Já eram passados alguns minutos do meio-dia e lá fora o sol ardia como fornalha no pátio vazio de encantos e de árvores. A claridade era intensa. Mas não adiantava nada que o céu estivesse azul e sem nuvem nenhuma porque a alma de Tavinho estava negra. Era o que concebia Dona Anna ao ver seu aluno, antes tão dedicado, os olhos fixos no chão e uma expressão de dor saindo-lhe das faces. Começou a sentir uma pena enorme. Mais ainda quando se lembrou da conversa que teve com a mãe dele e com o doutor Garcia.
Primeiro veio a mãe. Aflita.
─ Dona Anna, a senhora considere o estado do meu filho. Considere e releve. Ele anda adoentado. Deu pra não dormir direito. Vira de um lado, vira do outro. Quando consegue fechar os olhos, acorda aos gritos. Corro pra ver e lá está ele suado e tremendo. ─ Pesadelo de novo, meu filho? ─ pergunto. Em vão. Não responde. Só me olha com aqueles olhos esbugalhados. Levei-o ao médico. Ele o examinou de cabo a rabo. Não encontrou nada, Dona Anna. Também nada receitou. A única coisa que disse foi que aquilo era coisa comum nos jovens. Converse com meu filho, professora. Quem sabe ele não diz o que está sentindo...
Mal havia saído a mãe, chegou o doutor Garcia. Ele era, além de dentista renomado, o técnico de futebol de Tavinho no time local: Estrela Nova Futebol Clube. Entrou esbaforido na sala reservada aos professores e sentou-se em frente à Dona Anna. Não disse "bom-dia", sequer um "olá". Suava aos cântaros. O lenço já encharcado, não era suficiente para a torrente que lhe saía dos poros da testa e das faces vermelhas. Levantou-se da cadeira e se pôs a andar. Depois parou. Andou novamente e parou. Andou de novo e mais uma vez parou. Esfregou as mãos e as colocou nos bolsos. Em seguida, retirou-as e voltou a esfregá-las. Pigarreou e começou uma frase. Não concluiu. Começou outra. Também não concluiu.
─ Doutor Garcia, acalme-se. Aceite um copo de água ─ arriscou a professora.
Aceitou. Bebeu de um gole só.
─ Obrigado. Estou melhor ─ resmungou, cabisbaixo.
Mas, verdadeiramente, não estava. Tremia. Devolveu o copo. Então, em um esforço sobre-humano, disse:
─ Professora Anna, vamos ser rápidos. Curtos e grossos, como se diz. A senhora sabe o que é ser técnico de um time e carregar esse time no coração? Sabe?... Não sabe! Sabe o que é ser derrotado três domingos seguidos? Três!... Eu disse, três! Sabe?... Não sabe! A senhora sabe que essas derrotas se devem à ausência do seu aluno, Tavinho? Sabe?... Não sabe, mas devia saber.
Dona Anna estava atônita. O técnico-dentista doutor Garcia, quase a desmaiar sem fôlego, continuou:
─ Sabe que esta besta do seu aluno está com a pior das doenças? Sabe?... Sabe o nome dessa maldita doença?... Não sabe! Pois eu lhe digo: chama-se Professora Anna! Pronto! É o que tinha a dizer!
O impacto que sentiu a professora a fez desmoronar-se na cadeira e, em seguida, soltar a voz como um grito:
─ Eu?!... O senhor enlouqueceu?
─ Não. Não enlouqueci, não senhora- respondeu-lhe o técnico-dentista doutor Garcia,de imediato. ─ Não enlouqueci, mas irei se a senhora não resolver a demência em que está metido esse seu aluno e... meu atleta ─ concluiu, os dentes cerrados. Depois, afastou-se até a porta de saída. Antes de fechá-la, disse categoricamente e como que se dirigisse ao coração descompassado da professora Anna ─ Está tão somente na senhora, Dona Anna, a solução do problema do Tavinho e, claro, de si mesma.
Agora, ali sentada à sua mesa, olhando para a tristeza de seu aluno, ela começe dissou a pensar na tristeza que também carregava com a sua própria solidão. Ninguém para lhe acompanhar as horas silenciosas. Ninguém que lhe acolhesse a ternura, tão imensa. Ninguém que ouvisse os muitos ais espalhados pelo longo caminhar de sua vida... Então, fechou o livro de apontamentos. Levantou-se. Foi andando, devagarzinho, até o seu aluno triste. Parou. Aspirou quase todo o ar da sala, e num repente: ─ Tavinho, esteja na minha casa às 8 da noite, sem falta! Olhou no fundo dos olhos surpresos do rapaz, e disse em um misto de grito e soluço: ─ Isso é uma ordem, Tavinho!
Em sua casa, a professora Anna acabava, agora, de adoçar a jarra do suco de laranja. Vestia um shortinho desfiado nas barras e uma blusinha amarrada com um nó na cintura. Saiu da cozinha, e se deparou com o seu aluno Tavinho parado no meio da sala. Ele tinha os olhos presos nas tábuas do assoalho. Depois no teto. Novamente nas tábuas do assoalho. Ela, então, sentou-se no sofá, cruzou as pernas e acendeu um cigarro. O ruído do isqueiro, talvez, ou talvez o aroma do perfume que vinha do sofá, fez Tavinho sair do estupor. Aproximou-se de sua professora. Ela abriu os braços e agasalhou neles toda a ansiedade e todos os desejos do mundo.
O amor ali foi tanto entre os dois que invadiu toda a casa, transbordou pelas frestas da porta e das janelas, e fez das ruas e das praças um rio caudaloso e louco. A noite tardou em morrer. O dia tardou a despontar. E um silêncio imenso foi-se penetrando em tudo. Lentamente.
No domingo, contra o time visitante, Tavinho marcou cinco dos seis gols pelo glorioso Estrela Nova Futebol Clube. Quando o juiz apitou o final do jogo, os gritos de alegria do técnico doutor Garcia eram apagados pelos que saíam da garganta e do coração da professora Anna. Todos eles chegavam aos ouvidos de Tavinho, como acordes melodiosos de uma sinfonia inacabada.
POR LUÍS LAGO
-Acriano (por criação); cearense (por paixão); paulista (por adoção);
-Psicólogo / Cronista / Fotógrafo (Não necessariamente nessa ordem); e
-Autor dos livros "O Beco" (poesias) Editora e Livraria Teixeira e "São tênues as névoas da vida" Âmbito Editores (ficção desenvolvida no estilo literário denominado "Realismo mágico")
Nota do Editor:
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