Países do mundo inteiro estão
normatizando o uso das informações de bancos de dados pelas empresas que os
acessam. O regime de normas jurídicas, tal como o conhecemos, será suficiente a
garantir nossa liberdade ? Ou estamos nos entregando, de modo voluntário,
conscientemente ou inconscientemente, a um novo (e talvez definitivo) Leviatã ?
"A informação
é a fonte do poder" (autor desconhecido)
"Nada de
grandioso entra na vida dos mortais sem uma maldição" (Sófocles, 497 ou 495
a.C)
".... o
Progresso e a Ruína são duas faces da mesma medalha; ambas resultam da
superstição, não da fé” (Hanna Arendt, “Origens do Totalitarismo", Cia. das
Letras, 2012 – 15ª reimpressão, 2020 – p.12)
Nos primeiros dias de aula na faculdade
de Direito aprendemos, grosseiramente falando, que o direito (e,
consequentemente, a lei, norma jurídica) é uma criação humana destinada a
regular e organizar a vida em sociedade, sem o que os homens viveriam na
barbárie sendo impossível a convivência social.
No dizer de Durkhein: "a
sociedade sem o direito não subsistiria, seria anárquica, teria o seu fim. O
direito é a grande coluna que sustenta a sociedade. Criado pelo homem, para
corrigir sua imperfeição, o direito apresenta um grande esforço para adaptar o
mundo exterior às suas necessidades de vida." ([1])
Aprendemos, também, que a Lei caminha
sempre a reboque das mudanças de comportamento social e cultural da humanidade,
de modo que acaba sempre por regular, com algum atraso, as relações sociais que
demandem a intervenção do Direito para "pacificá-las".
Do final da primeira metade do
último século a nossos dias, porém, uma enorme transformação ocorreu em razão
da criação de máquinas destinadas a executar cálculos rapidamente ("computador
eletromecânico") as quais evoluíram para os computadores analógicos e depois
para os digitais ([2]).
Essas máquinas têm a capacidade de
processar milhões de dados em um picossegundo (equivalente a um trilionésimo de
segundo), analisando-os, comparando-os,
selecionando-os e agrupando-os, tendo elas sido conectadas entre si,
criando-se então a "rede mundial de computadores" conhecida pelo prefixo WWW
(World Wide Web), popularmente chamada de "Rede".
A elas vieram juntar-se as máquinas
de uso doméstico e pessoal que são a interface de comunicação humana com esse
banco de dados armazenado em supercomputadores e cujas informações estão ao
alcance do dedo de qualquer cidadão, valendo acrescentar que a velocidade de
processamento de dados e informações possibilitou a criação de aplicativos de
comunicação virtual entre pessoas, independente da distância que as separe
dentro do planeta.
E tudo, aparentemente, "de graça" já
que a conta é paga pelos anunciantes dos sítios de Internet. Esses anunciantes,
por sua vez, têm acesso aos dados pessoais dos usuários que os fornecem
consciente ou inconscientemente, pois um simples "clique" no botão "ACEITO",
que aparece em sítios das mais diferentes empresas (de notícias à venda de
produtos), autoriza a utilização dos dados pessoais do usuário, além de
permitir a instalação de "cookies" que são pequenos arquivos que se instalam em
seu computador, tablet ou celular, através dos quais o respectivo comportamento
passa a ser monitorado. Isto sem mencionar situações mais prosaicas, tais como
a das informações pessoais que se fornece, por exemplo, na Drogaria e no
comércio em geral, para fazer o famigerado "cadastro", sem o qual a pessoa "não
existe".
A "Rede" foi criada há 30 anos
(1990) ganhando dimensão planetária nos últimos 10 anos graças, principalmente,
à proliferação dos smart phones, que parecem ter-se tornado um apêndice
do corpo humano da quase absoluta maioria das pessoas, mundo afora,
especialmente em razão da criação das "redes sociais", que fascinam de crianças
a adultos.
