Autora: Giselda Hironaka(*)
O direito de herança é uma garantia fundamental. Esse status que hoje ocupa se deu por meio de uma antiquissima construção relacionada com o motivo pelo qual a sucessão acontece. Quantas vezes tantos já não se terão perguntado, em todos os lugares e em todas as épocas, a razão pela qual se realiza, após a morte de certa pessoa, a transmissão do acervo de direitos e de obrigações, que a ela pertenciam, a outra pessoa, fosse por designação legal, fosse por disposição testamentária.? O que, enfim, fundamenta e justifica o fenômeno da transmissão sucessória?
A sucessão parte de uma observação do funcionamento da própria natureza: animais que se agrupam jamais ficam sem um líder – caído um, outro imediatamente lhe toma o lugar, sucedendo-o em sua posição e status. Nas sociedades humanas, o fundamento mais antigo que se noticia é de ordem cultural e também religiosa, pois o sucessor ocupava o lugar do pater familias falecido, dele herdando tanto o poder sobre o núcleo familiar regido pelo acervo patrimonial quanto as obrigações religiosas, tornando-se o responsável pelo culto aos antepassados e aos deuses domésticos. Mais que essas coisas, o papel do sucessor, no seio da família e da cidade, era manter poderosa a família, impedindo a divisão de sua fortuna entre os vários filhos[1].
Por isso foi desenvolvida ao longo dos séculos a ideia da primogenitura, segundo a qual para o primogênito deveria ficar o comando e os principais bens da família, medida essa que contribuía para que o poder e a fortuna não fossem fragmentados após a morte, como acontecera, por exemplo, após a morte de Alexandre, o Grande, cuja morte foi sucedida por terríveis dissensos entre seus conselheiros, o que causou a ruptura do reino macedônico. Evidentemente, a ideia de distinção entre os filhos, seja em razão de primogenitura ou de bastardia, não mais subsiste, existindo inclusive disposição constitucional expressa a esse respeito (CF/88, art. 227, § 6º).
Depois, uma corrente defendida por Cimbali e D’Aguano entendeu que o fundamento da sucessão encontrava sua ênfase em pesquisas biológicas que buscavam demonstrar existir uma espécie de continuidade da vida humana por meio da transmissão de ascendentes a descendentes, não apenas das características genéticas, mas também das psicológicas. Como conclusão, os estudiosos advertiam que a permissão legal acerca da transmissão do patrimônio do morto para seus descendentes operava-se por razões de ordem biopsíquica[2]. Com o passar do tempo, essa corrente de matiz biológico foi enriquecida com novos fundamentos, como a afeição e a unidade familiar, atualizando e humanizando o tema[3].
Modernamente, essa corrente busca demonstrar que o fundamento da transmissão causa mortis estaria além da mera expectativa de continuidade patrimonial, quer dizer, na simples manutenção dos bens na família, como forma de acumulação de capital, que, por sua vez, estimularia a poupança, o trabalho e a economia[4]. Porém, mais que isso, o grande fundamento da transmissão sucessória habitaria o fator de proteção, coesão e perpetuidade da família[5].
Ora, se o direito sucessório visa garantir a família e a perpetuidade de bens – e considerando que ambas as coisas são direitos fundamentais –, daí surge a ideia de que a herança é, ela mesma, uma garantia fundamental.
Essa garantia atende a alguém, que é a pessoa do herdeiro. Então, na outra ponta, isto é, no polo passivo da relação jurídica transmissível causa mortis, encontra-se o herdeiro, pessoa para quem será transmitido o patrimônio do falecido, composto de seus direitos e também das obrigações que sejam transmissíveis.
Na qualidade de herdeiro poderão figurar tanto os herdeiros legítimos e testamentários quanto os legatários, conforme sejam agraciados, respectivamente, ou com uma quota-parte ideal do acervo ou com um bem determinado, específico, individualizado, a ser destacado da herança. A condição de legitimados a suceder é aferida no momento da abertura da sucessão, visto que nem mesmo lei posterior ao falecimento do autor da herança poderá afastar aquele que se encontrasse, naquele momento, legitimado a herdar.
Assim, o direito de herança atende aos herdeiros e é considerado um direito fundamental.
Essa característica foi reconhecida expressamente no texto da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF/88), que diz, no art. 5º, inc. XXX, que: "é garantido o direito de herança".
Esse entendimento da herança como um direito fundamental traz concreções relevantes.
