Autor: Carlos Arruda (*)
É possível, ainda, construir algo moral que de fato identifique o sujeito como legislador universal nos tempos atuais?
Sem sombra de dúvida sim! Para tanto neste artigo pretendemos apresentar uma possibilidade para tal, tendo como referência o filósofo Imannuel Kant, o qual discute em sua obra "Crítica da Razão Pura" (1978), como o sujeito conhece, seus ferramentais para tal, se pode conhecer as coisas verdadeiramente como são e como aplicar essa racionalidade a favor da moralidade, entendida como elaboração de valores.
Immanuel Kant (1724-1804) ao apresentar as possibilidades de se conhecer de fato quem é o sujeito e como este conhece a realidade, em primeiro lugar identifica a razão como um situs adequado para a realização de tal tarefa, levando em conta as possibilidades e limites desta.
Posteriormente, tendo a razão instrumental impelida a dar sentido à vida, nos conclama a questionarmos como nossos valores morais são representados e se esses valores ao mesmo tempo promovem e resgatam a universalidade, enquanto promotores da humanidade.
Kant nos provoca a questionarmos se a moralidade que seguimos de fato são representativas e se espelham ao mesmo tempo nossa capacidade de pensar, e de se pensar como sujeitos que promovem a essência da dignidade humana: a vontade soberana de sermos autônomos e reflexivos.
Se de fato isso não ocorre devemos rever como nossos valores se constituem, como compreendemos o que seja verdadeiramente um dever e se a razão humana, projetando um ser humano livre, autônomo e condigno com sua condição de humanidade.
Neste sentido somos impelidos a visitar textos reflexivos de Kant, que discutam de maneira profunda a que os valores morais estão a serviço, como o sujeito representa e se representa de maneira autônoma, como deve projetar a vida e, a posteriori, como atingir plenamente o status do esclarecimento.
Esse é o percurso desse artigo.
Na "Fundamentação da Metafísica dos Costumes" (1974), Kant tem como preocupação inicial, esclarecer na “Primeira Seção”, intitulada "Transição do conhecimento moral da razão vulgar para o conhecimento filosófico", os objetos de investigação da Filosofia, os tipos de Filosofia existentes, suas interpelações e como estas devem ser distinguidas em seus papéis, no que tange à investigação sobre o mundo físico e sobre os valores morais que a Filosofia deve propor ao homem em relação ao bem agir:
Diz Kant:
Em contraposição, tanto a Filosofia natural como a Filosofia moral podem cada uma ter a sua parte empírica, porque aquela tem de determinar as leis da natureza como objecto da experiência, esta porém as da vontade do homem enquanto ela é afectada pela natureza; quer dizer, as primeiras como leis segundo as quais tudo acontece, as segundas como leis segundo as quais tudo deve acontecer, mas ponderando também as condições sob as quais muitas vezes não acontece o que devia acontecer ( In: Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Prefácio, p. 197).
Dessa forma, resgata de maneira resumida o seu tratado sobre o papel da razão, na "Crítica da Razão Pura" (1978), em evidenciar do que deve a Filosofia tratar: em primeiro lugar, os instrumentos que a razão humana possui e ainda suas possibilidades e limites de se conhecer as coisas, bem como a preocupação final que se deva ter, quando de posse dessa representação, em indicar caminhos sobre o bem agir:
Desta maneira surge a ideia duma dupla metafísica, uma Metafísica da Natureza e uma Metafísica dos Costumes. A Física terá portanto a sua parte empírica, mas também uma parte racional; igualmente a Ética, se bem que nesta a parte empírica se poderia chamar especialmente Antropologia prática, enquanto a racional seria a Moral propriamente dita (In: Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Prefácio, p. 197).
E sobre esta questão do bem agir, o esforço kantiano é de fato que o homem, buscando uma regularidade universal de ações (leis), que estas possam se tornam universais e que eticamente possam ter sido constituídas por valores com fundamentações sólidas, desprovidas de interesses privados, individualistas ou hedonistas.