Essas mudanças tecnológicas e de
comportamento humano resultaram em profundas alterações sociais, que vão desde
os hábitos de consumo, às relações pessoais, inclusive amorosas, até a
discussão política, tendo se disseminado na "Rede" as "fake news" sobre
assuntos os mais diversos que vão desde questões de saúde às de política
mundial, havendo aplicativos capazes de forjar discursos de pessoas, colocando
em sua boca, coisas que jamais disseram.
Pois bem, com toda a velocidade
dessas mudanças, a distância entre a realidade social e a Lei aumentou exponencialmente,
visto que o legislador não consegue acompanhá-las e só muito recentemente
passou-se a regular o uso das informações coletadas pela "Rede", visando
proteger a individualidade e a liberdade das pessoas.
No Brasil, a Lei 12.965 de
23/04/2014 criou o "marco civil da Internet" e mais recentemente a Lei
13.709/2018, com redação alterada pela Lei 13.853/2019, a chamada "Lei Geral de
Proteção de Dados (LGPD)" destinam-se a regular o uso e compartilhamento de
dados obtidos via Internet.
A LGPD tem dispositivos já em vigor
e outros que só terão vigência a partir de agosto de 2021. Muito genericamente
falando, essa norma legal traça os limites de utilização de dados pessoais que
caem na "Rede", estabelecendo regras de compliance para as empresas
detentoras dos dados (operadoras e controladoras) e fixando pesadas multas a
quem divulgue dados irregularmente, por exemplo, sem a prévia autorização escrita
ou inequívoca de seu titular além dos
demais casos estabelecidos no artigo 7º, seus incisos e parágrafos da LGPD.
O "vazamento" de dados acarreta a responsabilidade
civil do operador e do controlador dos dados além de ser punível
administrativamente, sendo a culpa tratada quase objetivamente, embora com
presunção juris tantum (ou seja, presunção que admite prova em
contrário), observadas as exceções estabelecidas no artigo 43, I a III, cujos
incisos I e II estabelecem o ônus de provar negativamente ("prova diabólica"), além
do que o artigo 42, § 2º, admite a inversão do ônus da prova o que, quase
sempre, resulta na necessidade de produção de prova negativa, também ([3]).
E aí chegamos ao dilema do
distanciamento entre a realidade e a norma que pretende discipliná-la: como
antes referido, a velocidade do avanço da tecnologia jamais foi tão rápido como
nos dias que correm. A situação só encontra parâmetro na ficção científica a
qual, aliás, está sendo ultrapassada rapidamente pela realidade.
Como controlar a utilização de dados
quando um simples relógio eletrônico de pulso, consegue monitorar seus
batimentos cardíacos (fazendo eletrocardiograma instantâneo), a saturação de
seu oxigênio no sangue, sua movimentação
e localização e suas preferências musicais, transmitindo tudo para seu celular
via "nuvem"? Como controlar essa utilização quando os computadores e demais
aparelhos eletrônicos estão cada vez mais conectados na mesma "nuvem",
armazenando seus dados com sua autorização expressa ou tácita, esta pela ânsia
de estar "update" com os aplicativos e as “redes sociais”, que só são
acessíveis mediante a escolha da opção "aceito", cujas condições contratuais
ninguém se dá ao trabalho de ler e nem interessa ?
A conexão na "nuvem" está se
ampliando de tal forma que os servidores privados, seja o harddisk instalado em
seu micro doméstico, seja o harddisk instalado nos servidores do seu local de
trabalho, estão ficando totalmente obsoletos.
Quem controla a "nuvem"? Onde ela
está fisicamente?
Essas são questões básicas,
irrespondíveis. A "Rede" (nome bastante sugestivo, aliás), captura informações
a todo instante, quando circulam pela "nuvem", independente da vontade de quem
quer que seja, e do mais rigoroso cuidado que os "operadores" e "controladores" possam exercer sobre o sigilo de dados que manuseiam.
E não estou tratando aqui de "hackers", mas do próprio sistema de transmissão e processamento de dados na "nuvem", que hoje abrange, inclusive, serviços de comunicação telefônica.
A "Rede", através da "nuvem", tem o
controle cada dia mais absoluto sobre as pessoas. É o novo Leviatã [4].
