domingo, 2 de outubro de 2016

Da maquiagem ao Eu interior



Os dias e as noites estavam sendo iguais há tempos, e naquela noite não foi diferente. Ana Luíza* chorou a noite toda, num sofrimento contido entre quatro paredes. Ao acordar, pela manhã, olhos inchados e rosto avermelhado, tinha que dar um jeito de esconder tudo, calando no fundo de sua alma aquela dor que “não” tinha razão de existir.

Abriu seu armário, pegou sua nécessaire e se deparou com a solução de seus problemas. Meia hora seria o suficiente para resolver tudo, e assim aconteceu. Maquiagem pronta, roupa alinhada, um lindo salto alto e, ela estava pronta para encarar sua jornada bem sucedida. Visitou clientes, participou de reuniões, cumpriu suas tarefas e o mais importante, ninguém percebeu o que estava escondido debaixo de toda aquela maquiagem que a deixava simplesmente linda pelo olhar do outro.

Isso mesmo, ninguém percebeu! E não percebendo, ninguém voltou uma especial atenção. Não dispensando atenção, ninguém pode cuidar. Não cuidando, ninguém pode buscar uma estratégia para ajudá-la em seu sofrimento. E assim, Ana Luíza voltou para casa no fim do dia para mais uma jornada de lágrimas, sem se dar conta de que estava precisando de cuidados, sem assumir para si mesma que não estava conseguindo ser feliz, que havia alguma coisa errada e que precisava olhar para si mesma e encarar sua dor, aceitar sua dor e agir na sua dor.

Quem de nós nunca passou por algo semelhante, escondendo sentimentos, sufocando angústias e mantendo as aparências? Quem nunca considerou como fraqueza assumir um sofrimento, chorar quando é surpreendido por um inconveniente, falar de suas dificuldades, assumir para si mesmo que não é tão perfeito como gostaria de ser? Como é difícil olhar para dentro e perceber que lá, no íntimo, a maquiagem não tem acesso e não surte o mesmo resultado, não é mesmo? 

No entanto, olhar para dentro e assumir os desajustes são os primeiros passos para se buscar uma realidade melhor, mais verdadeira, que faça mais sentido. Ser congruente é o bálsamo salutar para as feridas que acabamos por adquirir na convivência social, que preza as aparências, que privilegia o erro (“o mundo é dos espertos”), que cria regras que nem sempre fazem sentido para nós, porém acabamos por segui-las sem questioná-las. Deixamos nossos sonhos e ideais para seguir uma ideologia imposta pelos outros, e aos poucos vamos deixando de ser, nos afastando mais e mais de nós mesmos. Tornamos-nos tristes, amargurados, ansiosos, depressivos entre tantos outros lixos emocionais que vamos acumulando dentro de nós.

Ser congruente significa ser verdadeiro consigo mesmo e se permitir agir com liberdade em relação ao que se acredita, ao que se quer, ao que se busca. É estar conectado com seus sentimentos e vivenciá-los. É ser autentico e verdadeiro, é se aceitar e se respeitar. A vida passa rápido demais para se viver de maneira diferente disso.

Sei que isso não é tarefa fácil, mesmo porque aprendemos desde pequenos a esconder o que estamos sentindo, a calar quando queremos falar, a engolir o choro quando queremos chorar (“engole o choro, senão te dou um motivo real para chorar!”), a não fazer o que temos vontade. Podemos dizer inclusive, que tudo isso faz parte do processo de “educação”. Entretanto, tudo o que vamos ouvindo e vivenciando vai se consolidando como uma maneira de integrar e interpretar o nosso meio e se torna a nossa verdade. Essa verdade, algumas vezes pode se manifestar de forma pouco adaptativa, com pensamentos distorcidos sobre a realidade e ser um fator causal para o sofrimento. Estar atento aos seus pensamentos é uma atitude preventiva, pois eles são capazes de conduzir suas emoções, podem ser perturbadores ou propagadores de alegria, e dizem muito a respeito de quem você é e de sua forma de atuar diante das situações. 

Deixo meu sincero desejo de que você possa fazer um exercício de reflexão, que se permita deixar sua criança interior se manifestar, que aceite suas conquistas e dificuldades, que se permita renascer a cada amanhecer e que cuide de sua essência com o mesmo cuidado que Ana Luíza cuida de sua maquiagem. Que você neste momento possa se olhar no espelho e se perceber lindo / linda por fora e também por dentro. 

Nada como o poder de um batom! Nada como a força de uma emoção! Nada como a fortaleza daquele que conhece sua capacidade e seu limite!

* Personagem fictícia.

POR SUELI DONISETI DOS SANTOS














-Psicóloga Clínica;
-Graduada pela Universidade Cruzeiro do Sul, 
Especialista em Neuropsicologia com formação em Reabilitação Cognitiva, pelo Núcleo de Estudos Dr. Fernando Gomes Pinto em parceria com o Hospital Beneficência Portuguesa;
-Atua na Psicologia Clínica, sob a abordagem Cognitivo-Comportamental e 
-Atualmente faz parte da equipe da Clínica de Psicologia Espaçopsi, situada no bairro do Tatuapé, zona Leste de São Paulo;
-Atende crianças adolescentes e adultos e realiza avaliação psicológica e
-Tem a clínica como fonte inesgotável de aprendizado e a busca pela compreensão da alma humana como norte para estudos, pesquisas e reflexões.


4 comentários:

  1. Vivemos em um mundo insalubre às nossas necessidades afetivas. Os olhares policiam nossas ações. Vivemos da aparência. Soletramos nossas angustias em tom baixo...
    Nem todos tem maquiagem para esconderem seus medos e anseios...

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    1. Sim Álvaro, a maquiagem entra como imagem figurativa para descrever a nossa própria dificuldade diante dessas situações. Muito bem colocado por você. Obrigada por colaborar.

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  2. Parabéns!!! Texto importantíssimo para reflexão. Um dia a Maquiavel acaba e aí????

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