terça-feira, 5 de setembro de 2023

O Perfilamento Racial e sua Dissonância com os Direitos Fundamentais da CF/1988


 Autora: Cinara Ventura(*)

De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, no ano de 2022 houve o crescimento de 0,9% da população carcerária, ou seja, cerca de 830 mil pessoas se encontram em cárcere. Do numerário expressivo que compõe a população em cárcere, 43,1% são pessoas com até 29 anos de idade e 68,2% desta massa são pessoas pretas. Com base no que vem sendo discutido juridicamente falando, não se mostra assombroso os números apontarem que 70% da comunidade carcerária é preta, tendo em vista que sob o escopo do perfilamento racial, o fenótipo está condicionado a interpretação policial para designar uma pessoa como suspeita. Dessa forma, o artigo versará sobre o conceito do perfilamento racial, bem como tal premissa destoa dos direitos fundamentais previstos à Constituição da República de 1988.

Não raro é presenciado no cotidiano a polícia exercendo o papel preventivo e repressivo através de abordagens. Possivelmente passa desapercebido pelo olhar social, o motivo pelo qual o(a) policial efetuou a abordagem em determinada pessoa.

Nesta linha, ao se questionar porque tal indivíduo foi revistado pela guarda policial, a primeira resposta que vem em mente é que a esta pessoa estava em atitude suspeita no entendimento da polícia. Todavia, é importante questionar o seguinte: O que faz uma pessoa ser vista como suspeita pela corporação policial? Há quem diga que durante a formação, o(a) policial é treinado para identificar "um padrão de indivíduo suspeito".

Assim sendo, tal padrão seria baseado em que? Vestimentas? Formas de andar? Cor de pele? O critério de definição de pessoa suspeita está na mente de cada policial? Tais apontamentos passaram a surgir a partir do momento que nos autos de prisão em flagrante passaram a conter a cor da pele da pessoa que foi abordada, sendo o fenótipo inserido como um possível padrão de pessoa suspeita.

A partir de tal análise, chega-se no termo "perfilamento racial" utilizado para denominar condutas policiais que versam em julgar como suspeitas pessoas pretas. Entretanto, com base nos direitos fundamentais e humanos que tutelam os cidadãos, constata-se que a prática do perfilamento racial lesa tais preceitos, de modo que a discussão sobre esta temática se tornou crescente, estando em julgamento o Habeas Corpus 204280 em voga, visto nascer deste um possível precedente para anular provas fundadas a partir de filtragem racial.

Neste espeque, o presente artigo tem como escopo elucidar o que se trata o perfilamento racial e sua aplicação no meio policial e o que entende o ordenamento jurídico acerca desta prática corriqueira.

Mas afinal, o que é Perfilamento Racial?

O “Perfilamento Racial” é a expressão utilizada para caracterizar a abordagem policial fundada em questões de etnia, descendência e cor.

Nesta senda, também podemos definir o "perfilamento racial" como a associação sistemática de um conjunto de características físicas, comportamentais ou psicológicas com delitos específicos e seu uso com base para tomar decisões de aplicação da lei.

No ano de 2015, a relatoria especial da Nações Unidas versou acerca das formas atuais de discriminação racial, apontando assim, o perfilamento racial como um ato frequente exercido por pessoas da segurança pública.

Imperioso destacar que embora essa temática esteja em voga atualmente em virtude o julgamento do Habeas Corpus 208240, esta vem chamando a atenção das instituições, como Judiciário e Nações Unidas há algum tempo.

O Conselho Nacional de Justiça, recentemente lançou o resultado da pesquisa nomeada como "Reconhecimento de Pessoas", contendo uma análise de informações prestadas por guarnições policiais de todo o país.

Dessa pesquisa, 684 unidades policiais do Brasil informaram que possuem "álbum de suspeitos", de modo que 216 guarnições responderam que frequentemente exibem o mencionado álbum para vítimas e testemunhas, como forma de identificar a pessoa que praticou possível ato ilícito.

Ao questionar de que forma tal álbum de suspeitos é criado, as informações são as seguintes:

Das 1657 instituições policiais que responderam:

a) 299 informaram que o álbum é composto por fotos de condenados da justiça;

b) 375 responderam que o álbum advém de fotos extraídas das abordagens policiais;

c) 361 informaram o álbum possui fotos retiradas de bancos de dados públicos;

d) 348 responderam que o álbum é criado através de fotos das redes sociais e outras mídias;

e) 27 não souberam informar;

f) 247 informaram que o álbum é criado através de outros meios.
À vista disso, embora 310 unidades policiais tenham respondido que não há registro da raça das pessoas que são abordadas e fotografadas, é importante frisar que há 82,62% de preponderância de imagens de pessoas pretas no álbum de suspeitos.

