segunda-feira, 30 de março de 2020

Apocalipse


Autora: Valdirene Ferreira (*)

A capacidade de fazermos amigos é um dom extraordinário que nos acompanha para toda a vida. Quando conquistamos o coração do outro passamos a ter certos privilégios. Um deles, claro, é compartilhar de suas histórias.

Há um tempo eu fiz uma amizade dessas que deve ser para a vida toda. Curioso é que eu já o conhecia desde menino. Moramos na mesma cidade e trabalhamos na mesma empresa. A verdade é que colega difere muito de amigo. Portanto, isso é um contrato muito claro no relacionamento das pessoas. Éramos próximos fisicamente e distantes na intimidade.

Acontece que amizade é coisa que nasce quase sempre em situações espontâneas. E numa dessas ficamos amigos. Meu jeito de olhar para ele, que antes era comum e superficial, passou a ser sofisticado e profundo. Passei a espiar o rapaz bem lá dentro. Mudei de categoria. Passei de colega a amiga. E isso não foi difícil e tampouco foi fácil, mas fiquei metida. Foi um processo extraordinariamente voluntário.

Meu amigo é uma pessoa incomum, diferente. Ele é calado, concentrado, comedido. Poderia acrescentar que é tão discreto que beira a introspecção. Ele é a encarnação da discrição, cidadão ético. Tem excelente formação acadêmica e pouca disposição para ouvir falatório sem eira nem beira. Sei pela cara que faz quando ouve uma "pérola". Aquela cara livre de expressão para continuar ético. 

Ninguém nota, a não ser eu, claro. Pouca gente conhece o ser incrível por trás das grossas lentes de seus óculos. Ele tem um senso de humor quase que imperceptível e acredito que pouca gente decifra. Sabe gargalhar, mas só por dentro. Na verdade eu gostaria que ele fosse, algum dia, meu chefe. Decerto ensinaria muito sem dizer palavra alguma. Ele é desse tipo raro de gente que fala com o corpo e ensina com o exemplo.

Acontece que dia desses meu amigo baixou a guarda. Até hoje não sei se foi o vinho ou se foi confiança que abriu brecha. Sei que foi em um clima raro de descontração que meu amigo deu o ar da graça.

Aconteceu que ele foi passear em São Paulo. Essa é uma de suas viagens prediletas. Pessoas e culturas diferentes tem lugar destacado nas suas preferências de lazer. Hospedou-se em hotel de bom nome, jantou e dormiu cedo. Dia seguinte acordou feliz com boas expectativas para o dia que começava. Leu a bíblia, arrumou-se e saiu.

São Paulo é conhecida como terra da garoa, muito embora a ação do homem tenha modificado esse status. Certeza tenho que meu amigo conhecia bem essa particularidade da capital paulista. Ao atravessar o hall escuro do hotel e ganhar a rua uma sensação estranha tomou conta do seu ser.

Pasmado, sobressaltado, incrédulo, seu olhos não podiam acreditar no que viam. Ou seria no que não viam? Sei lá ... seu coração comovido não podia acreditar que o Apocalipse o pegara de surpresa assim tão longe de casa. Nem de mim se despediria. O fato é que o à sua frente estavam os prédios escurecidos de um cinza triste. As pessoas passando esquisitas como se fosse uma imagem impressionista em movimento surreal. Seu corpo estático não podia tomar qualquer direção. Como podia uma cena daquela? Tudo manchado, borrado e turvo como em um terrível pesadelo. Daí que meu amigo meio que no piloto automático entra em um café.

Assustado e com o coração à véspera de uma parada cardíaca pela possibilidade do fim do mundo, ele pede um expresso ao garçom de cara desfigurada. Verdade que nem queria café. Queria era refúgio mesmo. Senta-se e, como num transe, consulta a hora no celular. Pasmem ... foi nesse momento que meu amigo constata que estava sem os seus, tão extremamente necessários e urgentes , óculos de grau. Ele os esquecera no quarto do hotel. Ficara ali, resignado, revoltado pela humilhação que jamais partilharia com alguém. Nunca um café que era por ele tão apreciado descera tão quadrado pela garganta. E sair daquele lugar lhe custou uma eternidade. Por que nessas horas a razão some de nosso alcance. O que sobra são desconfianças. Vai que tinha gente conhecida por ali.

*VALDIRENE DIAS FERREIRA


-Graduada em Letras pela FENORD - Fundação Educacional Nordeste Mineiro- Teófilo Otoni - MG;
 - Apaixonada por escrever;
-Cronista e contista









Nota do Editor:


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