Toda a gente tem de confessar que uma lei que tenha de valer moralmente, isto é como fundamento duma obrigação, tem de ter em si uma necessidade absoluta; que o mandamento: «não deves mentir», não é válido somente para os homens e que outros seres racionais se não teriam que importar com ele, e assim todas as restantes leis propriamente morais; que, por conseguinte, o princípio da obrigação não se há- de buscar aqui. (In: Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Prefácio, p. 198).
Portanto, faz-se necessário um novo cânon racional, que seja fundamentado em valores que sejam seguidos, não somente porque estes possuem veracidade e profundidade de argumentos, mas que ao mesmo tempo estão no âmago da existência humana:
Uma Metafísica dos Costumes, é, pois, indispensavelmente necessária, não só por motivos de ordem especulativa para investigar a fonte dos princípios práticos que residem a priori na nossa razão, mas também porque os próprios costumes ficam sujeitos a toda a sorte de perversão enquanto lhes faltar aquele fio condutor e norma suprema do seu exacto julgamento. Pois que aquilo que deve ser moralmente bom não basta que seja conforme a lei moral, mas tem também que cumprir-se por amor dessa mesma lei; caso contrário, aquela conformidade será apenas muito contingente e incerta, porque o princípio imoral produzirá na verdade de vez em quando acções conformes à lei moral, mas mais vezes ainda acções contrárias a essa lei. (In: Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Prefácio, p. 199).
A "pureza" desse cânon está na base de que só se pode bem agir a posteriori, se os valores forem constituídos a priori, ou seja, de que não são constituídos com questões especulativas do mundo físico, significando que em primeiro lugar, devemos investigar de onde esses valores vieram, se possuem fundamentos racionais e em quais bases foram constituídos:
Ora a lei moral, na sua pureza e autenticidade (e é exactamente isto que mais importa na prática), não se deve buscar em nenhuma outra parte senão numa filosofia pura, e esta (Metafísica) tem que vir portanto em primeiro lugar, e sem ela não pode haver em parte alguma uma Filosofia moral; e aquela que mistura os princípios puros com os empíricos não merece mesmo o nome de filosofia (pois esta distingue-se do conhecimento racional comum exactamente por expor em ciência à parte aquilo que este conhecimento só concebe misturado); merece ainda muito menos o nome de Filosofia moral, porque, exactamente por este amálgama de princípios, vem prejudicar até a pureza dos costumes e age contra a sua própria finalidade. (In: Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Prefácio, p.199).
Disso resulta em equilíbrio:
Moderação nas emoções e paixões, autodomínio e calma reflexão são não somente boas a muitos respeitos, mas parecem constituir até parte do valor íntimo da pessoa; mas falta ainda muito para as podermos declarar boas sem reserva (ainda que os antigos as louvassem incondicionalmente). (Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Primeira Seção, p. 203).
Mas qual o caminho inicial apontando por Kant para que de fato esses valores comecem a ser edificados?
Segundo este, tudo se inicia pela boa vontade, não por aquilo que promove ou realiza, nem pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão somente pelo querer em si mesma, devendo ser avaliada em grau muito mais alto do que tudo o que por seu intermédio possa ser alcançado em proveito de qualquer inclinação, ou mesmo, se quiser, da soma de todas as inclinações. Portanto a boa vontade é o motor inicial de tudo aquilo que se deseja estruturar, ou seja, a verdadeira constituição de valores com fundamentações racionais universais, que tornem princípios válidos:
Esta vontade não será na verdade o único bem nem o bem total, mas terá de ser contudo o bem supremo e a condição de tudo o mais, mesmo de toda a aspiração de felicidade. E neste caso é fácil de conciliar com a sabedoria da natureza o facto de observarmos que a cultura da razão, que é necessária para a primeira e incondicional intenção, de muitas maneiras restringe, pelo menos nesta vida, a consecução da segunda que é sempre condicionada, quer dizer da felicidade, e pode mesmo reduzi-la a menos de nada, sem que com isto a natureza falte à sua finalidade, porque a razão, que reconhece o seu supremo destino prático na fundação duma boa vontade, ao alcançar esta intenção é capaz duma só satisfação conforme à sua própria índole, isto é a que pode achar ao atingir um fim que só ela (a razão) determina, ainda que isto possa estar ligado a muito dano causado aos fins da inclinação. (In: Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Primeira Seção, p. 205 e 206).
