Todos
os anos posteriores às eleições gerais, onde são escolhidos, além do Presidente
da República, governadores, senadores, deputados federais e deputados estaduais
(e respectivos suplentes) por todo o país, a população brasileira é chamada
novamente às urnas, para, desta vez por voto facultativo, escolher os membros
dos Conselhos Tutelares em cada Município do país.
Conforme o art. 131 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1.990. "o Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta Lei". Justamente por ser um órgão com incumbência delegada pela sociedade, é que esta escolha de seus membros deve obedecer critérios lógicos e objetivos.
Em termos práticos, os conselheiros tutelares agem como mandatários, assim como os demais cargos cuja escolha é aferida por meio do sufrágio popular, ou seja, do voto direto, pessoal e secreto. Praticamente temos uma substancial diferença para os demais cargos eletivos desta mesma forma, ou seja, além dos cargos já mencionados escolhidos nas eleições gerais, também os prefeitos, vereadores e suas suplências: a não obrigatoriedade do voto.
No entanto, o processo de escolha tem inúmeras diferenças das chamadas eleições gerais (tal como ocorreram em 2022) e municipais (como as de 2020), desde a incumbência da sua organização, até o poder regulamentador, mas nem por isso, podemos dizer que não se tratam de um exercício direto no processo democrático.
O processo eleitoral tradicional, para escolha dos mandatários, representantes da população nos Poderes Executivo e Legislativo nas três esferas da federação, tem sua regência com base no Direito Eleitoral, e principalmente nas regras estatuídas no artigo 14 da Constituição Federal, e dispositivos do Código Eleitoral (Lei nº 4.737/1965), da Lei das Eleições (Lei nº 9.504/1997), da Lei das Inelegibilidades (Lei Complementar nº 64/1990) e da Lei Orgânica dos Partidos Políticos (Lei nº 9.0976/1995), suas atualizações e nas Resoluções do Tribunal Superior Eleitoral, que exerce o poder normativo, ou seja, cria as regulamentações com amparo na legislação originária.
Por sua vez, as eleições dos Conselhos Tutelares se fundamentam nos artigos 132 e seguintes do Estatuto da Criança e do Adolescente, e tem a sua regulamentação delegada ao Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA, e atualmente está consolidada na Resolução nº 231, de 28 de dezembro de 2022.
Temos que por força da legislação criadora das eleições, ficou estabelecido que em cada Município e em cada Região Administrativa do Distrito Federal, deverá haver pelo menos um Conselho Tutelar, composto de 05 (cinco) membros, escolhidos para um mandato de 04 (quatro) anos, permitida sua reeleição.
Assim, o processo de organização do pleito eleitoral, diferente das demais eleições, que são organizadas pela Justiça Eleitoral, composta de tribunais próprios, inclusive uma corte superior e órgãos locais, criados e mantidos exclusivamente para tal finalidade, as eleições dos conselheiros tutelares é de responsabilidade dos Conselhos Municipais dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes (CMDCAs), órgão de políticas públicas criados no âmbito dos municípios, compostos de conselheiros voluntários escolhidos dentre representantes do Poder Público e da Sociedade Civil. Cabe a estes conselheiros voluntários dos Municípios, com suporte estrutural e logístico da Justiça Eleitoral e das Prefeituras e fiscalização do Ministério Público, exercer a tarefa hercúlea de organizar os pleitos, que em muitas cidades têm subdivisões por regiões do município.
Além destas peculiaridades e dificuldades na organização e operacionalização dos pleitos, existem diferenças estruturais também para que os candidatos façam suas campanhas. De acordo com a legislação, as eleições devem ocorrer em data unificada em todo o território nacional, sempre no primeiro domingo de outubro do ano subsequente ao que ocorre a eleição presidencial, o que em 2023 se dará no dia 01 de outubro.
Desta forma, temos que a aplicação dos princípios e, de forma subsidiária, das normas de Direito Eleitoral, é consequência natural, ainda que não fosse expressa, uma vez que a finalidade das eleições gerais, municipais e dos Conselhos Tutelar são as mesmas: aferir a vontade da população no tocante à escolha de seus representantes.
Mas se as evidências não fossem claras quanto à necessidade da observância dos princípios e diretrizes do Direito Eleitoral, a já mencionada Resolução nº 231/2022 é expressa neste sentido em alguns casos, como por exemplo, em seus artigos 8º, §7º, caput e incisos I e VII.
De fato, não faria sentido, nem em termos práticos, nem jurídicos, se uma eleição específica para mandatários escolhidos pela sociedade não se aproveitasse de todo o arcabouço jurídico desenvolvido em décadas de discussão legislativa, doutrinária e jurisprudencial, para criar algo isolado e inovador, sendo que o objetivo final é o mesmo.
Ainda assim, é clara e gritante a inspiração da regulamentação prevista na citada resolução na legislação eleitoral tradicional.
Existe uma preocupação primordial do Direito Eleitoral em promover uma eleição dentro do princípio da lisura que deve ser conferido ao pleito, ou seja, a confiabilidade que a forma como se está aferindo a vontade do colégio eleitoral obedece parâmetros seguros para que os candidatos tenham oportunidade de disputar os votos de forma equilibrada e com equidade.
