Autor: Valmintas Bagarote(*)
Ontem, da sacada da janela, entre o pronunciamento do Excelentíssimo Senhor Presidente e os "panelaços", o que me chamava mesmo a atenção era o mendigo que revirava a lixeira do prédio na calçada. A Amazônia pegando fogo, o Presidente falando, o povo batendo panelas — e nada daquilo parecia interessá-lo. Remexendo o lixo ele estava, remexendo o lixo continuava. O único ser que parecia chamar-lhe a atenção era o seu vira-latas, com quem volta e meia dividia algum resto de comida encontrado.
Como estava de saco cheio tanto do Presidente quanto do bater de panelas, peguei uns biscoitos e desci pra fazer companhia ao mendigo e seu cão; sentei no meio-fio, acendi meu cigarro e fiquei a olhar, lá de baixo, a minha janela no alto do prédio.
Eu não tinha uma boa vida — pensei — pelo menos, não a vida que tanto sonhara. Divorciado, hipertenso e sem família, passando os dias sentado, "com a boca cheia de dentes, esperando a morte chegar" — "Que bosta!".
Do meu lado, o mendigo, não mais chafurdando o lixo, indiferente à minha presença ali, ajeitava os cobertores na calçada. Não assistiria a filmes, não pediria pizza, não transaria; iria apenas estender o cobertor e dormir. "E eu achando a minha vida uma bosta…" — pensei. Pensei e depois ri muito, entre engasgos com fumaça, ao lembrar que eu também não transaria — "Que bosta!".
Ao me perceber rindo alto, o mendigo olhou-me de esguelha, como quem olha para um doido, e isso me fez ri ainda mais. Já recomposto, ofereci-lhe biscoitos, mas ele ignorou-me completamente.
Então fiquei pensando na ironia da vida — o Presidente sendo ignorado pelas panelas, as panelas por mim, e eu pelo mendigo. Nessa cena, apenas o mendigo parecia digno de atenção— a atenção do seu cãozinho, e isso me fez concluir que atenção requer cuidado — é o fruto de uma relação de apreço recíproco.
O povo batia panelas como uma forma hostil de revidar a insensatez e besteiras ditas pelo Presidente; eu ignorava os batedores de panelas por entendê-los hipócritas; e o mendigo, bem, o mendigo não sei porque me ignorava; talvez, semelhantemente aos meus filhos, achasse-me também um hipócrita do "caralho", ou talvez nem fosse muito certo da cuca e nada do que vê entendesse de fato. Certo é que o cãozinho era por ele bem cuidado, e, sendo assim, retribuía-lhe o apreço.
Mergulhado nesses pensamentos, no entanto, do riso fui transmutado para uma profunda tristeza. Eu era mesmo um homem desgraçado. Sem mulher, sem amigos e odiado pelos filhos. Não tinha mais com quem discutir, nem brigar, nem implicar, pois de tanto fazê-los afastei todos de mim. O grande chefe de tudo, na busca insana pelo sucesso tinha barganhado até o que não se pode barganhar, e agora estava ali, mendigando atenção a um mendigo, cujo silêncio em revide era o "panelaço" mais aterrorizante do mundo.
Por um momento desejei ser ele, desejei de verdade. Ele iria dormir sem banho, sem cama e sem teto, enquanto eu, com teto, lençóis e com cama, sequer dormiria.
"Filhos da puta! Não percebem que a Amazônia é o pulmão do mundo, seus desgraçados?!" — gritei com eco sem nem perceber, movido que estava pelas frustrações e pelos goles de Whisky.
O mendigo, embrulhado e ainda sem me olhar, murmurou-me, de olhos fechado, como eu poderia estar preocupado com o pulmão do mundo enquanto fumava o meu próprio pulmão.
Olhei-o com surpresa ali deitado e fiquei sem resposta. "O homem mau tem a boca pervertida," — continuou ele, então, de olhos fechados e sereno, sem se virar ou levantar-se — "tem sim, a boca pervertida, acena com os olhos, fala com os pés e faz sinais com os dedos. Há no seu coração perversidade, todo o tempo maquina mal; anda semeando contendas. Por isso a sua destruição virá repentinamente; subitamente será quebrantado, sem que haja cura. Estas seis coisas o Senhor odeia, e a sétima a sua alma abomina: olhos altivos, língua mentirosa, mãos que derramam sangue inocente, o coração que maquina pensamentos perversos, pés que se apressam a correr para o mal, a testemunha falsa que profere mentiras, e o que semeia contendas entre irmãos."
"É mesmo um doido" — pensei comigo ao ouvir o que para mim era um delírio. Minha cabeça doía e o frio na rua já me fazia tremer; peguei então uma bituca de cigarro ainda acesa no chão e subi pra casa. Hoje, ao sair à porta, uma ambulância recolhia o corpo do mendigo que, não se sabe por fome ou por frio, amanheceu sem vida. O cachorrinho dele, ainda sem nome, está aqui agora no meu colo enquanto escrevo, atencioso e lambão; e as palavras de delírio por ele ditas ontem me fazem meditar agora, pesaroso, no mal meu e da nação.
*VALMINTAS BAGAROTE
-Membro convidado da Academia Corjesuense de Artes, Ciências e Letras;
-Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros-Unimontes e
-Escritor sem qualquer pretensão de sê-lo.
Nota do Editor:
Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.
Obrigado por compartilhar este testo conosco, obrigado por ficar também com o cachorrinho. Deus te abençoe sempre.
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