Desse modo, ao se buscar a compreensão de si mesmo, através da fundamentação de valores racionais, fundamenta-se a razão como senhora da representação dos valores morais, tendo como finalidade a conservação da vida, não restrita a fatos como "manter-se vivo", mas sobretudo conservar no sentido, em preservar verdadeiros valores que edificam a vida humana e conduzem o homem à felicidade e à sua realização enquanto sujeito condutor de suas ações, tornando-o na concepção do termo como “sujeito universal".
Esse sujeito universal fundamenta-se em valores constituídos pela razão e reconhece racionalmente nos outros também a mesma condição. Nesse processo dialético se estabelece uma espécie de dever, não baseado em ações, situações e leis que tenham como base fatores externos, empíricos ou de interesse próprio, o que Kant denomina de "ao dever", mas dever relacionado diretamente àquilo que a razão impõe como fundamento de uma verdadeira relação moral para consigo e com os outros:
Pelo contrário, conservar cada qual a sua vida é um dever, e é além disso uma coisa para que toda a gente tem inclinação imediata. Mas por isso mesmo é que o cuidado, por vezes ansioso, que a maioria dos homens lhe dedicam não tem nenhum valor intrínseco e a máxima que o exprime nenhum conteúdo moral. Os homens conservam a sua vida conforme // ao dever, sem dúvida, mas não por dever. Em contraposição, quando as contrariedades e o desgosto sem esperança roubaram totalmente o gosto de viver; quando o infeliz, com fortaleza de alma, mais enfadado do que desalentado ou abatido, deseja a morte, e conserva contudo a vida sem a amar, não por inclinação ou medo, mas por dever, então a sua máxima tem um conteúdo moral. (In: Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Primeira Seção, p. 206 e 207).
E mesmo em relação aos mais profundos sentimentos, como por exemplo o amor e alguns de seus ordenamentos sociais, Kant afirma:
E sem dúvida também assim que se devem entender os passos da Escritura em que se ordena que amemos o próximo, mesmo o nosso inimigo. Pois que o amor enquanto inclinação não pode ser ordenado, mas o bem-fazer por dever, mesmo que a isso não sejamos levados por nenhuma inclinação e até se oponha a ele uma aversão natural e invencível, é amor prático e não patológico, que reside na vontade e não na tendência da sensibilidade, em princípios de acção e não em compaixão lânguida. E só esse amor é que pode ser ordenado. ( In: Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Primeira Seção, p. 208).
Em relação a outras proposições, valores morais e suas fundamentações relacionadas às ações práticas, Kant, na "Fundamentação Metafísica" (1974) adverte:
A segunda proposição é: — Uma acção praticada por dever tem o seu valor moral, não no propósito que com ela se quer atingir, mas na máxima que a determina; não depende portanto da realidade do objecto da acção, mas somente do princípio do querer segundo o qual a acção, abstraindo de todos os objectos da faculdade de desejar, foi praticada. (In: Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Primeira Seção, p. 208).
A terceira proposição, consequência das duas anteriores, formulá-la-ia eu assim: — Dever é a necessidade de uma acção por respeito à lei. Pelo objecto, como efeito da acção em vista, posso eu sentir em verdade, inclinação, mas nunca respeito, exactamente porque é simplesmente um efeito e não a actividade de uma vontade. (In: Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Primeira Seção, p. 208).
Portanto, para Kant, só pode ser objeto de respeito e mandamento aquilo que está ligado à minha vontade somente como princípio e nunca como efeito, não aquilo que serve à minha inclinação mas o que a domina, a simples lei por si mesma.
