ao controle do Tribunal de Contas da União (TCU).
Enquanto autarquias possuem autonomia, tanto jurídica, administrativa quanto financeira, seu patrimônio é próprio, constituído principalmente pelas anuidades arrecadadas, que são contribuições sociais de natureza tributária.
No seu magistério MEDAUAR[1], sobre tais entidades, asseverou que:
"Trata-se de organismos destinados, em princípio, a administrar o exercício de profissões regulamentadas por lei federal. São geridos por profissionais da área, eleitos por seus pares. De regra, têm estrutura federativa, com um órgão de nível nacional e órgãos de nível estadual. As leis que regulamentam profissões e criam ordens ou conselhos transferem-lhes competência para exercera fiscalização do respectivo exercício profissional e o poder disciplinar. A chamada polícia das profissões, que originariamente caberia ao poder público, é, assim, delegada às ordens profissionais que, nessa matéria, exercem atribuições típicas do poder público."
Muito
embora a figura dos Conselhos sejam anteriores à Lei nº9.649/98, esta trouxe em
seu art. 58, enfim, uma consolidação das regras gerais para tais entidades,
estabelecendo em seu caput que "os serviços de fiscalização de profissões
regulamentadas serão exercidos em caráter privado, por delegação do poder
público, mediante autorização legislativa".
Ainda em seu § 1º, determinou que "a organização, a estrutura e o funcionamento dos conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas serão disciplinados mediante decisão do plenário do conselho federal da respectiva profissão, garantindo-se que na composição deste estejam representados todos seus conselhos regionais" e que, conforme o §2º, "os conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas, dotados de personalidade jurídica de direito privado, não manterão com os órgãos da Administração Pública qualquer vínculo funcional ou hierárquico".
Como cada Conselho é criado por uma lei própria, a redação de cada diploma utiliza terminologia própria, algumas vezes com pouca semelhança entre estas.
Na verdade, embora a Lei nº 9.649/98 fale em "conselho de fiscalização de profissões regulamentadas" não há um consenso sobre qual nomenclatura caiu nas graças da doutrina, alguns classificando como "conselho de fiscalização profissional", "conselho profissional", ou "conselho de classe profissional" (a que preferimos seguir), e da mesma forma, existe alguma controvérsia doutrinária sobre qual seria, precisamente, o termo adequado a definir a sua natureza jurídica enquanto autarquia, alguns preferindo o termo "autarquia profissional", outros "autarquia especia" ou "autarquia sui generis".
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) possui algumas teses consolidadas sobre tais entidades, e na primeira tese, estabelece que "os conselhos de fiscalização profissionais possuem natureza jurídica de autarquia, sujeitando-se, portanto, ao regime jurídico de direito público".
Entretanto, o termo "conselhos de fiscalização profissional" não é uníssono em todas as teses e julgados, sendo que em outros momentos, são chamados simplesmente de "conselhos profissionais", como na segunda tese, que diz que "com a suspensão da redação dada pela Emenda Constitucional n. 19/1998 ao caput do art. 39 da Constituição Federal de 1988, no julgamento da Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.135/DF, o regime jurídico dos conselhos profissionais deve ser, obrigatoriamente, o estatutário".
Independente da nomenclatura utilizada e do tipo autárquico que a doutrina atribui, não restam dúvidas quanto à natureza pública das entidades, embora sua gestão possa-se dizer, seja exercida pelos próprios profissionais liberais, que terão vínculo direto com a Administração Pública por meio da eleição pelos seus pares, da mesma forma que os agentes políticos detentores de cargos eletivos nas esferas do Poder Executivo e Legislativo.
Daí vem o problema que o presente artigo se propõe a enfrentar: as eleições para escolha dos dirigentes dos conselhos.
Como bem lembrou a Professora Odete Medauar, o sistema padrão utilizado e difundido no país criou Conselhos Federais e seus respectivos Conselhos Regionais.
Assim, temos muito mais cristalizado na memória popular, o CRECI (Conselho Regional de Corretores de Imóveis ) e o CREA (Conselho Regional de Engenharia e Agronomia), do que propriamente o COFECI (Conselho Federal de Corretores de Imóveis) e o CONFEA (Conselho Federal de Engenharia e Agronomia).
Por isso, as eleições atraem uma disputa muito grande no âmbito dos órgãos regionais, que na maioria das vezes, são os dirigentes escolhidos pela classe, reservando-se aos conselhos federais um colegiado extraído dos próprios conselhos regionais.
Como já tratado acima, não resta a menor dúvida que os Conselhos Profissionais são regidos pelas normas de Direito Público, em especial as do Direito administrativo, o que se inclui, obviamente, a aplicação dos princípios constitucionais e infraconstitucionais do Direito Administrativo.
Os
Princípios Constitucionais que encontram expressa previsão no caput do art. 37 da Carta Magna, são os
da legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência, além de outros estudados pela
doutrina e jurisprudência.
Entre os outros princípios destacados pela doutrina e jurisprudência, também de vital importância ao Direito Administrativo, estão os princípios da Supremacia do Interesse Público, da Autotutela, da Razoabilidade e Proporcionalidade, da Motivação, da Segurança Jurídica, do Devido Processo Legal e do Contraditório e da Ampla Defesa.
Não existe a menor possibilidade de se afastar a aplicação de tais princípios ao analisar a legalidade de atos internos ou ainda de reflexos externos, da parte de um órgão desta natureza.
