No Estado Democrático de Direito, a Constituição não pode mais ser considerada uma simples Carta Política ou instrumento de governo: muito mais que isto, a Constituição passa a ser a salvaguarda da própria sociedade. Isso porque ela limita a soberania do Estado, ou seja, no constitucionalismo, é impensável qualquer sujeito político amplamente soberano que não encontre limites no texto constitucional.
Nesse sentido, o controle constitucional no Brasil, instrumento limitador de Poder por essência, tem cumprido papel de extrema relevância ao conciliar maioria, Constituição e direitos.
A Constituição de 1988, no que lhe diz respeito, segue os princípios do constitucionalismo democrático nascido em Weimar. Nesta linha de constitucionalismo, ressalvadas as diferenças oriundas do momento histórico-social de seu surgimento, são comuns às Constituições dois princípios basilares: a inviolabilidade dos direitos fundamentais e o princípio da igualdade.
Desta feita, muito além de delimitar a separação de poderes ou os mecanismos de utilização da lei para solucionar conflitos, essas Constituições buscam assegurar princípios constitucionais fundamentais, o que Haberle conceitua como “cláusula de eternidade”.
Peter Häberle (2007, p. 325) elucida que:
"[...] Estos límites se encuentran, por ejemplo, bajo la forma de “cláusulas de eternidad”, en las garantías de identidad del Estado contitucional. Por lo demás, debe existir la possibilidad de relaciones de mayoría diversas y cambiantes, de modo que los perdedores en una decisión tengan la oportunidad igual y real de ganar la mayoría en una oportunidad futura. [...]"
Este entendimento da Carta Maior como um instrumento dinâmico, que acompanha a evolução democrática da sociedade, acabou por exigir uma nova interpretação constitucional, que pretende resguardar, mesmo que em detrimento da maioria, os direitos conquistados pelas minorias. Esse fenômeno restou conhecido como Poder Contramajoritário.
Vicente Paulo de Almeida (2010) elucida que o princípio contramajoritário teve sua noção implantada pioneiramente pelo professor Alexander Bickel, em “The least dangerous branch”, como sendo:
"[...] a atuação do poder judiciário atuando ora como legislador negativo, ao invalidar atos e leis dos poderes legislativos ou executivos democraticamente eleitos, ora como legislador positivo – ao interpretar as normas e princípios e lhes atribuírem juízo de valor [...]"
O conceito, em síntese, aduz a impossibilidade de tribunais ou órgãos não eleitos democraticamente invalidarem decisões de órgãos majoritariamente designados. Por essa lógica, o STF não poderia declarar inconstitucionalidade de leis, visto que seus membros não foram democraticamente eleitos. Curiosamente, isso geraria a inconstitucionalidade do controle de Constitucionalidade no Brasil.
A despeito disso, é cediço que a Constituição Federal instituiu expressamente a jurisdição constitucional, de responsabilidade do Supremo Tribunal Federal, que ostenta função de limitar, racionalizar e controlar o poder Estatal, com o fito de resguardar os direitos fundamentais também das minorias.
Kelsen, quando da elaboração da Constituição austríaca de 1920, previu um controle concentrado de constitucionalidade exercido por um órgão jurisdicional especial, que não julgaria a pretensão concreta, mas analisaria a compatibilidade entre uma Lei e a Constituição. Surgiu assim o conceito de legislador negativo, no Brasil, exercido pelo STF em sede de controle de constitucionalidade.
O STF, ao julgar no exercício de sua atribuição constitucional, deve por certo considerar o interesse da maioria da sociedade, pois, se a democracia não é estática, o anseio social vigente é relevante no conjunto dos valores democráticos instituídos. No entanto, a vontade da maioria por si só, não está apta a embasar as decisões da Suprema Corte.