Neste contexto, uma das principais preocupações da legislação é coibir os abusos de poder, tão relevantes na legislação eleitoral e que muitas vezes são responsáveis por cassar mandatários eleitos e já no curso de seus mandatos, causando uma reviravolta política no caso concreto. Assim, temos na legislação eleitoral tradicional, as expressas previsões de abuso do poder político, abuso do poder econômico e abuso dos meios de comunicação social, e um rol de condutas vedadas no período eleitoral. Tais preocupações se repetem, com descrições ainda mais restritivas nas eleições em comento.
O pleito se inicia com a formação de uma comissão específica, nomeada pelo CMDCA, a qual funcionará como uma "junta eleitoral", encarregada de conduzir e gerenciar o processo, com poder decisório (embora sujeito à revisão) próprio.
Dentro da regulamentação das eleições dos Conselhos Tutelares, se observa nitidamente a intenção de nivelar a estrutura das campanhas, de modo que não seja possível campanhas com estrutura desproporcionais ou que permita a interferência do poderio econômico, e talvez aí resida a principal diferença em termos de limitações e controle, em relação às campanhas tradicionais, as quais autorizam o uso de cabos eleitorais contratados e estruturas de marketing e logística profissionais.
Não se tem lugar para tais "extravagâncias" na campanha para conselheiros tutelares. Assim, "toda propaganda eleitoral será realizada pelos candidatos imputando-lhes responsabilidades nos excessos praticados por seus apoiadores" (art. 8º, §1º), e "a propaganda eleitoral poderá ser feita com santinhos constando apenas número, nome e foto do candidato e curriculum vitae" (art. 8ª, § 2º). Por lógica, não há regras para arrecadação de recursos, nem prestação de contas de gastos eleitorais. Justamente porque o objetivo é que as campanhas sejam franciscanas, sem ostentações, nem disparidades de material entre os candidatos.
Os avanços tecnológicos permitiram muito que tal propósito não seja um empecilho para a divulgação das propostas, ideias e históricos dos candidatos, pois com a onipotência das redes sociais e seu baixo custo, é possível com que as mensagens alcancem seus destinatários sem exorbitâncias. Para isso, foram usados mecanismos básicos, como a proibição do impulsionamento de postagens, serviços de disparos de mensagens em massa e uso de sites comerciais.
A regra é expressa, no tocante ao que é ou não permitido, em citar a Lei nº 9.504/97, de modo que não se equivoca quem conclui que tudo aquilo que um candidato a vereador ou deputado, por exemplo, não pode fazer, o candidato ao conselho tutelar também não pode.
Mas a Resolução, além de citar alguns casos também contemplados na legislação eleitoral, cria mais algumas limitações. Assim, além de vedar a doação, oferta, promessa ou entrega de bem ou vantagem pessoal, inclusive brindes de pequeno valor, propaganda por meio de anúncios luminosos, cartazes ou inscrições em qualquer local público, propaganda em rádio, TV, outdoors, carros de som, luminosos, faixas, e letreiros, banners com fotos, distribuição de camisetas, se constitui abuso do poder político a utilização de qualquer estrutura ou financiamento partidário nas campanhas.
Até mesmo a manifestação de pensamento do candidato encontra restrições, pois a propaganda enganosa, além de vedada, encontra-se com uma definição bem mais aberta que os conceitos clássicos do termo. Assim, "considera-se propaganda enganosa a promessa de resolver eventuais demandas que não são da atribuição do Conselho Tutelar, a criação de expectativas na população que, sabidamente, não poderão ser equacionadas pelo Conselho Tutelar, bem como qualquer outra que induza dolosamente o eleitor a erro, com o objetivo de auferir com isso, vantagem à determinada candidatura".
Com isso, a legislação visa evitar as distrações que os candidatos possam causar no convencimento dos eleitores, com assuntos fora da alçada do Conselho Tutelar e manter as discussões de campanhas dentro do campo pertinente.
Existiu também uma preocupação do CONANDA em reprimir o chamado abuso do poder religioso, discussão que gera controvérsias no âmbito dos tribunais eleitorais (justamente por não ter uma definição clara na lei), mas que ficou expresso na Resolução nº 231, ao definir tal conduta como "o financiamento das candidaturas pelas entidades religiosas no processo de escolha e veiculação de propaganda em templos de qualquer religião".
O que se conclui é que, independentemente das semelhanças nas redações legais e conceitos replicados, não é possível se negar a aplicação subsidiária da legislação eleitoral, embora o esmero dos conselheiros federais em construir a regulamentação em cima do trabalho legislativo e doutrinário já existente, porque as finalidades e natureza do pleito são as mesmas. Assim, as comissões especiais de âmbito municipal que terão a árdua tarefa de tomar decisões tanto orientativas, quanto nos casos concretos que vão inevitavelmente surgir, têm um norte para seguir, bebendo da fonte da farta jurisprudência existente, adaptando o quanto necessário e lembrando que se trata de um pleito com ainda mais restrições, mas com balizas relativamente claras. Resta esperar pela sabedoria local das comissões municipais para que o pleito não reproduza alguns dos traumas que as campanhas eleitorais vêm trazendo aos eleitores e ao povo brasileiro.
* PAULO TOLEDO
-Graduado em Direito pela Universidade Católica de Santos(1999);
-Especialista em Direito Eleitoral no curso de pós graduação latu sensu pela Universidade de Santa Cruz do Sul (2017);
-Advogado, militante na área do Direito Público na região da Baixada Santista (SP).
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