@ Adriana Mello
A língua portuguesa está sempre em movimento. Ainda que a gramática pareça rígida, a forma como usamos as palavras no dia a dia muda com o tempo — e, nos últimos anos, a internet se tornou um verdadeiro laboratório de criação linguística. Termos antigos ganharam sentidos completamente novos, influenciados por memes, redes sociais, fandoms e debates sociais. A linguagem digital não apenas gera palavras, mas transforma o significado de expressões já conhecidas, revelando a criatividade dos falantes e as mudanças culturais em curso.
Um bom exemplo é a palavra "cringe", que veio do inglês e originalmente expressa vergonha alheia. No Brasil, ela viralizou em 2021, quando jovens da geração Z começaram a nomear como "cringe" alguns comportamentos dos millennials — como tomar café, usar calça skinny ou ouvir certas músicas. O termo rapidamente entrou no vocabulário popular, mesmo entre quem nem sabia pronunciar a palavra corretamente. Outro caso curioso é "ranço": antes relacionado a alimentos estragados, hoje serve para expressar antipatia por alguém. Você pode não saber explicar a origem, mas com certeza já ouviu (ou disse) "peguei ranço" de alguém, seja uma figura pública ou não.
A internet também ampliou o uso de "lacrar", que antes significava apenas fechar algo com lacre, como uma carta ou um envelope. No contexto digital, lacrar virou sinônimo de causar impacto, brilhar, dar uma resposta de efeito ou vencer um debate, principalmente em temas sociais. Expressões como "fulano lacrou no discurso" tornaram-se comuns. Já o termo “cancelar” ganhou novos contornos com a chamada "cultura do cancelamento": hoje, alguém pode ser "cancelado" nas redes por atitudes consideradas ofensivas ou polêmicas, o que muitas vezes resulta em críticas massivas e boicotes virtuais.
Os neologismos não param por aí, surgiu até um verbo que não existia no dicionário: "shippar". Derivado do inglês relationship, ele significa torcer para que duas pessoas fiquem juntas, seja na vida real ou na ficção. É comum entre fãs de séries e novelas: "eu shippo muito esse casal!". Essa criatividade linguística mostra como a cultura pop e a internet são forças ativas na evolução do português, principalmente entre os mais jovens.
Boa parte dessas transformações está ligada ao fenômeno dos empréstimos linguísticos, especialmente do inglês. A internet aproximou o Brasil de outras culturas, principalmente da norte-americana, o que facilitou a entrada de termos como crush, fake news, hater, streaming, entre muitos outros. Diferente de um tempo em que estrangeirismos eram vistos com desconfiança, hoje eles são incorporados rapidamente, muitas vezes sem tradução, por parecerem mais "naturais" no ambiente digital. Esse processo é comum em qualquer idioma vivo — o português, por exemplo, já incorporou no passado palavras do francês (abajur), árabe (almofada) e do italiano (novela).
É interessante notar que nem sempre esses termos vêm apenas por necessidade de nomear algo. Muitas vezes, o uso de estrangeirismos reflete também tendências culturais, desejo de pertencimento e modernidade. Palavras como trending, spoiler ou delivery não são só práticas: elas criam um estilo de comunicação ligado ao universo online, jovem e globalizado. Embora ainda haja debates sobre o uso excessivo de termos estrangeiros, é importante perceber que essas mudanças acontecem a partir do uso real das pessoas — não por imposição, mas por adaptação.
Como aponta a pesquisadora Lucia Santaella (2003), a cibercultura tem moldado profundamente os modos de interação e expressão, criando formas de linguagem que desafiam os modelos tradicionais. Ela destaca que as mídias digitais alteram não apenas os suportes da comunicação, mas também os próprios sentidos atribuídos às palavras no ambiente virtual. O meio digital, segundo a autora, não é neutro: ele condiciona práticas linguísticas e simbólicas, o que ajuda a entender por que certos termos se transformam tão rapidamente em fenômenos culturais.
Além disso, como afirma o linguista Marcos Bagno (2007), a língua não é um código fixo e homogêneo, mas um conjunto de variações em constante negociação social. Para ele, o que muitos classificam como "erro" ou "ameaça ao idioma" é, na verdade, parte do funcionamento natural da linguagem. Ao considerar a influência da internet nas práticas linguísticas cotidianas, Bagno reforça que a norma culta não é superior às formas populares ou digitais de expressão — todas revelam, à sua maneira, as dinâmicas culturais e sociais do nosso tempo.