Qualquer valor moral da ação não reside no efeito que dela se espera,pois todos estes efeitos podem também ser alcançados por outras causas, e não se precisava portanto para tal da vontade de um ser racional. Por conseguinte, nada senão a representação da lei em si mesma, que só no ser racional se realiza, que determina a vontade, pode constituir o bem excelente a que se denomina moral, o qual se encontra já presente no próprio sujeito.
Em verdade quando falamos de valor moral, não se trata de ações visíveis, mas dos seus princípios íntimos que se não vêem.
Kant aprofunda esta máxima, utilizando até mesmo em suas explicações na "Fundamentação da Metafísica dos Costumes", entendimentos sobre crenças metafísicas:
Mesmo o Santo do Evangelho tem primeiro que ser comparado com o nosso ideal de perfeição moral antes de o reconhecermos por tal; e é ele que diz de si mesmo:Porque é que vós me chamais bom (a mim que vós estais vendo)?Ninguém é bom (o protótipo do bem) senão o só Deus (que vós não vedes). Mas donde é que nós tiramos o conceito de Deus como bem supremo? Somente da ideia que a razão traça a priori da perfeição moral e que une indissoluvelmente ao conceito de vontade livre. A imitação não tem lugar algum em matéria moral e os exemplos servem apenas para encorajar, isto é põem fora de dúvida a possibilidade daquilo que a lei ordena, tornam intuitivo, aquilo que a regra prática exprime de maneira mais geral, mas nunca podem justificar que se ponha de lado o seu verdadeiro original, que reside na razão, e que nos guiemos por exemplos. (In: Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Primeira Seção, p. 214 e 215).
Dito isto, o esclarecimento kantiano afirma que todos os conceitos morais têm a sua sede e origem completamente a priori na razão e que não podem ser abstraídos de nenhum conhecimento empírico e por conseguinte puramente contingente.
Posto tal explicação, resulta a ideia que há por fim um imperativo, este é categórico, porque não se relaciona com a matéria da ação e com o que dela deve resultar, mas com a forma e o princípio de que ela mesma deriva; e o essencialmente bom na ação reside na disposição desta ação racional, crivada pela boa vontade. Este imperativo pode-se chamar o imperativo da moralidade.
Ao pensarmos um imperativo categórico, sabemos o que é que ele contém. Porque, não contendo o imperativo, além da lei, senão a necessidade da máxima, o que o sustenta como lei, manda imediatamente que nos conformemos com esta e não contendo a lei nenhuma condição que a limite, nada mais resta, senão a universalidade de uma lei em geral, à qual a máxima de uma ação moral deste estar em conformidade com aquilo que nos representa propriamente como necessária.
O imperativo categórico é portanto só um único, que é este:
Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (In: Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Primeira Seção, p. 223)
A moralidade ou a educação moral consiste na relação de toda a ação com a legislação, legislação esta, fundada na autonomia da boa vontade da razão em estabelecer valores morais universais.
Esta legislação antropológica tem como máxima de poder encontrar-se em cada ser racional de nunca praticar uma ação senão em acordo com uma máxima que se saiba poder ser uma lei universal.
E o que autoriza a intenção moralmente boa ou a virtude?
Segundo Kant:
É a possibilidade que proporciona ao ser racional de participar na legislação universal e o torna por este meio apto a ser membro de um possível reino dos fms, para que estava já destinado pela sua própria natureza como fim em si e, exatamente por isso, como legislador no reino dos fins, como livre a respeito de todas as leis da natureza, obedecendo somente àquelas que ele mesmo se dá e segundo as quais as suas máximas podem pertencer a uma legislação universal (à qual ele simultaneamente se submete) (In: Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Segunda Seção, p. 234 e 235).
Nesse sentido, todas as leis ditas universais, precisam seguir esse novo cânon, de que as coisas verdadeiramente só possuem valor intrínseco, senão aquele que a lei lhe confere.
