quinta-feira, 15 de outubro de 2020

É possível um Direito das Sucessões mais atual?


 Autora: Giselda Hironaka(*)

O perfil do Código Civil promulgado em 2002 não esteve em conexão com o alvorecer do século XXI; ao contrário, refletiu apenas o perfil oitocentista que já qualificava a legislação anterior (1916) baseado nos arcaicos pilares do patrimonialismo, do individualismo, do voluntarismo e do conservadorismo em sede familiar.

Mas a construção doutrinária insistente e a determinação corajosa das decisões judiciais foram os caminhos que o direito encontrou para conseguir, aos poucos, passo a passo, organizar adequadamente a normativa do direito sucessório brasileiro que havia nos chegado, no início deste século, plena de erros, dúvidas e controvérsias.

Assim, por exemplo, poderíamos perguntar o que teria podido justificar e fundamentar o pensamento do legislador brasileiro, ao decidir-se por não incluir o companheiro na seleção dos contemplados na ordem da vocação hereditária? Foi o que aconteceu, pela dicção do infeliz art. 1.790 CC, que nasceu padecendo da "grave doença" da inconstitucionalidade, e que exigiu da sociedade brasileira, mormente a jurídica, anos a fio de gritos para que esta declaração se desse. Apenas em maio de 2017, por força de julgamento do Recurso Extraordinário 878.694-MG, sob a relatoria do Ministro Roberto Barroso.

Assim também, e por exemplo, o legislador brasileiro, ao escolher implantar no direito sucessório brasileiro o instituto da concorrência sucessória, não previu a comum hipótese de o falecido ter deixado descendentes comuns e descendentes exclusivos, com os quais concorram o cônjuge ou o companheiro sobrevivo. Concorrência sucessória com descendência híbrida do falecido, como cunhamos chamar, assunto sobre o qual tanto nos debruçamos, em esforços enormes a partir de difíceis reflexões matemáticas e algébricas que tendessem a encontrar solução para a repartição justa dos quinhões hereditários entre o cônjuge concorrente e a descendência híbrida do autor da herança. Apenas em junho de 2019, o STJ determinou que a solução seria a de não reservar a quarta parte ao cônjuge ou ao companheiro sobrevivos, quando essa concorrência assim se desse. Esta foi a decisão no julgamento do Recurso Especial 1.617.650-RS, sob a relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino.

Duas grandes conquistas no sentido de esclarecimento e pacificação de tumultuada jurisprudência, ambas situações causadas pela inconsistência legislativa do Código Civil de 2002, mas resolvidas pela corajosa posição de nossas altas Cortes, o nosso STF e o nosso STJ. Seria o suficiente? Francamente, a resposta é não.

Há ainda muito o que se avançar para corrigir o anacronismo da lei, e a indisposição do legislador de observar e analisar a mudança do mundo, da vida e das pessoas que compõem a família. Sem este mais acurado exame, o legislador infraconstitucional não trouxe essas alterações dos fatos sociais familiares e sucessórios para o corpo da codificação.

Este trabalho de matizar contemporaneamente a lei será um trabalho difícil e, às vezes, legislativamente infrutífero.... Provavelmente este trabalho caberá sempre mais à resposta judicial dada aos casos concretos levados às bases dos Tribunais e Cortes, do que exatamente ao próprio Poder Legislativo, como seria de se esperar, certamente...

Com brevidade, desejo mostrar as três situações que ainda merecem a transformação e adaptação da Lei Civil, em matéria sucessória, aos dias atuais, a esta nossa contemporaneidade. 

E assim trago, primeiro, as reflexões a respeito da legítima dos herdeiros necessários: a legítima deve permanecer na lei brasileira tal como está, ou deve ser excluída, tornando ilimitada a liberdade de testar? Ou deve ser mantida, mas com outro perfil mais consentâneo com a realidade, e com outro índice percentual de limitação desta liberdade de testar? 

Trago, também, as reflexões a respeito do tema que não se cala nunca: o companheiro é herdeiro necessário? Vamos nos lembrar que, recentemente tivemos uma excelente oportunidade de encontrar resolvida esta questão, no famoso RE 878.694/MG, sob a relatoria do Ministro Roberto Barroso. Mas, como tão bem sabemos, um dos princípios que rege a atividade decisória do juiz é o princípio da congruência. Foi a adstrição a esse princípio que impediu o Supremo de avançar na discussão do regime sucessório do companheiro, não obstante a provocação do IBDFAM para que Corte se manifestasse acerca da aplicabilidade, às uniões estáveis, do art. 1.845 e de outros dispositivos do Código Civil que conformam o regime sucessório dos cônjuges (EDcl. no RE 878.694/MG). A decisão unânime dos Ministros foi pela rejeição dos embargos de declaração, aduzindo que "não há que se falar em omissão do acórdão embargado por ausência de manifestação com relação ao art. 1.845 ou qualquer outro dispositivo do Código Civil, pois o objeto da repercussão geral reconhecida não os abrangeu. Não houve discussão a respeito da integração do companheiro ao rol de herdeiros necessários, de forma que inexiste omissão a ser sanada" (EDcl. no RE 878.694/MG, STF, relator Ministro Roberto Barroso, dj. 23/10/2018). Acertou o Supremo, mas a questão, infelizmente, permaneceu não resolvida. 

Por derradeiro, ainda registro reflexões a respeito de ser possível, por meio de documento consensual ou por meio de pacto antenupcial, a renúncia antecipada à herança. Seria possível? E assim, teríamos a grande questão: a renúncia antecipada da herança constitui pacto sucessório de sorte a atrair a incidência do art. 426 do Código Civil, para taxá-lo como pacta corvina? A resposta, quer gostemos ou não, é claramente sim. Em tempos de elevado relativismo axiológico e desconsideração (quiçá, desconhecimento) à lei, não se pode simplesmente ignorar um comando legislativo cogente, democraticamente posto e, para todos os efeitos, constitucional. Assim sendo, e sem prejuízo de eventuais propostas de lege ferenda que alterem esse cenário, registro que hoje não é possível a renúncia antecipada da futura herança de uma pessoa ainda viva, por incidência da vedação do art. 426 do Código Civil. 

Como vimos antes, já foram bem significativas as conquistas que obtivemos. Nos dias de hoje, e com olhos postos no futuro, penso que devemos prosseguir em busca soluções para os demais assuntos sobre os quais ainda pendem dúvidas, ou sobre os quais controvérsias se intensificam. Soluções que nos virão, provavelmente, pela via do sempre corajoso Poder Judiciário brasileiro. 

*GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA



















-Advogada graduada pela Faculdade de Direito da USP(1972);
-Professora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP;
-Coordenadora Titular do Programa de Mestrado e Doutorado da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo – FADISP;
-Coordenadora Titular da área de Direito Civil dos cursos de Especialização da Escola Paulista de Direito;
-Fundadora e Diretora Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM;
-Diretora Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Civil – IBDCivil e
-Ex Procuradora Federal.

Nota do Editor:

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