sábado, 30 de setembro de 2017

Na escola também se vive a sexualidade


Um grupo de professoras de uma escola pública, constatando que seus alunos adolescentes não tinham muitas oportunidades de encontrar os amigos e colegas fora da escola, resolveu organizar uma festa de Dia dos Namorados, como incentivo para contato entre os adolescentes. Seria uma oportunidade para que conversassem, trocassem ideias, se reconhecessem, através das expressões de suas igualdades, diferenças, limitações e inclinações afetivas.

Para participar da festa que aconteceria em dia letivo e depois das duas primeiras aulas, o aluno que quisesse participar, faria inscrição prévia com as professoras, recebendo um cartão com uma palavra escrita. O cartão seria a senha para que cada participante, ao entrar no espaço da festa, encontrasse um amigo ou colega para conversar ou dançar pelo menos uma música. Quem recebesse o cartão escrito “lua”, procuraria durante a festa o cartão “sol”; “garfo” procuraria “faca”; “cabelo, pente” e assim por diante.

As professoras começaram os preparativos uma semana antes. Organizaram o processo de inscrição, espalharam cartazes pela escola e uma faixa foi afixada no pátio. Os alunos teriam que estar de uniforme e só participariam os do turno vespertino, de idades entre 12 e 15 anos. A festa seria no espaço do teatro da escola, todo decorado pelas professoras e um grupo de alunos, com gravuras de príncipes e princesas, tentando manter um espírito romântico idealizado por elas para a festa.

Os adolescentes passaram a semana toda cochichando em pequenos grupinhos pelos corredores. Acertos e acordos foram feitos através de olhares, conversas, sorrisos e conluios, iniciando um movimento contrário ao que as professoras esperavam. Os adolescentes, em silencio, mudaram as regras do jogo.

Chegado o dia, a festa teve início quando as músicas, algumas com letras maliciosas, começaram a tocar. A obrigatoriedade do uniforme foi esquecida; as meninas se produziram para a festa, no banheiro da escola com tops e bocas vermelhas, parecia que todas tinham passado o mesmo batom! Os meninos capricharam nos topetes!

As professoras não perceberam durante a semana, o que estava rolando entre os alunos e alunas, que não mantiveram segredo sobre as palavras escritas nos cartões. Descobrindo quem tinha o quê escrito nos cartões, acabaram barganhando, leiloando e trocando os cartões, sabendo assim cada um, de antemão, com quem iam dançar e “ficar”. O que era pra ser uma surpresa na hora da festa, caiu por terra.

Muitos dos participantes, quando souberam com quem fariam par na festa e não conseguiram trocar seu cartão, disseram que o perderam e, ou jogaram fora. Eles levantaram critérios para suas opções.

Na hora da festa, não precisavam mais dos cartões, já estava tudo combinado. A festa tomou outro rumo. Era para integração, no entanto, constituiu-se em um momento para dançar e “ficar” com quem se desejava. Rolou um pouco de tudo. Quem ficou sem par por ter sido preterido, se manteve quieto no canto do salão, observando tudo ou foi para o pátio da escola procurar alguém excluído igual a ele. Teve menina que arrumou vassoura para trocar os pares durante as danças, mas isso não deu muito certo.

As professoras, preocupadas, com o desenrolar da festa, tentavam anunciar uma possível punição.: _ “quem não dançar, na próxima festa fica de fora” . Em vão.

Enquanto isso, alguns casais trocaram abraços e beijos durante as danças, outros, disfarçadamente se esconderam atrás das cortinas das janelas laterais, sendo logo trazidos de volta ao meio do salão por uma professora. 

Alguns poucos adolescentes, vistos geralmente como aqueles que gostam de chocar os outros, transgressores, desafiadores, foram capazes de experimentar outras possibilidades e outro querer amoroso: dançaram com alguém do seu próprio sexo, enfrentando o desafio dos olhares de todos da escola.

A festa acabou quando a campainha para o término das aulas tocou. Foi tempo suficiente para que muitos vivenciassem a atividade de integração da maneira como se organizaram durante a semana nos corredores da escola. A festa mostrou certas atitudes a favor de estereótipos sociais com a segregação e discriminação de outros adolescentes, podendo ser observadas questões relacionadas a sexualidade, como as de gênero e orientação sexual. 

A pequena mostra destas questões nesta festa de escola, refletiu o desenvolvimento dos vínculos afetivos e sexuais entre os adolescentes, assim como a difícil interação com o diferente e a promoção e aceitação de sua exclusão da festa. 

Regras e normas que reprimem, regulam, normatizam as atitudes e comportamentos sexuais, amorosos, discriminatórios e preconceituosos são paulatinamente interiorizadas desde que a criança nasce sendo aprendidas na relação familiar e no contexto do meio social e cultural a qual ela pertence e vive. 

As situações intrínsecas à sexualidade humana foram bem sentidas durante a festa, assim como também o são durante todo o tempo do cotidiano escolar ( e durante a vida de cada um, também fora da escola). Então, a polêmica que se vivencia hoje sobre o silêncio das questões de gênero e orientação sexual na escola, é uma forma de tapar o sol com a peneira. Não dá para ficar calada.

Os adolescentes que participaram desta festa transitam em um sistema educacional complexo, onde a escola pode não estar preparada para as implicações do que é esperado do adolescente contemporâneo quanto aos seus comportamentos sexuais e afetivos. Porém, conhecer as implicações de suas ações, dúvidas e, ouvi-los, é dialogar com eles, questioná-los e orientá-los para que obtenham suas próprias respostas, como uma forma de mostrar que a sexualidade pode não ser um bicho de sete cabeças.

Meninos e meninas, antes e depois da festa, mostraram que nada está pronto e, que através da observação do que eles contam todos os dias é possível desencadear uma posição educacional clara, objetiva e ética, capaz de auxiliar o adolescente a ser autor de si mesmo. 

Bibliografia básica: 

SILVA, Sheyla. P. Considerações sobre o relacionamento amoroso entre adolescentes. Educação, Adolescências e Culturas Juvenis. CADERNOS CEDES, Vol. 57. 1ª ed. Agosto/2002. Campinas, SP, pp 23-43;

CAMARGO, A.M. F.& MARIGUELA. M. Orgs. Cotidiano Escolar. Emergência e Invenção. Piracicaba: Jacintha ed., 2007;e

SILVA, Sheyla. P. Tramas de amor e sedução no relacionamento amoroso entre adolescentes. 2001. Dissertação de Mestrado. FE, UNICAMP, Campinas, SP.

POR SHEYLA P. DA SILVA











-Professora aposentada da Rede Municipal de Educação de Campinas/SP;
-Ex-coordenadora do Programa de Orientação Sexual da Secretaria Municipal de Educação de Campinas/SP;
-Palestrante e autora de artigos sobre a temática da Sexualidade e Educação;
-Professora de biologia, ciências e Pedagoga; e 
-Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. 

Nota do Editor:

Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.

Um comentário:

  1. Bom artigo. Gostei. Mas acresento a minha opinião que em um mundo de extremos devemos crescer sem ideologias.

    ResponderExcluir