Este sujeito racional legislador deve determinar o verdadeiro valor das coisas, e esse aspecto segundo Kant, determina toda moralidade a posteriori, tornando as coisas e as realidades dignas, incomparáveis e incondicionais.
De fato, uma educação moral nessas bases kantianas, reforça o papel da autonomia do sujeito, pois para esse pensador, a autonomia é o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racional:
A moralidade é pois a relação das acções com a autonomia da vontade, isto é, com a legislação universal possível por meio das suas máximas (In: Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Segunda Seção, p. 237 e 238).
E ainda :
A ação que possa concordar com a autonomia da vontade é permitida; a que com ela não concorde é proibida” A vontade, cujas máximas concordem necessariamente com as leis da autonomia, é uma vontade santa, absolutamente boa. A dependência em que uma vontade não absolutamente boa se acha em face do princípio da autonomia (a necessidade moral) é a obrigação. Esta não pode, portanto, referir-se a um ser santo. A necessidade objectiva de uma acção por obrigação chama-se dever. (In: Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Segunda Seção, p. 238).
Dever este, relativo ao respeito de que toda ação moral deve estar relacionada diretamente ao fundamento racional, impelido pela boa vontade, de querer compreender não somente melhor a realidade que nos cerca, como também que tipos de atitudes e ações morais devemos ter para conosco mesmo e com os outros em relações dialéticas, e buscar querer estabelecer princípios universais que sustentem e edifiquem a espécie humana, tendo como consequências ações responsáveis a posteriori.
Tais ações, porém, não poderão algum dia ser alcançadas, se não houver um despertar que reflita a conscientização do sujeito, sendo assim, um processo imanente, a priori, que parta do olhar para a própria condição de menoridade do seu entendimento.
Segundo Kant:
O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. (In: Resposta à pergunta: que é esclarecimento? Aufklärung. p. 100).
É o próprio uso da razão que deve conduzir o sujeito à reflexão de suas possibilidades e constatação de suas condições ainda não desenvolvidas, para que enxergue em si mesmo as vias de produzí- las.
A razão aparece, então, como uma espécie de antídoto capaz de tratar alguns tipos de sentimentos (decisão, coragem, preguiça...) que influenciam o comportamento humano ao ponto de criar resistências para a fruição da faculdade racional.
Dessa forma o uso autônomo da razão se direciona não apenas para legislar os fundamentos morais que mediam as relações humanas, mas também, uma forma do homem se proteger de fatores comportamentais que possam se apresentar como empecilhos para o desenvolvimento de sua capacidade de entendimento do mundo e de si mesmo.
Em outros termos, protegê-lo da preguiça intelectual ou mesmo da fuga para a irresponsabilidade, uma vez que, abrindo mão do uso autônomo da razão, estaria, de certa forma, em um tipo de fuga da autoria da reflexão moral fundamentada e, por consequência, negando sua parte na autoria de algumas ações moralmente reprováveis. Desse modo, não se enxergaria como sujeito da lei moral e muito menos como responsável pelas consequências de ações imorais ou moralmente equivocadas.
Educar para uma humanidade digna implica em educar para o alcance da autonomia, por meio da qual, o homem vislumbra a sua condição de legislador da moral. Permanecer na menoridade racional, ao contrário, é alimentar sentimentos equivocados. Desse modo, não é possível pensar em uma educação moral fundamentada que abra mão do exercício intelectual.
Ações morais fundamentadas na razão têm sua origem na instância a priori, mas fatalmente são de caráter externo e, portanto, público. As ações morais são sempre em função de algo ou alguém. Aquilo que nasce em uma instância privada se exterioriza e se torna alvo de juízos e avaliações. É na instância pública que os homens compartilham suas ideias e as aperfeiçoam.
