Muito mais comum encontrar
literatura para ajudar os pais na criação dos filhos, mais do que temos em
literatura sobre ensinar os filhos a lidar os pais. Por que será?
Talvez porque os autores, que são adultos, não se autorizam em lembrar-se de suas infâncias ou sintam-se culposos por julgar seus pais. Ou até mesmo porque já sejam pais e não sobra espaço para olhar para trás, pois os conflitos atuais de como criar seus filhos toma lugar.
De forma alguma quero isentar o quanto não é fácil criar filhos. A intenção desse texto é validar o quanto é difícil ser filho e não minimizar o quanto é difícil ser pais. Ficaríamos com: "Como é difícil ser pequeno! É mais difícil ser pequeno do que grande…".
Para ilustrar, podemos olhar
politicamente e pensar em nosso governo; olhar o índice de maus tratos de
animais; o aumento de mulheres agredidas; o número de mendigos que ainda são
mortos pelas ruas; e, uma criança colocada em um barril por 3 dias depois de
ser destruída em vários sentidos, inclusive psiquicamente.
Não falo apenas de filhos só enquanto são crianças, pois chegam em meu consultório adultos que ainda são crianças perante seus pais e que, podem também, transportar essa questão da relação pequeno/grande para outras figuras de autoridade.
Enquanto não for feito um trabalho sobre os traumas não elaborados, estes adultos estão presos no atemporal de seus inconscientes correspondendo às demandas narcísicas de seus pais.
Não é incomum existirem filhos que se sentem culpados por não serem exatamente o que seus pais queriam. Claro, não elimino a importância do desejo dos pais sobre seus filhos para que sejam independentes, inteligentes e interessantes. O que trago são os pais que desenham seus filhos e esperam que eles correspondam com tal imagem que é, normalmente, uma imagem frente a um espelho imaginário e narcísico. Neste espelho, não adiantaria o filho ser professor: ele teria que ser médico. Não adiantaria serem felizes e ter caráter: deveriam ser héteros. Não adiantaria ter uma fé: teriam que ter a mesma de seus pais.
E com isso, esses filhos seguem culpados por não serem a imagem narcisicamente esperada por seus pais. Sentem-se culposos por coisas que competem exclusivamente à história de seus pais que são jogadas sobre eles provavelmente ainda na barriga da mãe. Um "caminhão" de deveres inconscientes que cairão sobre ele(a) quando nascer. Por exemplo, unir um casal ou ser bem sucedido quando crescer para sustentar seus pais na velhice e toda sua família ou serem santos em uma fantasia de livrar essa mesma família de mazelas ditas ou entendidas como pecado. Filhos intelectuais que, por força maior do inconsciente, não conseguem entender e separar a diferença de poder escolher o que querem fazer pelos seus pais com uma suposta obrigatoriedade frente a eles. Sei que o muro é fino dessa diferença: a própria lei pode nos confundir um pouco – posso escolher se quero os meus filhos, mas não posso escolher se quero os meus pais.
Pacientes que decidiram não conviver com seus pais ou não ajudá-los em nada, pois se sentem traídos por terem vivido histórias de abusos físicos, sexuais e psicológicos recebem o olhar da sociedade de que abandoná-los seria errado. Obviamente, temos todos os tipos de pessoas, como filhos que receberam afeto e se tornaram cruéis. Mas esses são de número infinitamente menor do que os filhos que tiveram pais cruéis e se tornaram pessoas cruéis ou filhos que tiveram pais cruéis e tentaram não repetir seus pais e até mesmo os filhos que tiveram pais cruéis e ainda tentam encontrar o que falta neles próprios, como resposta do motivo de não serem amados.
Que sociedade cruel e hipócrita… com seus olhares julgadores!
Esclarecendo que ser cruel não é
só o que fica escancarado para todos, que bastaria um vizinho querer denunciar.
Temos também a crueldade que fica escondida, bullyings familiares que ficam disfarçados em brincadeiras ou pais
que arrancam de seus filhos o desenvolvimento natural psicossocial, inibindo-os
de construir amigos e/ou relacionamentos amorosos, pois o querem só para eles!
Isso fica parecendo amor, não é? Mas não é. Pais que mimaram seus filhos não os
responsabilizando por nada, não os preparando para a vida! Mimo parece amor,
não é? Mas não é. A não ser que chamemos isso de amor negativo, um amor que faz
mal. Mas essas duas palavras parecem ser antagônicas para mim.
A questão está em pais que, por
mais que recebam orientações profissionais de professores, psicólogos e
pediatras, não mudam. E adivinhem quem pagará o preço: os pais morrem e ficam
seus filhos machucados ou capados sem aptidão para conviver em uma sociedade
que pode ser tão cruel quanto os pais.
Nesse contexto, parece valer a
pena trabalhar com minhas pacientes crianças quando estão relutantes em crescer
por medo de serem adultos e pagar suas contas que, se elas soubessem o quanto
isso é tão mais fácil do que passar por tudo que acabei de relatar, pois ‘ser
grande’ é muito mais fácil do que ser objeto de alguém.
Claro, entendo a fantasia das
crianças quando são cuidadas por pais suficientemente bons e maduros
psiquicamente. Mas essas crianças crescerão bem e até terão saudade de suas
infâncias sem ter que recortar suas histórias e esconder de si mesmas seus
sentimentos dolorosos contando cenas e rindo, como se tivesse graça, sobre suas
surras e punições severas. E definitivamente isso não tem graça. Definitivamente,
é mais difícil ser filho do que ser pais.
Enfim, é mais difícil ser pequeno
do que grande. É mais difícil ser objeto do que ser sujeito de seus desejos. E
isso não é uma questão de idade, é uma questão de alcançar um lugar: exatamente
esse que eu preciso crescer para habitar.
(*)RENATA DE MASI
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