Porém, não um soberano de carne e osso, como pensado por Hobbes, mas um ser sem
rosto, sem identidade, incorpóreo, que controla a tudo e a todos que se
submetem à servidão voluntária ([5])
de um modo jamais imaginado por De La Boétie (1530 – 1563) e, talvez, somente
por alguns escritores de ficção científica, da segunda metade do século XX.
Essa, a meu ver, á a realidade
social que nenhuma lei será capaz de regular. Os conceitos de liberdade
individual e de controle social através do império da Lei estão fadados, em
curtíssimo prazo, a desaparecer, com quebra de todo o arcabouço construído a
partir da Revolução Francesa, num "admirável mundo novo" que quem viver verá.
P.S.:
A respeito dos supercomputadores, a quem se interessar, recomendo a leitura de dois contos, curtíssimos, de ficção científica: "A Resposta" (disponível in https://www.blogs.unicamp.br/100nexos/2007/09/30/resposta-de-frederic-brown-1954/) e os "9 bilhões de nomes de Deus"
(disponível inhttps://nuhtaradahab.wordpress.com/2008/01/04/arthur-c-clarke-conto-os-nove-bilhoes-de-nomes-de-deus/) e, principalmente, o documentário em cartaz na Netflix, "O Dilema das Redes".
[1] DURKHEIM, Émile, As regras do método sociológico, São
Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1960, citado por Wanessa Mota Freitas Fortes, no
artigo “Sociedade, direito e controle social”, in Revista Âmbito
Jurídico
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-82/sociedade-direito-e-controle-social/#:~:text=3.-
,Instrumentos%20de%20controle%20social,e%2C%20obviamente%2C%20o%20Direito.
[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Computador#:~:text=O%20primeiro%20computador%20eletromec%C3%A2nico%20foi,em%20fitas%20perfuradas%2C%20o%20Z1.&text=Foi%20na%20Segunda%20Guerra%20Mundial%20que%20realmente%20nasceram%20os%20computadores%20atuais.
"Art.
42. O controlador ou o operador que, em razão do exercício de atividade de
tratamento de dados pessoais, causar a outrem dano patrimonial, moral,
individual ou coletivo, em violação à legislação de proteção de dados pessoais,
é obrigado a repará-lo.
§
1º A fim de assegurar a efetiva indenização ao titular dos dados:
I
- o operador responde solidariamente pelos danos causados pelo tratamento
quando descumprir as obrigações da legislação de proteção de dados ou quando
não tiver seguido as instruções lícitas do controlador, hipótese em que o
operador equipara-se ao controlador, salvo nos casos de exclusão previstos no
art. 43 desta Lei;
II
- os controladores que estiverem diretamente envolvidos no tratamento do qual
decorreram danos ao titular dos dados respondem solidariamente, salvo nos casos
de exclusão previstos no art. 43 desta Lei.
§
2º O juiz, no processo civil, poderá inverter o ônus da prova a favor do
titular dos dados quando, a seu juízo, for verossímil a alegação, houver
hipossuficiência para fins de produção de prova ou quando a produção de prova
pelo titular resultar-lhe excessivamente onerosa.
§
3º As ações de reparação por danos coletivos que tenham por objeto a
responsabilização nos termos do caput deste artigo podem ser
exercidas coletivamente em juízo, observado o disposto na legislação
pertinente.
§
4º Aquele que reparar o dano ao titular tem direito de regresso contra os
demais responsáveis, na medida de sua participação no evento danoso."
"Art. 43. Os agentes de tratamento só não serão
responsabilizados quando provarem:
I
- que não realizaram o tratamento de dados pessoais que lhes é atribuído;
II
- que, embora tenham realizado o tratamento de dados pessoais que lhes é
atribuído, não houve violação à legislação de proteção de dados; ou
III
- que o dano é decorrente de culpa exclusiva do titular dos dados ou de
terceiro."
-Advogado em São Paulo;
-Graduado em 1972 pela USP;
Nenhum comentário:
Postar um comentário