Tendo em vista que o álbum de suspeitos é criado a partir de fotos de redes sociais e demais mídias ou até com base em abordagens policiais, não se pode deixar de atribuir certa gravidade a tal informação, visto que não é possível saber ao certo se após abordagem e nada encontrado a pessoa foi liberada e mesmo assim teve seu rosto registrado em uma foto e encaminhado para o referido álbum.

Ademais, a criação de um álbum a partir de critérios rasos, estereotipados e extremamente subjetivos, fomentam ainda mais o entendimento de que a abordagem polícial consiste mais em discriminação racial do que a efetivadade da prevenção do crime.

A criação de álbum de suspeito com base em fotos extraídas de redes socais e mídias, por exemplo, pode ser letal e totalmente equivocada, de modo a incluir pessoas que sequer possuem passagem policial. A título de exemplo, no ano de 2022, o ator estadunidense Michael B. Jordan apareceu no catálogo de suspeitos, ou seja, álbum de suspeitos da Chacina de Sapiranga, no Ceará.

Neste espeque, ante a ausência de critérios relevantes para entender uma pessoa como suspeita que nasce uma possível justificativa para 68,2% da população carcerária ser composta por pessoas negras, no ano de 2022, bem como, extrair desse numerário, que 25,3% desta população estava presa provisoriamente, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Dessa forma, não raro podemos nos deparar com notícias em telejornais que depois de meses ou anos pessoas condenadas ou presas provisoriamente conseguiram provar sua inocência e sair do cárcere.

No início do ano de 2019, o rapaz Jorge Benjamin foi preso após ser identificado pelas vítimas e testemunhas como um dos participantes do latrocínio ocorrido em um mercado, situado em Pedra Guaratiba/RJ. Após a família do jovem conseguir filmagens denotando que o jovem não possuía envolvimento algum no crime, a polícia admitiu o equívoco, bem como requereu a revogação da prisão do mesmo.

Diante de extremos e letais equívocos oriundos da forma da polícia identificar eventuais suspeitos que o Conselho Nacional de Justiça, Nações Unidades e ONG’s estudam e trabalham de forma ostensiva afastar a cultura do perfilamento racial.

Institutos como o IDPN (Instituto de Defesa da População Negra), atuam de forma gratuita para oferecer assistência jurídica de qualidade à população negra. Já profissionais da área jurídica, como os advogados Ewerton Carvalho e Carlos Santos usam dos conhecimentos jurídicos para libertarem pessoas negras inocentes e presas injustamente, combatendo de certa forma o perfilamento racial e em contrapartida denotando como o mecanismo é absurdamente falho.

Perfilamento Racial e a Dissintonia para com Direitos Fundamentais na CRFB/88

Como visto anteriormente, além da cultura do perfilamento racial possuir aplicação totalmente temerária, esta lesa os direitos fundamentais previstos no artigo 5º incisos LIV, LV, LVI e LVII da Constituição da República de 1988, os quais dispõem o seguinte:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;

LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;
Não obstante, também lesa um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, previsto no artigo 3º IV, da referida Constituição da República, que versa o seguinte:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Além de basear-se em critérios rasos e estereotipados que geram a convicção de que tal pessoa é suspeita, a prática do perfilamento racial, trata-se de um ato totalmente discriminatório e que lesa os direitos do ser, enquanto pessoa dotada de direitos e deveres no meio social.

Assim, vindo extirpar tal cultura do perfilamento racial em instituições policiais e no ordenamento jurídico, que as Nações Unidas confeccionaram o manual chamado "Prevenindo e Combatendo o Perfilamento Racial de Pessoas Afrodescendentes – Boas Práticas e Desafios".

O referido manual, sugere que os Estados apliquem medidas de proibições acerca do perfilamento racial, sendo eles através da criação de leis estaduais, códigos de conduta e ética ou procedimentos operacionais padronizados a serem implementados pelas instituições policiais.

À vista disso, países com Colômbia, Holanda e Irlanda criaram instrumentos legais, como leis que proíbem a indicação de pessoas suspeitas apenas com base na cor da pele ou descendência ou religião.

Embora exista medidas coercitivas que visam afastar o perfilamento racial em outros países, bem como no Brasil, neste último como visto anteriormente é possível notar que mesmo estando previsto na Constituição Federal, esta prática ainda é uso assíduo pelas unidades policiais.

