Autor: Sergio Pereira Leite(*)
Nossa legislação civil foi recentemente modificada. Com a edição da Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002, que veio a substituir o Código Civil de 1916, que teve sua vigência por quase um século.
Se considerarmos a dinâmica social nesse último século, poderemos constatar a imensa variedade de situações que tomaram rumos absolutamente opostos ao daquele tempo.
Sobre o tema filiação o Código derrogado previa hipóteses que hoje nem se cogitam, como, vg, a expressão "filhos legítimos". A Constituição de 1988 veio trazer, com cores ainda mais berrantes, a necessidade de se adequar a lei civil à realidade brasileira. E assim se fez, não com remendos ao texto anterior, mas sim através de um conselho de notáveis que se debruçou sobre isso e fez criar a novo Codex substantivo brasileiro.
Porque não havia outra forma mais adequada, a não ser refazer, com as necessárias adequações, o texto legal. E existem artigos na nova legislação sem qualquer correspondência com a anterior, porque realmente algo de novo veio a lume.
Não podemos nos esquecer que o Código Civil de 1916 tratava de uma sociedade patriarcal, onde a condição feminina não permitia voto, a vontade da mulher carecia da anuência marital e outras situações que hoje nem mesmo acreditamos que fossem possíveis.
Dissemos, alhures, que o Brasil de 1916 era uma sociedade baseada na agricultura, basicamente nas lavouras de café e de cana de açúcar. Também não haviam transcorrido 30 anos da Abolição da Escravatura onde a mão de obra barata dos escravos não mais existia.
E esse código derrogado resistiu a inúmeros textos constitucionais, mas não ao de 1988, que trouxe para a sociedade de então, recentemente livre do regime militar, uma tônica mais realista e atual aos direitos fundamentais de seus cidadãos.
Voltando ao tema, antes dessa constituição, os brasileiros tinham filhos legítimos e não legítimos, estes muitas vezes fruto de relações adulterinas entre o senhor e suas escravas, que eram criados pelo pai como bastardos.
Em boa hora tivemos, no texto constitucional e na lei civil, neste onde se distinguiam as relações de parentesco, como sendo os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
O artigo 1.596 acima mencionado, foi redigido para se conformar com a norma constitucional (§ 6º do artigo 227). Aliás, foi apenas reproduzido. Dessa maneira, não mais haviam distinções entre os filhos, havidos eles ou não de uma relação de casamento.
Posto isto, ainda havia uma norma que não se coadunava com o texto constitucional. O artigo 1.790, que está inserido no Livro IV, Título I e que trata da Sucessão em geral, tinha a seguinte redação, verbis:
Artigo 1.790 – A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro quando os bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas seguintes condições:
I – se concorrer com os filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II- se concorrer com descendente só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III- se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.
Duas leis posteriores à vigência do Código Civil deram nova vestimenta ao direito sucessório. A primeira delas, de nº 8.971/1994 equiparou o companheiro ao cônjuge sobrevivente na ordem da vocação hereditária, colocando aquele ao lado deste na terceira classe preferencial, logo após os descendentes e ascendentes e também concedeu ao companheiro supérstite usufruto vidual, em similaridade com o que era previsto no artigo 1.611, § 1º do Código Civil revogado.
A segunda dessas leis, identificada com o nº 9.278/1996, contemplou o companheiro com o direito real de habitação, tal como previsto no § 2º do artigo 1.611 ao cônjuge casado pelo regime da comunhão universal de bens, o que era uma incongruência, de dar tratamento mais favorecido ao companheiro, fez surgirem várias correntes doutrinárias e jurisprudenciais.
Mas isso tudo mudou com o advento do Novo Código Civil de 2002, quando deu tratamento aos direitos sucessórios do companheiro, o fazendo com elasticidade, o que, em tese, revogou totalmente o sistema implantado pelas leis de 1994 e de 1996, porquanto o direito sucessório, sob a batuta do novo dispositivo codificado, tratou o direito sucessório do companheiro apenas no artigo 1.790.
Mas o citado artigo foi declarado inconstitucional pelo STF em maio de 2017, quando nossa corte constitucional enfrentou o tema ao julgar o Recurso Extraordinário n° 878.694 com repercussão geral reconhecida (Tema n° 809), declarando inconstitucional o artigo 1.790 do Código Civil, que regulamenta o regime sucessório do companheiro e da companheira.
O acórdão restou ementado nos seguintes termos:
"Direito constitucional e civil. Recurso extraordinário. Repercussão geral. Inconstitucionalidade da distinção de regime sucessório entre cônjuges e companheiros. 1.A Constituição brasileira contempla diferentes formas de família legítima, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável.2.Não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988. 3.Assim sendo, o artigo 1790 do Código Civil, ao revogar as Leis nºs 8.971/94 e 9.278/96 e discriminar a companheira (ou o companheiro),dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente, e da vedação do retrocesso. 4. Com a finalidade de preservar a segurança jurídica, o entendimento ora firmado é aplicável apenas aos inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha, e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública. 5. Provimento do recurso extraordinário. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: "No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no artigo 1.829 do CC/2002".
(STF, Recurso Extraordinário n° 878.694, Rel. ministro Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 10.05.2017, publicado em 06.02.2018).
