domingo, 14 de julho de 2024

Liberdade, perseverança, e a tolerância sobre o desprazer


 Autor: Jonathan Souza Melo (*)

A liberdade é um assunto muito complexo. O direito de exercê-la também envolve o dever de arcar com as consequências dela. Tais consequências não significam necessariamente algum ato imoral, mas certamente envolvem perdas: "não sou mais marido/namorado", "não trabalho mais naquela empresa", "não moro mais neste ou naquele lugar"... "não me reconheço como me reconhecia antes".

O processo de reconhecer a si próprio é uma tarefa única e intransferível, além de ser o principal guia para indicar a nossa satisfação em todas as áreas da vida. Nos encontramos em uma sociedade que tende a achar culpados para seus infortúnios e, de fato, muitas vezes a origem do nosso sofrimento pode estar em algum fator externo. Isso, no entanto, não nos tira a responsabilidade de definir os nossos passos e traçar novos caminhos.

Dizer isso não significa fazer uma apologia ao individualismo ou ao niilismo, pelo contrário: como diria o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica, trata-se de uma "apologia à sobriedade" — no caso, uma crítica a uma sociedade de consumo desenfreado. Lidar com os próprios problemas com responsabilidade não significa necessariamente fazê-lo sozinho, envolvendo-se em um sentimento de onipotência e desprezo ao outro — essa condição pode na verdade significar uma distância mais longa da sobriedade. Mas sim, significa definir os próprios passos mediante às próprias necessidades individuais — que podem ser diversas.

Percebo em consultório que o processo de se tornar autor da própria condução de vida envolve uma forte sensação de injustiça: "porquê eu devo lidar com isso sendo que eu não fiz nada para merecê-lo?". Nesse caso vemos a primeira consequência do exercício da liberdade: para que se mostre um caminho inicial na direção da satisfação pessoal, é necessário elaborar o que te distancia dela. Novamente: muitas das nossas dificuldades podem não ser causadas por uma atitude ou negligência pessoais, mas em algum momento passou a sê-lo — que é quando temos consciência da situação, masnão conseguimos fazer algo a respeito. É necessário que sejamos também conscientes de que o nosso caminho pode ser determinado por nós. É inevitável falar de Sartre e "o que fazemos com o que fizeram de nós", ou de Jung e sua certeira exclamação sobre o destino: "enquanto você não se tornar consciente, o inconsciente irá comandar a sua vida, e você o chamará de destino".

E nós chamamos de destino muita coisa que é, em última instância, a repetição daquilo que fomos levados a crer e fazer. São automatismos que foram “instalados” na nossa dinâmica psíquica durante o crescimento e que temos que enfrentar. Temos muitas necessidades "infantis" que precisamos resolver depois de adultos, em um processo tão desgastante quanto inevitável. É o processo de aceitar quem se é, entender como se é e de que necessitamos. Podemos identificar alguns responsáveis pela angústia nesta caminhada, e muitas vezes a primeira escolha a se fazer é recusar a participação de uma dinâmica de adoecimento com tais pessoas. É comum nos depararmos com a irônica necessidade de obter conforto no mesmo lugar onde o desconforto surgiu. Negar a participação nessa dinâmica pode causar um forte sentimento de solidão e de falta de propósito, e isso nos leva a uma problemática muito pungente na atualidade: a necessidade de se compromissar consigo mesmo ainda que não se sinta pleno e feliz.

Alberto Caeiro, pseudônimo de Fernando Pessoa, bem exemplificou esse processo ao dizer: "(...) Mas eu nem sempre quero ser feliz/É preciso ser de vez em quando infeliz/Pra se poder ser natural (...)". É preciso aceitar o passo da evolução, mesmo que isso custe algum nível de conforto (e olha que tomamos muitas situações angustiantes como confortáveis apenas pelo mecanicismo da repetição). É necessário entender que a liberdade, mesmo que tenha como objetivo a felicidade, também envolve um processo doloroso de romper com as limitações e desenvolver o ego para a maturidade. Envolve aceitar a condição atual e se responsabilizar pelas consequências dela, mesmo que não se tenha feito algo que culminasse na mesma. É necessário sustentar a ambiguidade do processo, o sentimento de injustiça, o peso inerente à consciência.

"O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade
(...)
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo, e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja..."
(Alberto Caeiro)

*JONATHAN SOUZA MELO























-Psicólogo graduado pela FMU-SP (2019);

-Pós-graduado em Psicologia Hospitalar e da Saúde pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Psicologia e Saúde - CEPPS (2022); e

Pós-graduando em Neurociência, Comportamento e Psicopatologia pela PUC-PR. 

São suas palavras:

"Sou entusiasta de artes escritas e e visuais,especialmente pinturas.Vejo o mundo sob viés psicanalítico/psicodinâmico, enriquecendo assim minha experiência na clínica psicológica e na vida."

Contato: (11) 95901-5355

Nota do Editor:

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