Ante o desrespeito para com os princípios e direitos fundamentais previstos na Constituição da República de 1988 que o Judiciário vem trabalhando para implementar uma política antirracista no Sistema de Judicial Criminal, destacando a Escola Paulista de Magistratura que promoveu em maio de 2023 o seminário da “Perspectiva Antirracista no Sistema Judicial Criminal”, momento que o jurista Fábio Esteves explanou acerca das consequências deste instituto, ao passo que a imposição da criminalização de certos grupos reforça o estereótipo enganoso, desencadeando taxas de encarceramento desproporcionais, além do expor tais grupos a vulnerabilidade, no tocante a força da autoridade policial, notificações de atos discriminatórios e aumento dos crimes de ódio.

Não obstante, o guardião da constituição, a saber, o Supremo Tribunal Federal, está julgando o Habeas Corpus 208240, com o intuito de verificar a licitude de provas obtidas por abordagem policial motivadas exclusivamente pela cor da pele.

Atualmente cinco ministros explanaram seus votos, estando o placar 4 a 1 favorável, todavia, o Ministro Luiz Fux solicitou vistas do caso, momento o qual o julgamento do writ se encontra suspenso.

Todavia, cabe destacar que embora o ministro Edson Fachin tenha não conhecido o Habeas Corpus, este concedeu ordem de ofício para declarar como nula a revista pessoal e determinar o trancamento da ação penal originária do writ.

Ademais, visando afastar o perfilamento racial, o ministro fixou as seguintes teses:

1. A busca pessoal independente de mandado judicial deve estar fundada em elementos concretos e objetivos de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não sendo lícita a realização da medida com base na raça, cor da pele ou aparência física;

2. A busca pessoal sem mandado judicial reclama urgência para qual não se pode aguardar uma ordem judicial;

3. Os requisitos para a busca pessoal devem estar presentes anteriormente à realização do ato e devem ser devidamente justificados pelo executor da medida para ulterior controle do Poder Judiciário.
Dessa forma, o referido julgamento e demais medidas destacas acima geram expectativas favoráveis de que a prática do perfilamento racial seja extirpada do meio policial, bem como os direitos fundamentais dos indivíduos passem a ser respeitados, compelindo que as instituições policiais usem critérios objetivos e fundamentados para proceder com abordagens.

Conclusão

Diante do que restou elucidado, a existência do perfilamento racial não gera surpresa, tendo em vista o cenário passado e atual na sociedade no tocante as pessoas pretas. Durante 350 anos, o Brasil viveu o regime escravocrata e após sua abolição, foi promulgada uma Lei que sequer garantia direitos à essas pessoas, naquele momento ex-escravizadas, de modo que a sociedade e Estado os deixaram à deriva.

Isto posto, sem moradia, trabalho e alimento, o Estado ao invés de acolher os ex-escravizados indenizaram os senhores de engenho que perderam os escravizados com a abolição da escravatura e como resposta ao estado degradante que ficaram os ex-escravizados, institucionalizou como ato ilícito "deixar de exercitar profissão ou qualquer mister que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistência ou domicilio que habite, e/ou exercer função proibida por lei ou que ofenda os bons costumes".

Assim, foi-se fomentando a cultura da discriminação racial velada, gerando diversas formas, até chegarmos no objeto deste artigo, a saber, o perfilamento racial.

Dessa forma, ante as políticas que vem sendo criadas, bem como o olhar atento do Poder Judiciário brasileiro, expecta-se em um futuro não tão distante a sociedade passe a reprimir condutas racistas, como perfilamento racial, de modo a restabelecer a justiça, contudo, sem e existência de injustiças no decorrer das investigações e que o sistema policial seja mais efetivo em seu trabalho de prevenção criminal.

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* CINARA LUÍSA SOUZA VENTURA
















Bacharel em Direito pela Doctum – Campus, João Monlebade/MG.

Pós-Graduada em Advocacia Criminal pela Escola Superior de Advocacia (ESA/MG).

Pós-Graduanda em Mercado Financeiro e de Capitais pela PUC Minas.

Advogada atuante desde 2019.

Membra da Comissão de Promoção de Igualdade Racial e Diretos Humanos da OAB/MG Subseção João Monlevade/MG.

Membra da Comissão de Promoção de Igualdade Racial da OAB/MG Seccional de Minas Gerais.

Membra da Associação Mulheres em Ação de João Monlevade/MG

Nota do Editor:

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