Se as ações morais fatalmente se ancoram nos fundamentos da razão, estes devem ser amplamente compartilhados para que a educação moral que, a princípio foi gerada no interior do sujeito, se desenvolva e se torne objeto da razão de todos para que se aperfeiçoe e juntos, legislem pelas melhores ações que venham a fortalecer a humanidade de todos. A moralidade visa a intersubjetividade e se fortalece nela até que alcance uma uma dimensão ampla na sociedade. Kant afirma que:
[...] são muito poucos aqueles que conseguiram, pela transformação do próprio espírito, emergir da menoridade e empreender então uma marcha segura. Que porém um público se esclareça (aufkläre) a si mesmo é perfeitamente possível; mais que isso, se lhe for dada a liberdade, é quase inevitável. Pois encontrar-se-ão sempre alguns indivíduos capazes de pensamento próprio, até entre os tutores estabelecidos da grande massa, que, depois de terem sacudido de si mesmos o jugo da menoridade, espalharão em redor de si o espírito de uma avaliação racional do próprio valor e da vocação de cada homem em pensar por si mesmo. (Kant. Resposta à pergunta: que é esclarecimento? Aufklärung. p. 102)
É necessário garantir o espaço da liberdade como aquele em que se desenvolve o compartilhamento da reflexão crítica e onde a moralidade se presta a ser avaliada e questionada em seus fundamentos. Cabe, pois, à instância moral, estar comprometida com a dimensão da liberdade como possibilitadora da prática reflexiva, na qual se encontram os seus fundamentos.
Essas três dimensões se encontram e se retroalimentam: a racionalidade, a moralidade e a liberdade. É moral procurar garantir que a capacidade do sujeito ser autônomo para legislar racionalmente a moral ganhe uma dimensão social de livre compartilhamento e, mesmo pública, esteja comprometida com o fortalecimento de cada sujeito, para que cada um não seja tentado a abrir mão dessa autonomia e ceder à tentação de ser guiado preguiçosamente ou covardemente, por outrem.
A moralidade racionalmente fundamentada reafirma o que há de mais valoroso na humanidade de cada sujeito: a capacidade de pensar por si mesmo. Mas, mesmo Kant, se preocupa em nos alertar a esse respeito, quando afirma que:
Um homem sem dúvida pode, no que respeita à sua pessoa, e mesmo assim só por algum tempo, na parte que lhe incumbe, adiar o esclarecimento [<Aüfklarung>]. Mas renunciar a ele, quer para si mesmo, quer ainda mais para sua descendência, significa ferir e calcar aos pés os sagrados direitos da humanidade. (In: Resposta à pergunta: que é esclarecimento? Aufklärung. p. 110)
Será, portanto, sempre tentador, abrir mão da autonomia racional que rege a vida humana, seja pela preguiça, pela covardia, pelo cansaço ou pela acomodação. Mas, ao mesmo tempo, isso seria abrir mão do compromisso moral com a realização individual de cada sujeito que representa em si a humanidade como um todo.
Se, pois, em termos individuais, o sujeito tem um compromisso moral consigo mesmo e automaticamente com o outro, sendo cada um representante da humanidade, o processo de conquista da maioridade intelectual se amplia para uma esfera pública. Assim, a educação moral que perpassa cada um, o compromete com a educação moral da sociedade.
Se, as faculdades da razão se fortalecem no sujeito, submetendo a si os sentimentos que podem impedir o amadurecimento do seu entendimento e a consequente autonomia intelectual, a mesma dinâmica é transferida para a esfera pública. Nesta, a educação formal deve ser reflexo de tais fundamentos.
As estratégias pedagógicas das instituições formais devem refletir os anseios de conquista da autonomia da razão em cada sujeito que venha a se constituir um usuário de seus sistemas. Do mesmo modo que Kant aponta para a direção de conquista da maioridade intelectual que insere o sujeito em uma instância de esclarecimento, ele incentiva que a pedagogia favoreça o adestramento dos instintos naturais pela instrução racional:
O homem não pode ser tornar um verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz. Note-se que ele só pode receber tal educação de outros homens, os quais a receberam igualmente de outros. Portanto, a falta de disciplina e de instrução em certos homens os torna mestres muito ruins de seus educandos. Se um ser de natureza superior tomasse cuidado da nossa educação, ver-se-ia, então, o que poderíamos nos torna. (In: Sobre a pedagogia. p. 17).
