Autora: Letícia Fernandes Domingos(*)
A execução provisória da pena é o instituto que outorga ao poder punitivo do Estado a prerrogativa de deliberar o início do cumprimento da pena proferida em uma sentença condenatória (primeira instância) ou acórdão condenatório (segunda instância), ainda que não tenha ocorrido o trânsito em julgado do mérito da causa.
Em outubro do ano de 2016, por maioria, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que o artigo 283 do Código de Processo Penal (CPP) não embargava o início da execução da pena após condenação em segunda instância e indeferiu liminares pleiteadas nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) 43 e 44.[1]
Em seu voto, à época, o então Ministro Teori Zavascki sustentou que "A dignidade defensiva dos acusados deve ser calibrada, em termos de processo, a partir das expectativas mínimas de justiça depositadas no sistema criminal do país", afirmou. Se de um lado a presunção da inocência e as demais garantias devem proporcionar meios para que o acusado possa exercer seu direito de defesa, de outro elas não podem esvaziar o sentido público de justiça. "O processo penal deve ser minimamente capaz de garantir a sua finalidade última de pacificação social", declarou.
Outro argumento citado pelo ministro foi o de que o julgamento da apelação encerra o exame de fatos e provas. "É ali que se concretiza, em seu sentido genuíno, o duplo grau de jurisdição", ressaltou.[2]
Destarte, quando uma condenação de primeiro grau fosse mantida pelo juízo de segundo instância, era deferida a execução provisória da pena, como a prisão, depois que todos os recursos àquela corte se esfalfassem, como os embargos.
No entanto, em 2019, O Supremo Tribunal Federal, repetidamente decidiu sobre o tema, agora convertendo de entendimento.
O ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal (STF), proferiu, em uma sessão extraordinária realizada em outubro de 2019, o voto em que julga procedentes as Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC) 43, 44 e 54, ajuizadas pelo Partido Ecológico Nacional (PEN, atual Patriota), pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) contra a possibilidade de execução provisória da pena antes de esgotadas todas as possibilidade de recurso (trânsito em julgado). Segundo o ministro, não se pode inverter a ordem natural do processo-crime: é preciso apurar para, formada a culpa, prender o cidadão em verdadeira execução da pena, que não comporta provisoriedade. [3]
Em sua decisão, o relator das ADCs afirmou que a literalidade do inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal, segundo o qual "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória", não deixa margem a dúvidas ou a controvérsias de interpretação.
"A Constituição de 1988 consagrou a excepcionalidade da custódia no sistema penal brasileiro, sobretudo no tocante à supressão da liberdade anterior ao trânsito em julgado da decisão condenatória", afirmou.
"O pressuposto da execução provisória é a possibilidade de retorno ao estágio anterior, mas quem vai devolver a liberdade ao cidadão?", perguntou.[4] Assim, a execução da pena passou a ser possível, desde então, somente com o trânsito em julgado da sentença condenatória.
A Lei 13.964/19 (pacote anticrime), trouxe diversas variantes no âmbito do direito penal e direito processual penal - algumas normas já estão vigentes, como o tema em tela, outras ainda permanecem suspensas até um posicionamento do STF - entre eles, alterou a possibilidade da execução provisória da pena. Agora, o cumprimento da pena de prisão será obrigatório após uma sentença condenatória proferida pelo Tribunal do Júri, quando a pena decretada for igual ou superior a 15 anos, lembrando que o Tribunal do Júri julga os crimes dolosos contra a vida, como homicídio, infanticídio, suicídio, aborto.
No presente, a prisão como forma de cumprimento da pena antes do trânsito em julgado é permitida novamente, entretanto, restringe-se somente às condenações proferidas pelo Tribunal do Júri, desde que a pena estabelecida seja igual ou superior a 15 anos.
A partir desta nova norma surge uma indagação: Se a Constituição Federal Brasileira determina taxativamente em seu artigo 5º que não haverá culpado senão após o trânsito em julgado de uma condenação, e é em virtude de tal texto constitucional que a Corte Suprema vedou o cumprimento provisório de uma pena decretada, qual é então o embasamento legal que permitiu a execução provisória da pena tão somente para as condenações oriundas de Tribunal do Júri e cujas penas sejam iguais ou maiores que 15 anos?
Se o pensamento crítico dos legisladores é o de permitir a execução provisória da pena para estes casos, qual é então a motivação para vedar a mesma aplicação do instituto quando se trata de condenações, sejam elas em primeira ou segunda instância, por crime de corrupção, por exemplo, em que o condenado desviou milhões dos cofres públicos, tirando a verba que seria destinada ao sistema único de saúde, ou ainda para investir na segurança pública, trazendo mais proteção e ordem para a sociedade? Qual é a diferença? Qual é o critério?