Nesse sentido, primeiro resta necessário esclarecer que, exatamente por ter o poder de revisar atos dos demais poderes, é que os membros do STF não são escolhidos mediante eleições. Se assim o fosse, é bem possível que tomassem decisões políticas, motivadas pelo desejo de obter popularidade, o que comprometeria sua imparcialidade.
Entretanto, mais profundamente que isto, é imprescindível questionar como se define o conceito de maioria. Em um país de dimensões continentais, como se determina qual decisão de fato atende a maioria? Destarte, muito embora o Congresso seja eleito pela maior parte dos cidadãos, aplicar essa mesma lógica para a atuação do STF não parece fazer sentido.
A existência do STF pressupõe exatamente seu caráter contramajoritário. Ora, se todas as decisões do Supremo tivessem de ser tomadas levando em conta o desejo da “maioria” - que conforme já aduzido, sequer é um conceito absoluto -, não haveria necessidade de sua existência, visto que as leis editadas pelo Congresso Nacional seriam necessariamente constitucionais, já que escritas por representantes eleitos pelo povo, ou melhor, pela “maioria”.
Desta feita, o controle de constitucionalidade em si é contramajoritário e antipositivista. Imperioso ressaltar que ser contramajoritário não implica necessariamente ir sempre contra a vontade da maioria, mas ter poder para contrariá-la quando preciso, em prol do texto constitucional, a fim de assegurar a preservação dos direitos fundamentais do cidadão e das minorias.
A livre deliberação da maioria não é suficiente para determinar a natureza da democracia. Stuart Mill em suas ‘Considerations on Representative Government’, conceitua a verdadeira e a falsa democracia (‘of true and false Democracy’): “A falsa democracia é só representação da maioria, a verdadeira é representação de todos, inclusive das minorias.”.
Eis o pensamento de Lenio Luiz Streck (2009, p. 18 e 19):
"Se se compreendesse a democracia como a prevalência da regra da maioria, poder-se-ia afirmar que o constitucionalismo é antidemocrático, na medida em que este “subtrai” da maioria a possibilidade de decidir determinadas matérias, reservadas e protegidas por dispositivos contramajoritários. O debate se alonga e parece interminável, a ponto de alguns teóricos demonstrarem preocupação com o fato de que a democracia possa ficar paralisada pelo contramajoritarismo constitucional, e, de outro, o firme temor de que, em nome das maiorias, rompa-se o dique constitucional, arrastado por uma espécie de retorno a Rousseau."
Fato é que, recentemente, a Suprema Corte Brasileira tem exercido cada vez mais o poder contramajoritário, com claro objetivo de resguardar os direitos das minorias. São exemplos os julgamentos das ADI 4277/DF e ADPF 132/RJ, quando se decidiu que a união estável homoafetiva ostenta regime jurídico de entidade familiar, um marco histórico em que restou assegurado a uma parcela minoritária da população o direito de não se subjugar diante da maioria.
Assim, o poder contramajoritário é aquele exercido em contraposição a vontade que se entende ser da maioria, a fim de resguardar também os direitos das minorias, respeitando o princípio igualitário expresso na Constituição Federal.
Na experiência contemporânea do controle de constitucionalidade no Brasil, vislumbra-se um exercício cada vez mais comum do poder contramajoritário, pois a própria natureza do controle de constitucionalidade é a de rever atos dos outros poderes, contrariando desde já, em tese, o desejo das maiorias, que elegeram os responsáveis pelos atos invalidados.
Importa consignar que o objetivo da Carta Magna brasileira é de assegurar a todos, sem distinção, o resguardo de seus direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana. Assim, por vezes, quando as minorias tem seus direitos violados, mister se faz a ação do guardião da Constituição no sentido de igualar os desiguais, promovendo uma sociedade verdadeiramente democrática.
POR MARINA ALMEIDA MORAIS
-Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica em Goiás;
-Advogada atuante no Direito Público e Eleitoral; e
-Colaboradora da Revista Jurídica Verba Legis.
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