domingo, 6 de outubro de 2019

Fundamental é Mesmo o Amor


Autora: Karla Kratschmer(*)




"Sempre digo que a medicina é fácil. Chega a ser até simples demais perto da complexidade do mundo da psicologia. No exame físico, consigo avaliar quase todos os órgãos internos de um paciente. Com alguns exames laboratoriais e de imagem, posso deduzir com muita precisão o funcionamento dos sistemas vitais. Mas observando um ser humano, seja ele quem for, não consigo saber onde fica sua paz. Ou quanta culpa corre em suas veias, junto com seu colesterol. Ou quanto medo há em seus pensamentos, ou mesmo se estão intoxicados de solidão e abandono". 

(Ana Claudia Quintana Arantes: A morte é um dia que vale a pena viver).

Viver com dor não é fácil; e uma existência sem dor não é possível. Agora imagine essa dor unida à sensação de desamparo. Muitas pessoas diante de tal sofrimento perdem qualquer esperança que poderia motivá-las a buscar alternativas para lidar com essa dor; e em total desesperança enxergam no suicídio a melhor saída.

"As taxas de suicídio têm aumentado no mundo todo. Entre 2000 e 2012 houve aumento de 10,4% na quantidade de mortes no Brasil" [1]. 

O que a pessoa muitas vezes não consegue elaborar – e vai inclusive parecer bastante clichê o que eu vou dizer agora – é que ela quer acabar com a dor e não necessariamente com a vida. 

Aqui tomo como exemplo, o psicanalista J. Rickman, que diz que "doença mental consiste em não ser capaz de encontrar alguém que possa aturá-lo".

"O olhar dos olhos’ não enxerga a essência, somente a forma".(Nilton Bonder; A Alma Imoral).

A dor emocional coloca a pessoa numa posição bastante delicada e difícil. Por exemplo, se você quebra uma perna quem te encontra percebe, pergunta, e você explica o que aconteceu; como você quebrou a perna. 

Com a dor emocional é diferente. De um lado você tem aquelas pessoas que não percebem que algo não está bem; do outro temos as pessoas que percebem, mas não perguntam por não saberem como lidar; e temos também as pessoas que irão perceber e perguntar, mas em contrapartida quem sofre não consegue explicar o que aconteceu que a deixou mal. Diferentemente de quando se tem uma ferida aparente e sabe-se qual a origem dela.

"(...) Mira tem catorze anos e é muito exagerada. Por isso, quando entrou esbaforida no quarto e fechou a porta atrás de si, com grandes gestos, eu disse:

- Beba um copo d’água e depois conta como a gata teve trinta gatinhos e dois cachorrinhos pretos.

- Clarinha disse que ele se matou! (...) É verdade, é? É mentira, não é?

E repentinamente a história se partiu. Nem teve ao menos um fim suave".
(Clarice Lispector; História interrompida).

"O suicídio está presente em todas as culturas, e a ideia de que não é um evento frequente além de errada dificulta a prevenção." [1] 

O tabu inibe o pedido de ajuda, e a falta de informação gera preconceitos; quando encarar o problema pode salvar vidas.

Por isso é tão importante se informar, compartilhar informações, acolher e orientar pessoas em sofrimento. Ajudando de forma responsável: acolhendo, ouvindo, apoiando e orientando na busca por ajuda profissional. Não é uma atitude e ajuda responsável considerar que a pessoa em sofrimento só precisa desabafar. A ajuda que ela precisa é mais complexa, e você pode orientá-la e ajudá-la a encontrar o tratamento adequado.