Como primeira delas, pode-se trazer o fato de que "o próprio herdeiro pode requerer pessoalmente ao juízo, durante o processamento do inventário, a antecipação de recursos para a sua subsistência" (STJ, HC 256.793/RN, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 01-10-2013, DJe 15.10.2013). O julgado faz todo o sentido: ora, se a herança é um direito fundamental, não pode ficar ela presa na burocracia do processo de inventário enquanto o real titular perece, sendo agredido em sua dignidade. Se ele tem necessidade de recorrer às forças da herança, deverá conseguir fazê-lo, sob pena de se inverter totalmente os valores constitucionalmente protegidos.
Na mesma linha do julgado anterior, já foi decidido que não há necessidade de os herdeiros terem de se desfazer de seus bens para terem acesso à justiça na ação de inventário, por aplicação dos princípios constitucionais que colocam a herança como um direito fundamental da pessoa humana (TJRS, AI 409202-72.2013.8.21.7000). Sabe-se que o processo de inventário pode ser bastante custoso. Esse custo, então, não pode inviabilizar o direito de ação, sob pena de se estar tolhendo um direito fundamental desnecessariamente.
Também é retratado como corolário de os direitos à herança serem fundamentais a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil de 2002 (STF, RE 878.694/MG, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, j. 10.05.2017 e Informativo n. 864). Esse julgado acabou por extinguir a diferenciação que havia entre os regimes sucessórios dos cônjuges e dos companheiros, sendo que o primeiro era mais benéfico aos cônjuges do que o segundo era aos companheiros. A situação, da forma como estava, criava um contexto no qual a família gerada pelo matrimônio era melhor protegida e tutelada que a família gerada pela união estável. Só que isso é descabido segundo a CF/88, já que para esta não há diferenciação ou tratamento privilegiado para essa forma de constituir família sobre aquela outra forma. Nesse jaez, todas as famílias são iguais para a CF/88.
Outro desdobramento do fato de o direito à herança ser um direito fundamental é o de "o juiz reconhecer a sua proteção de ofício, independentemente de alegação da parte"[6]. E, finalmente, se o espólio vence uma ação, o produto dessa vitória deve passar a integrar o patrimônio do próprio espólio e, em última análise, deverá ser entregue credor para os demais (TJSP, AI 797.896.5/4).
Assim, portanto, conclui-se que, com o falecimento, a sucessão se opera imediatamente (princípio de saisine), e desde então os herdeiros têm direito fundamental à herança. Eles não podem ser tratados de forma desigual pela lei, e a herança deve existir para os servir (e não o inverso), de modo que os herdeiros podem requerer ao juiz que uma parte da herança seja usada para lhes ajudar na subsistência, mesmo que ainda não terminado o procedimento de inventário. De forma similar, os herdeiros podem usar dos bens do espólio para pagarem o processo de inventário, caso não tenham força financeira para suportarem eles mesmos tais custos. O direito à herança é, pois, um direito fundamental que não deve ser tratado levianamente.
[1] RODRIGUES, Silvio. Direito civil – direito das sucessões. 25. ed. atual. por Zeno Veloso, de acordo com o novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 7, p. 5;
[2] Conforme as lições de MONTEIRO, Washington de Barros e FRANÇA PINTO, Ana Cristina de Barros Monteiro. Curso de direito civil. 35. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. v. 6: Direito das sucessões, p. 7, e Diniz, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro – direito das sucessões. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. v. 6, p. 5;
[3] Por exemplo: MAXIMILIANO, Carlos. Direito das sucessões. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1937. p. 21-22;
[4] Segundo PEREIRA, Caio Mário da Silva , essa posição encontraria respaldo no jusnaturalismo de Grotius e Pufendorf (Instituições de direito civil. Rio de Janeiro: GEN/Forense, 2016. v. VI: Direito das sucessões, p. 5), ao qual Itabaiana de Oliveira acresce Wolf (Tratado de direito das sucessões. São Paulo: Max Limonad, 1952. v. I, p. 50);
[5] Ver PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, op. cit., p. 5, com base na posição de Itabaiana de Oliveira, Clóvis Beviláqua, Planiol, Ripert e Boulanger; e
[6] TARTUCE, Flávio. Direito civil. 12. ed. Rio de Janeiro: GEN/Forense, 2019. v. 6: Direito das sucessões, p. 7, referindo-se a TJRJ, ED na APL 2009.001.53173, 6ª Câmara Cível, Rel. Des. Gilberto Rego, j. 27.01.2010.
*GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA
-Advogada graduada pela Faculdade de Direito da USP(1972);
-Professora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP;
-Coordenadora Titular do Programa de Mestrado e Doutorado da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo – FADISP;
-Coordenadora Titular da área de Direito Civil dos cursos de Especialização da Escola Paulista de Direito;
-Fundadora e Diretora Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM;
-Diretora Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Civil – IBDCivil e
-Ex Procuradora Federal.
Nota do Editor:
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