Ademais, por força de aplicação do art. 58 da Lei 9.649/98, "os serviços de fiscalização de profissões regulamentadas serão exercidos em caráter privado, por delegação do poder público, mediante autorização legislativa".
Em se tratando de uma atividade delegada, fica expressa a previsão legal de se tratar de Poder Público, e como tal, não há como fugir das premissas básicas do Direito Administrativo.
Considerando todos os fatos jurídicos acima apontados, e agora já adentrando no campo eleitoral no âmbito de tais entidades, podemos ter clareza e segurança em afirmar que da mesma forma, a aplicação do Direito Eleitoral no âmbito das eleições dos Conselhos Profissionais, é consequência natural da finalidade tais processos.
No Brasil, mais especificamente, o Direito Eleitoral evoluiu a ponto de se configurar um ramo autônomo do Direito, invocando preceitos e princípios próprios.
Em sua melhor classificação, o Direito Eleitoral é definido por CÂNDIDO[2], como "o ramo do Direito Público que trata de institutos relacionados com os direitos políticos e das eleições, em todas as suas fases, como forma de escolha dos titulares dos mandatos eletivos e das instituições do Estado"
Antes de sua evolução para os moldes atuais, o Direito Eleitoral no Brasil passou por diversas fases, onde em maior ou menor grau, não era a vontade da maioria que prevalecia.
No nascedouro da República, o privilégio do voto era para poucos abastados, o que foi progressivamente evoluindo até o modelo atual, onde a regra geral dá completa amplitude ao sentido de colégio eleitoral, como a demonstração da vontade manifesta da maioria.
Por isso, ao longo de sua evolução, foram se cristalizando princípios norteadores e sob a sombra de tais, foi se consolidando o modelo atual de escolha dos membros do Poder Executivo e Legislativo nos âmbitos federais, estaduais e municipais, em que toda a organização, normatização, administração e fiscalização do processo eleitoral é feito pelo Poder Judiciário, que além de suas atribuições naturais jurisdicionais, abraça tais outras, de forma excepcional.
O deslocamento de tão atípica função administrativa e regulamentar para o Poder Judiciário se deu a fim de evitar o visível conflito de interesses dos demais poderes, Executivo e Legislativo, exercidos por mandatários escolhidos justamente por este processo.
No entanto, a doutrina ainda não consolidou, eis que não estão expressos na legislação – ao contrário, por exemplo, do Direito Administrativo – quais são os princípios do Direito Eleitoral, mas com algumas variações, eles se aproximam de um rol seleto, que inclui entre outros, aqueles citados por CHALITA[3], como o Princípio da vedação da restrição de direitos políticos, da democracia partidária, da anualidade eleitoral, da celeridade da Justiça Eleitoral, da periodicidade da investidura das funções eleitorais e da responsabilidade solidária entre candidatos e partidos políticos.
Por isso, RAMAYANA[4] aponta um princípio de fundamental importância dentro do processo político e eleitoral, o qual chama de Princípio da lisura das eleições:
(...) Toda a atuação da Justiça Eleitoral, do Ministério Público, dos partidos políticos e candidatos, inclusive do eleitor, deve pautar-se na preservação da lisura das eleições. A preservação da intangibilidade dos votos e da igualdade de todos os candidatos perante a lei eleitoral e na propaganda política eleitoral ensejam a observância ética e jurídica deste princípio básico do Direito eleitoral. As eleições corrompidas, viciadas, fraudadas e usadas como campo fértil da proliferação de crimes e abusos do poder econômico e/ou político atingem diretamente a soberania popular tutelada no art. 1º, parágrafo único da Constituição Federal, "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição".
Se um processo eleitoral (ainda que dentro de um órgão de classe) não permitiu a igualdade de oportunidades, não demonstrou a lisura em todas as suas fases, e foi restritiva à ação de qualquer das partes, esse processo é viciado, e como tal não tem legitimidade para alçar o seu ilegítimo vitorioso ao cargo pleiteado.
Assim, negar a aplicação dos princípios do direito eleitoral nas eleições internas de um órgão de classe profissional, seria renegar a democracia e o Estado de Direito dentro da autarquia.
Desta forma, as regras de um processo eleitoral interno, devem buscar por espelho, não a vontade daqueles membros à época dos órgãos deliberativos encarregados pela elaboração do regulamento eleitoral, mas seguir os princípios da legislação eleitoral brasileira, e sua inspiração em diplomas consagrados como a chamada Lei das Inelegibilidades (Lei Complementar nº 64/1990), com os dispositivos incluídos pela Lei Complementar nº 135/2010, a comemorada "Lei da Ficha Limpa".
Por isso, a conclusão é que não poderia uma eleição de conselho profissional abraçar outras regras que não se harmonizem com o conjunto, com a base e com o sistema jurídico eleitoral brasileiro, que deverão ser observadas, quando consolidadas pelo órgão competente ao estabelecer o regulamento específico do pleito.
REFERÊNCIAS
[1] MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno, 5ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, pág. 108
*PAULO DE TOLEDO RIBEIRO
-Graduado em Direito pela Universidade Católica de Santos(1999);
-Especialista em Direito Eleitoral no curso de pós graduação latu sensu pela Universidade de Santa Cruz do Sul (2017);
-Advogado, militante na área do Direito Público na região da Baixada Santista (SP).
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