Atente-se aos fatores de risco. Problemas de saúde, doenças mentais e emocionais, aspectos psicológicos como perdas, desespero, desamparo e desesperança; fatores sociais como a rejeição, desemprego – e aqui temos um agravante que é a atual situação econômica do Brasil, que por si só não aumenta as taxas de suicídio, mas pode intensificar os quadros de depressão, por exemplo [2] – idade e gênero - há um risco maior entre 15 e 30 anos e acima dos 65 e os óbitos são três vezes maiores entre homens – todos esses são fatores de risco. [1] 

Vale reforçar que o maior número de óbitos entre os homens não quer dizer que homens são mais suicidas do que as mulheres, uma vez que a estatística aponta que “os óbitos são três vezes maiores entre os homens, porém a tentativa é em média três vezes maior entre as mulheres”. [1] “Homens utilizam métodos mais agressivos” [3] e “mesmo tendo condições, buscam menos ajuda em momentos de crise emocional, amorosa, conjugal, financeira, etc” [2] por causa do estigma de que o homem precisa se mostrar forte o tempo todo.

"No mundo todo, o suicídio tem aumentado entre os mais jovens, especialmente na população entre 15 e 29 anos, de todos os gêneros". [2]

Pessoas que nasceram após os anos 2000 estão se mostrando mais despreparadas emocionalmente. "Aprenderam a ter satisfação imediata", [2] estão sendo poupadas de dores e frustrações, e unindo esse despreparo ao fato de que adolescentes são naturalmente mais impulsivos muitos acabam cometendo suicídio.

No Brasil, houve aumento do suicídio também entre jovens negros. "Segundo dados do Ministério da Saúde brasileiro, houve um aumento de 12% na taxa de suicídio de negros de até 29 anos, entre 2012 e 2016. O índice é 45% superior ao registado entre indivíduos brancos da mesma faixa etária." [2] "O racismo impõe aos negros mais vulnerabilidade nas ruas e ambientes sociais, além de interferir na autoestima". [2]

A terceira idade também está entre os grupos mais vulneráveis; "para cada 4 adolescentes que decidem tirar a própria vida, 200 idosos fazem o mesmo". [2]

Outro grupo que precisa de atenção e atendimento especial é o de pessoas que "presenciaram a cena [do suicídio] ou que perderam alguém" [2]. Pessoas enlutadas precisam falar sobre o que sentem. Há um conflito grande em que elas sentem a dor pela perda ao mesmo tempo em que muitas vezes sentem raiva; resultando em imensa angústia e culpa. Então é muito importante que essas pessoas possam falar sobre o que sentem, tendo assim a chance de elaborar bem o luto.

"Os [seres humanos], universalmente, julgam as coisas mais com os olhos do que com as mãos, porque todos podem ver, mas poucos podem sentir"(Nicolau Maquiavel; O Príncipe)

Acabamos de passar pelo mês de setembro; mês da conscientização sobre o suicídio, onde se fala muito sobre o movimento Setembro Amarelo que foi criado em 2015 com a intenção de disseminar informações sobre o tema; onde se fala muito que toda vida importa; mas findado o mês não podemos esquecer que o problema persiste, que "a cada 40 segundos, alguém comete suicídio no mundo" [2], e que todo dia é dia de reparar em quem está próximo a você e se preocupar em perguntar como a pessoa se sente.

Muita gente vê a pessoa suicida como alguém que só quer chamar a atenção; então vamos olhar para esse sentimento com o cuidado de que sim a pessoa pode estar querendo chamar atenção. Chamar atenção para a dor como um pedido de socorro. 

Pergunte para pessoas que você conhece como elas estão se sentindo. Dê importância e atenção aos filhos e filhas adolescentes; não ignore a dor achando que é drama, que é só uma fase e que passa com o tempo. Sim, algumas coisas fazem parte de cada fase do desenvolvimento do ser humano, mas nem tudo o tempo cura.

Busque não interpretar crises de mulheres como dramas, frescuras; e de homens como algo vergonhoso – e muitas vezes dramático também. Passe a acolher a dor de outras pessoas e a conversar com elas sobre a importância e a necessidade de atendimento psicológico.

É natural que ao conversar com pessoas amigas tendamos a colocar conteúdos nossos enquanto a ouvimos falar; o famoso "ah, quando aconteceu comigo sabe o que eu fiz?"; e isso definitivamente não é bom. 