A educação pode ser uma aliada no processo de conscientização do sujeito a respeito de sua menoridade intelectual e, desse modo, inseri-lo em um processo rumo ao esclarecimento. Não se admite que em Kant, a conquista da autonomia seja possível, sem que o sujeito tome posse dos poderes da razão e aprenda a ser responsável por conhecer os fundamentos da moral que rege o seu comportamento.
O sistema educacional pode, no entanto, ser também empecilho e atrasar o alcance dessa autonomia, ou mesmo, impedir que algum dia ela aconteça. Mas, para Kant, a educação tem esse compromisso moral com o sujeito:
Na verdade, não basta que o homem seja capaz de toda sorte de fins; convém também que ele consiga a disposição de escolher apenas os bons fins. Bons são aqueles fins aprovados necessariamente por todos e que podem ser, ao mesmo tempo, os fins de cada um. (In: Sobre a pedagogia. p. 26).
Reafirma-se o compromisso com a educação moral do sujeito. E educar moralmente o sujeito implica em que ele seja capaz de reconhecer suas limitações, assim como suas possibilidades em legislar racionalmente os fundamentos das ações humanas.
Esse compromisso é de cada um para consigo mesmo e com todos. Pesa, porém, mais sobre os educadores, que se propõem a guiar os seus educandos para um estado de esclarecimento e conquista da autonomia.
Neste sentido, respondendo à pergunta do título deste artigo se é possível ainda construir ainda uma verdadeira Educação Moral?
Sim, desde que esta esteja fundamentada em construir valores universais, não somente em preservar a vida, mas na edificação de uma verdadeira humanidade, fundamentalmente através Educação, porque para Kant, a Educação é o instrumento que nos possibilita atingir a maioridade, nos tornando humanos.
Referências:
KANT,I. Crítica da Razão Pura. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
__________. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
________. Sobre a Pedagogia. Tradução: Francisco Cock Fontanella. 2ª. ed. Piracicaba: Editora Unimep, 1999.
________. Resposta à pergunta: que é esclarecimento? Aüfklarung. In: Textos Seletos. 2ª. ed. Petrópolis: Vozes, 1985.
*ANTONIO CARLOS JESUS
ZANNI DE ARRUDA
- Graduação em Filosofia pela Universidade do Sagrado Coração (1996);
- Mestrado em Educação para a Ciência pela UNESP (2004);
-Doutorado em Educação para a Ciência pela UNESP (2009); e
- Pós doutorado em Educação pela UNESP (2020)
-Trabalha no Ensino Superior nas mais variadas disciplinas, como filosofia, ética e responsabilidade social, antropologia, metodologia científica e filosofia da educação) ;
-Possui experiência na EAD (Educação a Distância) como tutor e elaborador de conteúdos, de projeto pedagógico e gestão de processos;
-Possui conhecimento em metodologias ativas;
- É parecerista ad hoc de avaliação de artigos científicos na Revista Educação e Filosofia na UFU (Universidade Federal de Uberlândia);
- Participa do grupo de estudos em Desenvolvimento Moral na UNESP de Bauru - SP;
-Possui competências em Gestão Educacional, incluindo em especial a liderança e gerenciamento de professores, coordenadores universitários e processos acadêmicos;
-Possui contato e experiência com o SINAES, ENADE, FIES, PROUNI, Censo de Ensino Superior, CPC’s de Curso Superior, Projetos Pedagógicos de Curso, Projetos de Desenvolvimentos Institucional, Avaliações de Cursos, projeto de elaboração e solicitação de abertura de cursos na modalidade EAD junto ao MEC e ainda recepcionar avaliadores do próprio MEC. É Colaborador de Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação e Moralidade na UNESP de Bauru - SP. e
-É avaliador de cursos superiores pelo Conselho Estadual de Educação do Estado de São Paulo.
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