quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Ação Declaratória de Reconhecimento de Maternidade Socioafetiva: Ponto de Vista e Algumas Anotações


Autor: Sérgio Luiz Pereira Leite(*)



A chamada "maternidade socioafetiva" é um conceito já estudado e julgado pela recente doutrina e jurisprudência pátrias, desenvolvido da relação maternal de filiação pelos laços afetivos que se podem estabelecer entre pessoas que, entre si e socialmente, se apresentam e se comportam como mãe e filha.

De fato, a jurisprudência já tem consagrado o entendimento quanto à plena possibilidade e validade do estabelecimento da maternidade sócio afetiva post mortem.

Não sem alguma resistência a essa situação jurisprudencial, entendo que a ação declaratória de reconhecimento de maternidade sócio afetiva pode ser levada a Juízo, mas ela merece uma avaliação um tanto quanto reticente, no seu julgamento.

Ao meu ver, não basta a guarda provisória, cartinhas infantis que denotam a afetividade entre uma criança e seus guardiões, mormente se essa criança se tornou adulta e os guardiões, em nenhum momento, manifestaram a vontade de promoverem a formalização dessa afetividade, seja por meio de adoção plena, seja por meio de liberalidade de sua parte em nomear a tutelada como sua herdeira universal ou ainda por testamento.

Pela minha ótica, a ação declaratória de maternidade sócio afetiva post mortem é um ato oportunista e eivado pelos laivos indeléveis da má-fé, porque passa por cima da expressão de vontade livre e consciente do guardião que, caso tivesse interesse em formalizar essa afetividade, o faria pelos meios que tinha à sua disposição em vida. Se não o fez em vida, carece de direito o interessado de recorrer ao Poder Judiciário para ver sua pretensão suprida judicialmente.

Socorre-me um caso acontecido em que a guardiã faleceu sem deixar herdeiros descendentes ou ascendentes. Pela vocação hereditária, passaram os bens a ser inventariados pelos colaterais (irmãos vivos e filhos de irmãos falecidos). Pois bem, a herança deixada pela guardiã é expressiva, mas em vida, ela fez uma doação à sua tutelada (Autora) de parte de seus bens, gravando-os com uso fruto vitalício, gravame esse finalizado com a sua morte.

Dessa forma, houve uma expressão de sua vontade de doar parte dos bens à tutelada, mas não a vontade de fazê-la sua herdeira universal, adotando-a ou deixando testamento em que dispunha de seus bens. Diversamente disso, elencou em vida, os bens com que seria aquinhoada a sua sobrinha neta, de quem sempre foi guardiã. E assim se manifestou o E. Tribunal de Justiça de São Paulo, em arestos, assim ementado:

"Reconhecimento de maternidade sócio afetiva - Extinção do processo, sem exame de mérito, por impossibilidade jurídica do pedido - Inconformismo - Não acolhimento Pessoa regularmente registrada no nome dos pais biológicos Criação por terceira, com quem conviveu por 52 anos, já falecida, que não exteriorizou vontade de adotar – Situação que se aproxima do tipo filha de criação, que não confunde com a adoção a brasileira, ou com o filho adotivo ou natural Sentença confirmada - Recurso desprovido (Apelação nº 990.10.238200-1, 9ª Câmara de Direito Privado, Relator Desembargador GRAVA BRASIL, julgado em 24.08.2010)";

"Adoção Póstuma. Ausência de início de procedimento ou de documento que demonstre, de forma inequívoca, a intenção de adotar. Ordenamento Jurídico pátrio que não contempla a adoção implícita, ou o instituto de posse do estado de filho. Carência da ação reconhecida. Sentença Mantida. Recurso não provido” (Apelação Sem Revisão n.0328025-38.2009, 5ª Câmara de Direito Privado Rel. Des. ERICKSON GAVAZZA MARQUES)";

As decisões acima enunciadas se basearam na impossibilidade jurídica do pedido, ou seja, em um dos pressupostos da ação, que na legislação processual civil revogada, exigia, para a carência da ação, a possibilidade jurídica do pedido. Hoje, o inciso VI do artigo 485, modificou a antiga escrita do mesmo inciso do artigo 267 do CPC de 1973. Ou seja, suprimiu-se a impossibilidade jurídica do pedido, passando esta situação a integrar o mérito da causa.

Mas mesmo antes disso, em aresto do STJ, por meio de sua Quarta Turma, se proferiu o acórdão assim ementado:

"EMENTA RECURSO ESPECIAL Nº 1.291.357 
RELATOR: MINISTRO MARCO BUZZI
RECURSO ESPECIAL – DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL – FAMÍLIA – AÇÃO DECLARATÓRIA DE MATERNIDADE SOCIOAFETIVA – INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS QUE EXTINGUIRAM O FEITO, SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO, SOB O FUNDAMENTO DE IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. INSURGÊNCIA RECURSAL DA AUTORA. CONDIÇÕES DA AÇÃO – TEORIA DA ASSERÇÃO – PEDIDO QUE NÃO ENCONTRA VEDAÇÃO NO ORDENAMENTO PÁTRIO – POSSIBILIDADE JURÍDICA VERIFICADA EM TESE – RECURSO ESPECIAL PROVIDO. Ação declaratória de maternidade ajuizada com base com os laços de afetividade desenvolvidos ao longo da vida (desde os dois dias de idade até o óbito da genitora) com a mãe sócio afetiva, visando ao reconhecimento do vínculo de afeto e da maternidade, com a consequente alteração do registro civil de nascimento da autora. 1. O Tribunal de origem julgou antecipadamente a lide, extinguindo o feito, sem resolução do mérito, por ausência de uma das condições da ação, qual seja, a possibilidade jurídica do pedido. 1.1. No exame das condições da ação, considera-se juridicamente impossível o pedido, quando este for manifestamente inadmissível, em abstrato, pelo ordenamento jurídico. Para se falar em impossibilidade jurídica do pedido, como condição da ação, deve haver vedação legal expressa ao pleito da autora. 2. Não há óbice legal ao pedido de reconhecimento de maternidade com base na sócio afetividade. O ordenamento jurídico brasileiro tem reconhecido as relações sócio afetivas quando se trata de estado de filiação. 2.1. A discussão relacionada à admissibilidade da maternidade sócio afetiva, por diversas vezes, chegou à apreciação desta Corte, oportunidade em que restou demonstrado ser o pedido juridicamente possível e, portanto, passível de análise pelo Poder Judiciário, quando proposto o debate pelos litigantes. 3. In casu, procede a alegada ofensa ao disposto no inciso VI do artigo 267 do Código de Processo Civil e ao artigo 1.593 do Código Civil, visto que o Tribunal de origem considerou ausente uma das condições da ação (possibilidade jurídica do pedido), quando, na verdade, o pedido constante da inicial é plenamente possível, impondo-se a determinação de prosseguimento da demanda. 4. Recurso especial PROVIDO, para, reconhecendo a possibilidade jurídica do pedido, determinando-se o retorno dos autos à instância de origem, de modo a viabilizar a constituição da relação jurídica processual e instrução probatória, tal como requerido pela parte. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da QUARTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Luís Felipe Salomão, Raul Araújo, a Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti (Presidente) e o Sr. Ministro Antonio Carlos Ferreira votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 22 de outubro de 2015 (Data do Julgamento) MINISTRA MARIA ISABEL GALLOTTI Presidente. MINISTRO MARCO BUZZI Relator."
 Ricardo Lucas Calderón[1], em interessante análise sobre o tema e publicado no dia 28 de setembro de 2017 (acesso pela Internet), diz, com propriedade, ao analisar o acórdão acima mencionado, verbis:

"...O princípio da afetividade está consolidado no direito de família brasileiro e, em vista disso, vem reverberando em suas diversas searas, inclusive nas relações de parentalidade. No Brasil, a jurisprudência foi uma das precursoras no reconhecimento da sócio afetividade como suficiente vínculo parental, no que foi acompanhada pela doutrina familiarista.  Ao lado da filiação biológica figura o vínculo sócio afetivo, lastreado na força construtiva dos fatos sociais. A posse de estado de filiação é acolhida pelo direito brasileiro, estando prevista na parte final do art. 1593 do Código Civil. A paternidade sócio afetiva foi a precursora a receber chancela jurídica, entretanto, recentemente noticiam-se pedidos de reconhecimento de maternidades sócio afetivas. Ou seja, pleitos que requerem que o Poder Judiciário declare uma relação de maternidade de fato, conferindo efeitos jurídicos para uma relação materno-filial afetiva vivenciada por longo período. Esta é mais uma das demonstrações do dinamismo das relações familiares contemporâneas, fator que não pode ser ignorado por quem as pretenda bem tutelar."
      
       O fundamento para esse pensar reside na redação que está no artigo 1593, do estatuto substantivo civil, quando diz que "o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem" (gn). Portanto ainda muito se desdobrarão os juristas, advogados, juízes e profissionais do Direito para elaborar uma doutrina consolidada sobre o tema e a jurisprudência que a seguirá.

Essa digressão que faço sobre esse tema pode ajudar em muitas situações com que se podem deparar os profissionais do Direito, mas ainda conservo a ideia de que a manifestação de vontade do guardião há de ser sempre expressa, (por meio de doação, testamento ou qualquer expressão de última vontade), porque o oportunismo e a ânsia pelo dinheiro fácil, não pode sair vencedor dessa discussão, porquanto seria a aberração maior para aquele que, em gesto de amor e fraternidade, tutela um(a) infante, com desvelo e amor, a qual espera a morte da pessoa guardiã para a propositura da referida ação. Verdadeiro prêmio à sordidez.

Estas as minhas considerações e pensar.

REFERÊNCIAS



[1] Doutorando e mestre em Direito Civil. Pós-graduado em Direito Processual Civil e em Teoria Geral do Direito. Coordenador de curso de pós-graduação da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Professor de cursos de pós-graduação e graduação. Pesquisador. Advogado. Autor

*SÉRGIO LUIZ PEREIRA LEITE

-Advogado militante nas áreas cível e criminal na Comarca de Tietê, Estado de São Paulo;
-Foi por duas vezes presidente da 134ª Subseção da OAB/SP e
-Consultor jurídico da Prefeitura do Município de Tietê entre 2005 a 2009.



Nota do Editor:

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