Procure enxergar a outra pessoa como alguém diferente de você. Não importa se o que estão te contando é algo pelo qual você já passou. A dor é singular; cada pessoa sente e sofre a sua maneira. E cada pessoa descobrirá também uma forma de sair da situação, que é só dela. 

O que funciona para uma pessoa pode não funcionar para a outra. O que causa a dor dela pode não ser o mesmo que causa dor em você, mas ainda assim isso não anula o sofrimento.

Uma coisa que pode ajudar bastante é antes de perguntar ou dizer algo, pensar ‘isso vai ajudá-la ou é mera curiosidade/necessidade minha?’, e se não for algo que pode ajudá-la, aquele pode não ser o melhor momento para dizer.

"Assim vivi só, sem ninguém com quem falar de verdade, até uma pane no deserto do Saara, há seis anos. Alguma coisa quebrou no meu motor. E como eu não tinha comigo nem mecânico, nem passageiros, eu me preparei para tentar fazer um conserto difícil sozinho".(Antoine de Saint-Exupéry - O Pequeno Príncipe)

Vale lembrar que todo dia também é dia de pedir ajuda. Se você está passando por um momento conflitante, de crise, de dor emocional, converse com alguém próximo sobre o que está acontecendo. Se você sentir que não tem com quem conversar, que ninguém te entende, você pode ligar para o Centro de valorização da vida (CVV), através do número 188. 

Se você for homem e tiver dificuldade de pedir ajuda por achar que precisa se manter forte e que sofrer é demonstrar fraqueza e fragilidade, busque atendimento psicológico; nem que seja num primeiro momento para desconstruir essa crença de que homem não pode sofrer, não pode sentir dor, não pode mostrar sentimentos. Vamos deixar a fantasia do super-homem para o cinema, pois ela não se encaixa na nossa realidade.

Não importa se você estiver passando por algo que outras pessoas passam ou já passaram. Também não importa o que você já ouviu e o quanto já te fizeram acreditar que não há espaço para o sofrimento, o quanto parece que sua vida é boa e perfeita sem motivos para "reclamar". Fale sobre o que sente sempre que precisar.

Falar com alguém sobre o assunto pode aliviar a angústia que esses pensamentos trazem, proporcionando a sensação de alívio. Mas é importante lembrar também que isso não significa que o problema foi resolvido. 

Conversar pode aliviar a angústia, mas não substitui o atendimento e o acompanhamento psicológico. Procure por uma psicóloga ou um psicólogo. Faça terapia. Faça análise. Cuide de você.

Se você vem, por exemplo, às quatro horas da tarde, desde as três eu começarei a ficar feliz.(Antoine de Saint-Exupéry - O Pequeno Príncipe)

Não há como alguém "carregar" a dor e o sofrimento por você; mas a carga pode ser muito mais leve se "dividida". 

De certa forma discordo de Tom Jobim quando diz que "é impossível ser feliz sozinho", ao mesmo tempo em que chego a concordar que "fundamental é mesmo o amor"; e o amor se mostra de diversas formas. 

Não se esqueça de que Setembro Amarelo é todo dia.

Referências:

- [1] Suicídio: informando para prevenir / Associação Brasileira de
Psiquiatria, Comissão de Estudos e Prevenção de Suicídio. – Brasília: CFM/ABP, 2014;

- [2] Existe alguma ligação entre crise econômica e aumento nas taxas de suicídio? – São Paulo: BBC, 2019: https://www.bbc.com/portuguese/geral-48890430;


- A morte é um dia que vale a pena viver; Ana Claudia Quintana Arantes

- A Alma Imoral; Nilton Bonder

- Clarice Lispector Todos os contos – História interrompida

- O Príncipe; Nicolau Maquiavel

- O Pequeno Príncipe; Antoine de Saint-Exupéry

*KARLA KRATSCHMER


Karla Kratschmer é psicóloga e psicanalista, e sua atividade clínica abrange o atendimento psicoterápico para adultos e adolescentes.

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