Esses exemplos revelam uma verdade muitas vezes esquecida: a língua é viva e reflete a sociedade em que vivemos. O que hoje é gíria ou meme pode, no futuro, fazer parte do vocabulário formal. Em vez de enxergar essas mudanças com receio ou preconceito, é interessante acompanhá-las com curiosidade. Afinal, elas mostram não só como falamos, mas também como pensamos, nos relacionamos e sentimos. E, se a língua acompanha a vida, nada mais natural que ela seja tão mutável quanto nós.
Referências:
BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. São Paulo: Parábola Editorial, 2007;
PRIBERAM. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Priberam Informática, [s.d.]. Disponível em: https://dicionario.priberam.org/. Acesso em: 04 jul. 2025; e
SANTAELLA, Lucia. Cibercultura: linguagem e tecnologia na era digital. São Paulo: Editora Paulus, 2003.
ADRIANA MELLO
- Licenciada em Língua Portuguesa e Língua Inglesa – Faculdades Integradas de Cruzeiro (1996);
-Professora efetiva na rede estadual paulista desde 2000;
-Complementação Pedagógica pela UNIG (2001);
-Mestre em Linguística Aplicada pela Universidade de Taubaté (2003);
-Pós-graduada em Ensino de Língua Inglesa pela UNESP REDEFOR (2012) e
- Designada no Programa de Ensino Integral desde 2014, na EE Oswaldo Cruz (Cruzeiro/SP)
Área de Linguagens (Português / Inglês)
Nota do Editor:
Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.
Concordo plenamente com suas palavras. Como professora, faço o máximo para que meus alunos se apaixonem pela Língua Portuguesa e saiba usar as palavras corretamente no dia a dia. Os alunos se prendem muito nas gírias e o que acompanham nas redes sociais, na Internet. A Língua Portuguesa, a nossa língua precisa de cuidados, por isso, estamos sempre atentos ao uso correto das palavras. Parabéns por suas palavras e pelo cuidado com nossa língua. Por mais artigos como esse!
ResponderExcluirQuerida Marilise, agradeço muito pela leitura, comentários e apoio!
ExcluirCertamente um texto incrível! Este artigo, além de ser claro, curioso e respeitoso para com a linguagem que os jovens desenvolvem, mostra o quanto a autora domina e ama o que faz. Vejo pessoas criticarem de forma preconceituosa e equivocada a forma como a geração atual comunica suas ideias e atualiza a linguagem a ser utilizada, criando barreiras e abismos que dificultam muito a compreensão da dinâmica social. Esse texto trabalha exatamente com o contrário a essa prática.
ResponderExcluirTenho enorme admiração pela profissional e intelectual que a senhora é, Adriana — hoje, cursando uma graduação, vejo o quanto vejo você como um modelo a ser seguido! Parabéns pelo trabalho!
Obrigada, Diogo! Muito feliz com suas palavras e satisfeita em saber que está trilhando a vida acadêmica. Muito sucesso para você!
ExcluirParabéns, minha querida amiga Adriana pela narrativa envolvente e "lacradora".
ResponderExcluirTe admiro muito.
Angelica
Agradeço o carinho e o apoio, amiga! Saudades de você!
ExcluirTexto e contexto mt interessante e propício q abrange a lingüística diversas gostei de suas exposicoes parabéns orgulho de ter uma sobrinha bem preparada para o jornalismo sinta-se como uma borboleta e voe alto pelos caminhos da sabedoria
ResponderExcluirObrigada pela leitura e apoio!
ExcluirÓtimo texto, orgulho de ter sido sua aluna!
ResponderExcluirObrigada pela leitura e apoio!
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirSim, umas das coisas mais bacanas é essa evolução da linguagem acompanhando as épocas, as vibes, os moços, as minas, as conversas nas praças ou tão somente nas resenhas, eita, resenha não é mais resenha? Rsrs! Que delícia brincar com as palavras, assim como Manoel de Barros! Que interessante perceber que as palavras estão em processo contínuo de mudança, independentemente se elas cringem ou lacrem. Abraços, Adriana
ResponderExcluirFico emocionada ao ler um artigo de tamanha importância para todos os públicos, mas que a leitura se faz urgente para todos os Educadores! Compreender "as juventudes" do mundo atual, como se expressam, como sentem e demonstram sua forma de ver o mundo é a chave para se criar o vínculo professor/aluno, facilitando a aprendizagem e o desenvolvimento integral dos estudantes.
ResponderExcluirTe parabenizo, Professora Adriana, por tamanha sensibilidade, empatia e competência ao discorrer sobre questões atuais de forma clara e leve, demonstrando muita propriedade e embasamento sobre o tema selecionado.
Admiração sempre!!!!!!