domingo, 27 de março de 2016

A exigência da felicidade



    Exemplos não faltam a respeito de uma demonstração cada vez mais pública do que seria a necessidade constante da felicidade e, mais precisamente, da exibição do "ser feliz". As redes sociais talvez sejam o meio mais repleto e que mais claramente expõem essa questão, dado o alto índice de postagens associadas à exposição de - uma idealizada - felicidade. Há quem diga, inclusive, que as redes sociais são vitrines para que o indivíduo possa ser desejado e invejado, onde brotam sinais de realizações e contentamentos sem fim que levam a uma - desleal - comparação entre a minha vida e felicidade com a do outro. O perigo estaria no ideal de felicidade criado e na sensação de não acompanhar e não corresponder à tentativa de homogeneização dessa almejada e invejada experiência. Em um momento em que se deve ser feliz, sentir-se infeliz se torna um fardo.

    Ao passo que existe cada vez maior exibição da felicidade compartilhada com amigos e seguidores em um número crescente, o que se impõe é a contrastante percepção de que talvez as pessoas nunca estiveram tão isoladas e tão emocionalmente abaladas e, até mesmo, infelizes. A percepção equivocada de que a felicidade pode e deve ser atingida a todo momento pode inclusive aumentar sensações da ordem de não pertencimento a um grupo/ao mundo, sentimentos de incongruência, estranheza, dentre outros. A preservação da felicidade enquanto estado continuado comportaria experimentar e prolongar intensa e indefinidamente o prazer, além da eliminação de qualquer dor ou sofrimento que possam ser uma ameaça a esse intento.

    Ora, a felicidade não é uma aquisição ou conquista permanente, como uma condição que experimentamos e que passa a nos pertencer, ainda que sua busca seja inerente à experiência humana. É importante observar que a felicidade eterna e ininterrupta é impossível e insustentável, mesmo porque seu sentido advém da alternância e contraste inclusive com o se sentir infeliz, como estados do espectro de emoções e expressões da natureza humana, sendo considerada, pois, episódica e não constante e estável. Uma vez que a felicidade é um sentimento cuja intensidade vivenciada provém de uma comparação com outro estado experienciado, a felicidade plena e sem fim não geraria qualquer tensão/discrepância, pois não concorreria com outro estado emocional, em meio ao qual irrompe a felicidade em sua intensidade. Dessa forma, não pode ser prolongada indefinidamente, prova disso é a não rara experiência de, por exemplo, tão logo conquistado algo muito esperado e atingida o que chamamos de uma experiência de felicidade, o que se experimenta é o seu esvaziamento, dissipação, dispersão. Aliás, tão mais frequentes são as possibilidade de se experimentar a infelicidade, seja no reconhecimento da realidade, nas vivências de frustração, nas dificuldades dos relacionamentos, nas experiências da vida cotidiana...

    A obrigação em ser feliz - até mesmo porque o seu oposto passa a ser negado, repudiado e afastado - gera ainda maior exigência e dificuldade em se vivenciar os próprios sentimentos e emoções, sejam eles quais forem. Talvez pior do que se sentir infeliz seja a incapacidade de sentir algo ou mesmo de se apropriar do que se sente. Ao lado do "dever de ser feliz", há a determinação do que é e do que não é felicidade, em uma padronização e homogeneização que excluem as singularidades inerentes a cada pessoa, que fazem dela única e diferente de qualquer outro indivíduo.

    Em um momento em que o parecer se sobrepõe ao que de fato é, talvez parecer feliz esteja se sobrepondo ao se sentir feliz. Há um predomínio das sensações em relação ao experimentar e viver emoções nas relações reais com o outro. O ideal e a ilusão da felicidade - ou o parecer feliz - ou mesmo o reconhecimento e validação do outro quanto ao que é felicidade, podem esvaziar o indivíduo dele mesmo, do que lhe é próprio, que faz dele quem é, além de afetar a capacidade de se perceber e se apropriar do que sente. Talvez o sentimento genuíno de felicidade só possa ser experienciado mediante a capacidade de tolerar e conviver com a infelicidade, a dor, a frustração, o sofrimento, dos quais decorre o sentimento de enfrentar a realidade, em um estar vivo de modo mais verdadeiro.

    Por ANA FLÁVIA DE OLIVEIRA SANTOS


    -Psicóloga Clínica (CRP 06/90086) Formada em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP);
    -Mestre em Psicologia pela mesma Faculdade e Especialista em Psicologia Clínica pelo Conselho Federal de Psicologia;
    -Diretora de Ensino e Membro Associado do Instituto de Estudos Psicanalíticos de Ribeirão Preto - IEPRP, onde também integra quadro de psicólogos clínicos e supervisores.;
    -Possui experiência nas áreas clínica, da saúde, escolar/educacional e social, além de ensino e pesquisa;
    -Atualmente, atende crianças, adolescentes e adultos na abordagem psicanalítica nas cidades de Batatais-SP e Ribeirão Preto-SP;
    -Presta assessoria na área da Psicologia Escolar/Educacional a creches e escolas. Coordena grupos de estudos em Psicanálise e Desenvolvimento Infantil; e
    - Ainda, atua como professora tutora em curso de Especialização em Psicologia, Orientadora de Monografia e como funcionária pública municipal.
    Contato:
    Tel.: 98812-5043
    Batatais: Rua Carlos Gomes, 34 - Centro
    Ribeirão Preto: Rua Prudente de Morais, 1570 - Evolution Center - sala 702 - Vila Seixas
    Colunista da Revista Revide: http://www.revide.com.br/blog/ana-flavia-d/

Um comentário:

  1. Texto maravilhoso. Parabéns e obrigada por compartilhar suas reflexões conosco. Abraço

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