Autora: Karolyne Toscano Vasconcelos(*)
O debate jurídico atual tem se concentrado, quase obsessivamente, nas inovações tecnológicas. Inteligência artificial, blockchain e outras expressões do futuro ocupam o centro das discussões acadêmicas, legislativas e institucionais. No entanto, ao fixar o olhar apenas no que está por vir, o Direito negligencia um aspecto cada vez mais crítico: os sistemas antigos, obsoletos, mas ainda em funcionamento — legados digitais cuja estrutura e lógica se tornaram ininteligíveis ou inseguros, mas que seguem operando decisões públicas e privadas.
Esse fenômeno, que aqui se propõe chamar de obsolescência invisível, representa uma nova e silenciosa fonte de risco jurídico. Trata-se da permanência de tecnologias ultrapassadas, frequentemente opacas, que seguem produzindo efeitos no mundo real sem o devido controle, atualização ou responsabilização. A esse quadro soma-se o desafio do chamado black box legacy: sistemas legados cujo funcionamento é uma "caixa-preta", sem documentação, suporte técnico ou compreensão.
O mito da inovação permanente e a cegueira jurídica para o passado digital
A narrativa dominante do Direito Digital se ancora em uma promessa de regulação do novo. Leis, pareceres, orientações técnicas e debates doutrinários concentram-se na antecipação de riscos futuros, como se a ameaça jurídica estivesse sempre por vir. Essa lógica desconsidera o fato de que muitos sistemas tecnológicos em operação hoje não são novos — são legados. E, mais que isso, são desconhecidos, tanto por seus operadores quanto pelos agentes jurídicos que deles dependem.
Hospitais, tribunais, universidades, instituições financeiras e órgãos públicos ainda utilizam sistemas desenvolvidos décadas atrás, muitas vezes sem acesso ao código-fonte, sem atualizações regulares, e sem qualquer política de governança digital. A obsolescência técnica desses sistemas não é apenas um problema de eficiência, é uma questão de segurança, transparência, confiabilidade e, sobretudo, de responsabilidade jurídica.
A obsolescência invisível como fato jurídico relevante
Ao contrário da obsolescência programada — conceito mais conhecido e voltado ao consumo —, a obsolescência invisível não resulta de uma intenção mercadológica de substituição, mas da inércia diante da degradação tecnológica. Sistemas continuam operando não porque funcionam bem, mas porque não foram substituídos a tempo. Os riscos disso são múltiplos: decisões baseadas em dados imprecisos, falhas de interoperabilidade, perda de rastreabilidade, vulnerabilidades de segurança, entre outros.
O Direito ainda não reconhece esse fenômeno como um fato jurídico autônomo, digno de análise e responsabilização. Mas deveria. Se uma decisão é tomada com base em uma tecnologia obsoleta, cuja lógica de funcionamento não pode ser auditada, compreendida ou questionada, há violação do princípio da motivação, da transparência e, em alguns casos, até mesmo do devido processo legal.
A Lei Geral de Proteção de Dados garante direitos como o acesso, a correção e a eliminação de dados. No entanto, como assegurar o cumprimento desses direitos diante de sistemas legados, muitas vezes sem interoperabilidade com novas ferramentas? Se um cidadão solicita a exclusão de seus dados, mas eles estão espalhados por bases antigas, sistemas redundantes e rotinas automatizadas desatualizadas, como se dá a efetividade da exclusão?
Propõe-se aqui o reconhecimento de uma responsabilidade residual por inércia tecnológica: a obrigação de mapear, arquivar ou descontinuar sistemas legados que ainda impactem dados pessoais, sob pena de violação à autodeterminação informativa.
Proposta de enquadramento jurídico
Sugere-se que o ordenamento brasileiro reconheça, por analogia ao art. 14 do CDC e ao art. 927 do Código Civil, uma obrigação de resultado quanto à atualização e fiscalização de sistemas automatizados, sobretudo quando tais sistemas:
I. envolvem dados sensíveis;
II. geram efeitos jurídicos sobre os titulares;e
III.tenham sido terceirizados sem cláusulas específicas de atualização tecnológica.
A inclusão de cláusulas obrigacionais em contratos de prestação de serviços digitais, prevendo prazos máximos de uso de sistemas e mecanismos de atualização contínua, poderia mitigar riscos regulatórios e reputacionais.
A sociedade da informação não está apenas criando direitos — está sendo, ao mesmo tempo, silenciosamente corroída por tecnologias esquecidas que seguem operando no cotidiano institucional. O Direito não pode mais limitar sua atuação à regulação do que está por vir. É preciso observar os restos digitais do passado que ainda moldam o presente.
O reconhecimento jurídico da obsolescência invisível pode representar uma medida disruptiva, mas é, sobretudo, uma resposta necessária a um novo cenário de riscos: aquele que emerge não da inovação, mas do abandono tecnológico sem controle, sem documentação e sem responsabilidade. Responsabilizar quem se omite diante da degradação silenciosa de sistemas é uma forma de proteger a integridade das decisões e dos direitos na era digital.
KAROLYNE TOSCANO VASCONCELOS
-Advogada inscrita na OAB/PB sob o nº 30.201;
-Bacharela em Direito pela Unifacisa Centro Universitário (2020);
-Pós-graduada em Direito das Mulheres pela I9 Educação
( 03/2025);
-Pós-graduanda em Direito Digital, LGPD e Proteção de Dados pela I9 Educação;
Nota do Editor:
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