A tese extraída do julgamento foi firmada nos seguintes termos: "É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no artigo 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do artigo 1.829 do CC/2002".
Considerando a importância prática da decisão e a sua enorme repercussão, o Supremo Tribunal Federal modulou os efeitos da aplicação do entendimento firmado, determinando que a solução alcançada deveria ser aplicada apenas aos processos judiciais em que ainda não tivesse havido trânsito em julgado da sentença de partilha, assim como às partilhas extrajudiciais em que ainda não tivessem sido lavrada escritura pública.
Em passado bem recente, o Superior Tribunal de Justiça apreciou celeuma atinente ao alcance da modulação dos efeitos da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário n° 878.694 (Tema n° 809).
No âmbito dessa corte infraconstitucional, buscou-se a reforma de decisão, proferida no bojo de processo de inventário, que havia determinado a inclusão da companheira do de cujus na partilha de um imóvel comprado por ele em momento anterior à união estável, não obstante a companheira tivesse sido excluída da divisão do bem, com base no artigo 1.790 do Código Civil, em decisões anteriores ao julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal. (STJ - Inconstitucionalidade da distinção de regimes sucessórios alcança decisão anterior que prejudicou companheira.
Disponível: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/17082021-Inconstitucionalidade-da-distincao-de-regimes-sucessorios-alcanca-decisao-anterior-que-prejudicou-companheira.aspx.)
As partes argumentaram que as decisões anteriores ao precedente firmado pelo Supremo Tribunal Federal "estariam acobertadas pela imutabilidade decorrente da preclusão e da coisa julgada formal, motivo pelo qual não poderiam ser alcançadas pela superveniente declaração de inconstitucionalidade".
Ao analisar a questão, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, em acórdão relatado pela ministra Nancy Andrighi, decidiu que a tese fixada pelo STF se aplica às ações de inventário em que ainda não foi proferida a sentença de partilha, "ainda que tenha havido, no curso do processo, a prolação de decisão que, aplicando o artigo 1.790 do CC/2002, excluiu herdeiro da sucessão e que a ela deverá retornar após a declaração de inconstitucionalidade e a consequente aplicação do artigo 1.829 do CC/2002" (STJ, Recurso Especial n° 1.904.374/DF, Rel. ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 13.03.2021, publicado em 15.04.2021)
Na prática, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a possibilidade de se incluir a companheira ou o companheiro na concorrência hereditária até o momento do trânsito em julgado da sentença de partilha (cf. artigo 1.829 do Código Civil), mesmo na eventualidade de existir decisão anterior em sentido oposto — proferida em desacordo com o precedente firmado pelo STF.
O fundamento jurídico que norteou a decisão esposada pelo Superior Tribunal de Justiça repousou na inexequibilidade do título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (cf. artigos 525, §12, e 535, §5º, do CPC .
Consta desse julgado: "Desde a reforma promovida pela Lei 11.232/2005, a declaração superveniente de inconstitucionalidade de lei pelo Supremo Tribunal Federal torna inexigível o título que nela se funda, tratando-se de matéria suscetível de arguição em impugnação ao cumprimento de sentença – ou seja, após o trânsito em julgado da sentença (artigo 475, II e §1º, do CPC/73) –, motivo pelo qual, com muito mais razão, deverá o juiz deixar de aplicar a lei inconstitucional antes da sentença de partilha, marco temporal eleito pelo Supremo Tribunal Federal para modular os efeitos da tese fixada no julgamento do tema 809". (STJ, Recurso Especial n° 1.904.374/DF, Rel. ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 13.03.2021, publicado em 15.04.2021).
E ainda nos ensina José Miguel Garcia que, apesar de o Código de Processo Civil adotar a denominação "inexigibilidade da obrigação reconhecida em título executivo judicial" ele destaca que: "O que se está em jogo, no caso previsto no § 12 do artigo 525 do CPC/2015 (e, também, do §5.º do artigo 535 do CPC), é a questão consistente em se saber se a decisão proferida de modo contrário à orientação firmada pelo STF em controle de constitucionalidade pode, ou não, ser executada. No caso, portanto, parece mais adequado falar-se em inexequibilidade do título, e não em inexigibilidade da obrigação nele reconhecida". (MEDINA, José Miguel Garcia. Código de Processo Civil comentado. 6. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 903).
Enfim, o artigo 1.790 do Código Civil é inconstitucional porque viola os princípios constitucionais da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da proporcionalidade na modalidade proibição da proteção deficiente e da vedação ao retrocesso.
Estas, em poucas linhas, as minhas reflexões sobre o tema com respaldo nas lições dos eminentes doutrinadores e juristas, mencionados na bibliografia abaixo.
Bibliografia:
(MEDINA, José Miguel Garcia. Código de Processo Civil comentado. 6. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 903);
(ANTONINI, Mauro. Código Civil Comentado – 1ª edição – 2007 – Editora Manole – vários autores)
* SERGIO LUIZ PEREIRA LEITE
Advogado militante nas áreas cível e criminal na Comarca de Tietê, Estado de São Paulo, onde já foi, por duas vezes, presidente da 134ª Subseção da OAB e que, na atual gestão, participa como vice-presidente.
Nota do Editor:
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