sábado, 28 de março de 2020

Poesia e catarse em momentos de crise



Autora: Cinara Ferreira (*)


A leitura é uma das ferramentas que temos à disposição para lidar com as dificuldades que estamos enfrentando no momento atual, que exige cuidados e isolamento. Ler obras literárias com conteúdo voltado ao humano e com tratamento estético da forma pode ter um efeito catártico em momentos de crise. 

Para refletir sobre o papel libertador da literatura, proponho neste artigo a reflexão da sempre atual poesia de João Cabral de Melo Neto. O autor torna imagem poética elementos do mundo concreto, como o curso de um rio, um galo que canta ao amanhecer, a trajetória de um retirante nordestino, entre outros. A linguagem utilizada pelo autor não só faz referências a esses elementos do real, como também cria imagens que nos fazem sentir a proximidade com o objeto. Desse modo, a reflexão sobre a vida se faz pela vivência da carga emotiva suscitada pelos elementos da realidade.

No poema "Rios sem discurso", por exemplo, temos a associação entre o curso de um rio e o discurso:

Quando um rio corta, corta-se de vez
o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria.
*
O curso de um rio, seu discurso-rio,
chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloquência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então frase e frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a seca ele combate.

Muitas vezes, a literatura comparou o curso de um rio com a passagem da vida e com o correr do tempo. João Cabral renova essa imagem ao propor a sua relação com o discurso. Um rio sem discurso pode ser interpretado como a ausência da palavra enquanto instrumento de modificação, de emancipação, de crítica, de contestação, de vida. Assim, a partir da leitura da poesia de J. Cabral, pode-se dizer que o próprio curso da vida é interrompido quando não há discurso. A vida, por sinal, é o grande tema da obra do poeta.


A sensação que temos ao ler João Cabral é a de que ele vê no concreto analogias constantes com as situações vividas pelo ser humano. E nessa comparação, mergulha fundo no objeto para entender, ao menos em parte, aquilo que os olhos não veem. Para exemplificar, apresento o poema “Tecendo a manhã”, no qual o sujeito lírico descreve o amanhecer de um novo dia, possível graças ao encadeamento entre o cantar de vários galos:

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

Por que o sujeito lírico diz que um galo sozinho não tece a manhã? Porque não tece mesmo. Uma manhã sempre ouvirá o canto de mais de um galo. Da mesma forma, a vida não se faz a partir da ação de um único ser. As ações que constituem a existência são encadeadas e necessitam umas das outras para que o todo seja construído. Pode-se pensar também que o canto dos galos apresentam diferentes vozes, diferentes textos, diferentes realidades. Para que o último canto exista enquanto tal, é necessário que o primeiro aconteça. E assim, um vai se interligando ao outro, constituindo, ao final, aquilo que chamamos de cultura. A cultura nada mais é do que o resultado de diferentes vozes que se pronunciam e se configuram enquanto produto cultural (literatura, cinema, folclore, música, ciência, tecnologia, costumes, crenças, etc.).

Em Morte e vida severina, sua obra mais conhecida, o escritor apresenta o real de uma forma poética, profunda e crítica. Ao possibilitar o contato com situações de extrema miséria e de morte, ele faz da resistência da vida o grande significado de sua poesia. Apesar da aspereza e da “secura” que caracterizam a vida do retirante nordestino, ele resiste e ainda encontra motivos para continuar. Uma das imagens mais chocantes, paradoxais e, por isso mesmo, mais significativas de "Morte e vida Severina" é da relação estabelecida entre o corpo do nordestino e a terra:

- Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a conta menor
que tiraste em vida. 
- é de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe 
neste latifúndio.

A morte é um elemento muito forte na poesia em análise. Enquanto é vivo, nada cabe ao retirante, resumindo-se sua vida na busca frustrada de um pedaço de chão para plantar e morar. No entanto, quando morre, essa terra já não pode mais lhe ser negada e, então, seu próprio corpo passa a ser adubo de um chão que jamais foi seu. Vários enterros são descritos no transcorrer do texto e, várias vezes, Severino sente-se desanimado em seu percurso em direção à Capital, a tal ponto que ele pensa em se suicidar, atirando-se no rio seco que lhe serviu de guia. Todavia, antes de tomar sua decisão, ele encontra José, o carpinteiro, que acaba de ser pai. É o nascimento do filho de José, numa alusão bastante direta com a história bíblica, que permite que Severino reconsidere seu desejo de morrer e resolva continuar acreditando na vida, mesmo que ela seja tão severina e aproxime-se tanto da morte.

O efeito catártico da poesia de João Cabral de Melo Neto está vinculado a uma aproximação com o real, numa perspectiva crítica e sensível. A partir de um olhar que procura apresentar o real em algumas de suas múltiplas e infinitas facetas, João Cabral desnuda realidades, questionando-as e permitindo a transposição de suas reflexões para a vida, em especial, quando ela se apresenta dura como a pedra e seca como o sertão.

Referências:

MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

* CINARA FERREIRA


-Doutora em Letras, área de Literatura Comparada, UFRGS e
-Docente do Instituto de Letras, da UFRGS.









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