É inegável que há um descompasso entre o modelo de escola contemporâneo - herdeiro da tradição que remonta à era moderna, tanto do ponto de vista da tradição religiosa, sobretudo jesuíta, quanto no ponto de vista do ideário iluminista - e o modelo de acesso ao conhecimento posto pelo advento da era virtual, que criou uma nova relação com o saber e a informação. As velhas hierarquias do saber engessado, imóvel, representadas pela metáfora da pirâmide ou da árvore do conhecimento, foram substituídas por uma relação com um conhecimento aberto, plano, representados pelo rizoma, pelo espaço liso e sem fronteiras, tais como o deserto ou o oceano, não à toa se utilizam os verbos surfar, navegar pela web (teia). Esse espaço abriga uma multiplicidade aberta de pontos de vista, sujeita a uma constante atualização, a um constante devir, que requer do navegador certa capacidade de enfrentar as mudanças bruscas de tempo, os ventos e correntes contrárias, que podem tanto leva-lo a novas e desconhecidas terras como transforma-lo num pirata (um hater, por exemplo) e isolá-lo numa ilha apartado da realidade.
De início, há duas armadilhas ou problemas que merecem destaque, o primeiro diz respeito à dificuldade cada vez maior de atestar a veracidade das informações veiculadas pela web, sobretudo quando se trata de política, pois há uma disseminação alarmante de informações falsas, criadas por sites de notícias sem compromisso com os fatos, frequentemente financiados para fazer oposição política de maneira anônima. O segundo diz respeito à dissolução da autonomia intelectual das novas gerações, cuja capacidade de produzir textualmente a partir de seu próprio referencial é cada vez menor, o que tem tornado o plágio uma prática institucional das escolas e a noção de autoria um conceito abstrato.
Quanto ao primeiro problema, ele vem sendo discutido de tal forma em nível mundial, que o Dicionário Oxford, editado pela Universidade britânica, elegeu o termo “pós-verdade” como a palavra do ano em 2016. De acordo com o dicionário, ela denota aquilo “que se relaciona a circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”. Recentemente, essa onda de notícias falsas teve considerável influência tanto no processo eleitoral estadunidense, que levou à Casa Branca o magnata republicano Donald Trump, quanto no processo de impeachment que derrubou a presidente brasileira Dilma Rousseff.
A popularidade dessas notícias e páginas que veiculam notícias falsas se deve em primeiro lugar ao fato de que elas reproduzem aquilo que as pessoas desejam ouvir, ou seja, elas dão suporte às convicções ideológicas dos internautas, que são construídas a partir da repetição em massa de percepções pessoais através dos meios de comunicação. Além do interesse político que abrange essa questão, há também aquilo que o psicólogo e prêmio Nobel de economia Daniel Kahneman chama de “cognição preguiçosa”, um comportamento no qual as pessoas tendem a ignorar fatos, dados e acontecimentos que obriguem o cérebro a fazer um esforço adicional. Nesse sentido, as convicções passam a ocupar o espaço das evidências e provas.
Essa tendência tem afetado cada vez mais cedo o alunado, que reproduz convicções e discursos enlatados e muitas vezes preconceituosos e intolerantes, tornando o ambiente de uma sala de aula menos flexível, menos aberto ao debate de ideias, ao exercício do pensamento coletivo e à diversidade de pontos de vista. Graças ao efeito peneira dos algoritmos das principais empresas de serviço e busca de informações da internet, como o Google, o Facebook, o YouTube etc, que direcionam os resultados das pesquisas a partir dos gostos e interesses que seus usuários deixam como rastro na web, os estudantes, usuários contumazes dessas ferramentas, são precocemente envolvidos numa bolha social de suas próprias crenças e acreditam que sua visão de mundo é hegemônica.
O outro problema que tem preocupado os educadores é que o fácil acesso às informações via internet não foi acompanhado pelo aumento da capacidade de discernimento acerca do uso que os estudantes fazem do mesmo, de modo que a ideia de realizar uma pesquisa, assim como a ideia de autoria, empobreceram-se tanto que praticamente perderam o seu sentido. Por um lado, pesquisa passou a designar apenas a primeira de suas etapas, que é a “busca ou coleta de dados ou informações acerca de um determinado assunto” e deixou de abarcar também as etapas de análise, comparação, crítica e indagação minuciosa do mesmo. Por outro lado, a noção de autoria ou autonomia intelectual se tornaram algo tão distante da realidade do aluno que a prática do plágio se tornou uma conduta comum e institucionalizada no ambiente escolar e até mesmo universitário.
Diante desse quadro de mutação do saber, juntamente com seus efeitos colaterais, o papel do professor enquanto difusor do conhecimento perde espaço, uma vez que o conhecimento pode ser acessado por outros (e às vezes mais eficazes) meios. Emerge assim a necessidade de que o professor seja o fomentador da aprendizagem e do pensamento problematizador, que faça a mediação relacional e simbólica com os percursos de aprendizagem, que aponte os perigos da navegação indiscriminada, ao sabor dos ventos e das hegemonias ideológicas. A escola nesse sentido pode resignificar as práticas de pesquisa e aprendizado, construindo novas relações com o saber e abrindo espaço para o desenvolvimento de uma cibercultura na escola, valorizando novas formas de organização da experiência virtual, com um uso mais crítico e humanista das novas tecnologias que possam agregar positivamente à sociedade. Com efeito, qualquer política educacional que vise diminuir o descompasso entre o modelo de conhecimento verticalizado e demasiado conservador ainda presente na escola atual e o modelo de conhecimento que adveio com a era virtual, que apontamos no início deste artigo, terá de considerar essa nova realidade.
POR ZÓZIMO ADEODATO FERNANDES
-Graduado e licenciado em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP - 2010).
-Atualmente, trabalha como professor de Filosofia para o Ensino Médio na rede estadual de São Paulo desde 2011.
-Graduado e licenciado em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP - 2010).
-Atualmente, trabalha como professor de Filosofia para o Ensino Médio na rede estadual de São Paulo desde 2011.
Nota do Editor:
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Ótimo artigo.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ExcluirObrigado, Eli! Forte abraço!
ExcluirParabéns pela postagem!
ResponderExcluir"a noção de autoria ou autonomia intelectual se tornaram algo tão distante da realidade do aluno que a prática do plágio se tornou uma conduta comum"
Uma lástima se constatar que há toda uma juventude contaminada por essa banalização e desrespeito pelo bem alheio..
Obrigado! Pois é, Monica, nós educadores temos um longo caminho a percorrer.
ExcluirSinceridade, nossos alunos não usam a internet para o aprendizado. Usam o Ctrl C e em muitos casos só leem os títulos. Ledo engano que acredita que verticalizado ou não o aprendizado dessa geração passa pelo professor.
ResponderExcluirCriamos uma geração de monstrinhos que quando pequenos os achamos os mais inteligentes e espertos do mundo, e assim que chegam a pré adolescência emburrecem e empobrecem seus vocabulários pois estes se tornam tribais.
Professor ensina. aluno aprende. Político atrapalha. Ou tiramos a política e o político dessa equação, ou nunca mais teremos uma educação que coincida com a educação moderna que almejamos...
Essa é a nossa realidade, Alvaro, temos uma escola obsoleta e uma plataforma de conhecimento completamente nova, separadas pelo conservadorismo escolar e a falta de investimento público. Penso que a despolitização é uma grande parte do problema.
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