Sob outra ótica, podemos avistar que alguns países, como França, Itália e Alemanha, admitem a prisão após uma decisão condenatória em segunda instância. Já países como Argentina, Canadá, Espanha, Estados Unidos, Inglaterra, entre outros, permitem a prisão logo após a decisão condenatória proferida ainda em primeira instância.
Portugal e Holanda, assim como o Brasil, anuíram que o início do cumprimento da pena, como a prisão, dar-se-á após o esgotamento dos recursos, não obstante, a possibilidade de recursos possíveis e instâncias em Portugal e Holanda é diminuto, fazendo com que o trânsito em julgado não demore em demasia, como ocorre no sistema judiciário brasileiro, que conta com mais de 30 recursos no âmbito penal e quatro instâncias. Outro ponto se dá no sentido de que, na Holanda, a Suprema Corte não é muito demandada, ao contrário do que ocorre no Supremo Tribunal Federal, a Suprema Corte do Brasil.
Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, Subprocuradora Geral da República, afirmou em um artigo publicado no livro "Garantismo Penal Integral", que "Se o STF decidir que a prisão ocorra somente após o trânsito em julgado, o país ficará extremamente isolado, em matéria penal, entre outros países democráticos. Uma decisão nesse sentido favorece a impunidade".
O Ministro da Justiça, Sérgio Moro, em uma audiência pública realizada no dia 12/02/2020, afirmou que "Ainda assim, nosso sistema é extremamente ineficiente, levando demandas cíveis, por vezes singelas, a durar décadas ou anos nas cortes de Justiça. Um dos erros foi a preocupação excessiva com o acesso à Justiça. Não basta garantir às pessoas que demandem do Judiciário, mas é preciso garantir o resultado efetivo. Muitas vezes um processo que dura anos não traz resultado nenhum".
Nesse sentido, se formos considerar um processo criminal que dura anos e não traz resultado algum, o que ocorre por diversas vezes (prescrição da pretensão punitiva, reparação tardia à vítima pelo dano sofrido, demora exacerbada de uma decisão condenatória definitiva, etc.), fica na população, e principalmente nas vítimas e suas famílias, uma percepção de impunidade, de que nada – ou quase nada - acontece para o autor que matou um pai de família, por exemplo. A família dessa vítima muito provavelmente se sente injustiçada, desamparada, a sociedade se sente desprotegida e com medo dos criminosos que continuam soltos e sem punição, entre outras consequências negativas para o país.
Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, no mesmo artigo supramencionado, afirma ainda que "Atrás de cada processo, existe um drama humano, pessoas clamando por justiça, vítimas e a sociedade assistindo a isso, à demora desses casos, perdendo a credibilidade na Justiça, de que a lei é igual para todos, perdendo a credibilidade no País".
Diante de tais fatos, qual a segurança jurídica que é passada para a população vítima de crimes, muitas vezes gravíssimos?
Quem está sendo punido pelo Estado pela prática de um delito: os autores, ou as vítimas?
Como a sociedade se sente diante de autoridades judiciárias que parecem não saber o que fazer, pois um dia decidem de uma forma, no outro de forma diversa, sobre temas importantes e de repercussão geral?
O que fazer quando um político, representante de uma nação, deixa de agir em prol de uma sociedade e passa a tomar decisões de acordo com seus próprios interesses, subtraindo covardemente uma verba que seria destinada ao alimento de crianças durante sua primeira infância, enquanto estão nas escolas e creches públicas, para poder fazer uma viagem internacional com toda a família?
Concluindo, a impressão que fica é que o país colapsou, em um movimento cíclico que parece não ter fim, na qual uma mudança efetiva, ainda que gradual, parece cada vez mais distante da realidade da sociedade brasileira.
REFERÊNCIAS
[1] Acesso em 02/04/2020: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=326754
[2] Acesso em 02/04/2020: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=326754
[3] Acesso em 02/04/2020: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=427785
[4] Acesso em 02/04/2020: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=427785
*LETÍCIA FERNANDES DOMINGOS
- Graduada em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (2015);
- Pós-graduanda em:
- Direito Penal Econômico pela PUC Minas;
- Direito Penal e Criminologia peça PUC RS;
- Compliance Público - privado, Integridade Corporativa e Repressão à Corrupção pelo CERS;
-Advogada e
-Investigadora da PCMG.
- Pós-graduanda em:
- Direito Penal Econômico pela PUC Minas;
- Direito Penal e Criminologia peça PUC RS;
- Compliance Público - privado, Integridade Corporativa e Repressão à Corrupção pelo CERS;
-Advogada e
-Investigadora da PCMG.
Nota do Editor:
Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.
Nenhum comentário:
Postar um comentário