sábado, 6 de maio de 2023

Novos paradigmas para a educação


Ana Machado(*)

Estamos diante de uma crise do sistema educacional no país, que nos conduz a um momento de grandes revisões e busca por novos paradigmas para a educação. O modelo vigente não atende as reais necessidades da sociedade, um modelo que reduz o aluno a um simples futuro candidato a uma vaga no mercado de trabalho cada vez mais competitivo.

Um a cada quatro alunos que inicia o ensino fundamental no Brasil, abandona a escola antes de completar a última série - dado do Relatório de Desenvolvimento 2012, divulgado pelo Pnud - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.

O Brasil tem a terceira maior taxa de abandono escolar entre os 100 países com maior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). Na América Latina, só a Guatemala e Nicarágua tem taxas de evasão superiores.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 1,3 milhão de jovens entre 15 e 17 anos, deixaram a escola sem concluir os estudos, dos quais 52% não concluíram sequer o ensino fundamental. Dentre as causas da evasão, o desinteresse do jovem pelos estudos é apontado como um dos fatores no âmbito escolar.

Mais do que quantificar a extensão dessa crise, precisamos compreender sua profundidade e para isso partimos da análise das seguintes premissas:

 - Visão do ser humano integral

 - Origem da palavra  Educar

 - Autoconhecimento e Autoeducação

Para entender essa integralidade propomos a observação do desenho do Homem Vitruviano de Leonardo Da Vinci , datado de 1490. A que nos remete esta imagem?



- Completude

- Harmonia

 - Equilíbrio

 - Beleza 


A representação das proporções ideias do ser humano no desenho de Leonardo da Vinci, traz a ideia de equilíbrio e harmonia entre as parte
s que compõe o homem, sem privilegiar nenhum aspecto em detrimento do outro.

Dando um salto na História da Arte, propomos um diálogo entre a obra de Leonardo da Vinci e a de Tarsila do Amaral, com o quadro Abaporu de 1928.



A figura humana na obra de Tarsila do Amaral retrata o homem da terra, ligado à natureza. Trata-se do homem do fazer, que caminha, planta, colhe, usa a força física de seus membros superiores e inferiores, e por esta razão apresenta-os bem desenvolvidos. Podemos definir o homem de Tarsila como o homem do fazer, da ação.

Na comparação com o Homem Vitruviano, pode-se perceber a perda das proporções ideais do ser humano.

Contrapondo o homem do fazer de Tarsila do Amaral, na pintura a seguir, de autoria desconhecida, observamos a desproporcionalidade entre cabeça e corpo.

Pela ênfase dada à cabeça, evidencia-se a importância da racionalidade, do intelecto, do desenvolvimento cognitivo expressa pelo artista. Temos aqui o homem que dá ênfase ao lado intelectual.




Este é o homem contemporâneo, que tem na racionalidade sua prioridade e a utiliza como o grande condutor de sua vida.

Formulamos então a pergunta: se no passado o homem desenvolveu seus membros inferiores e superiores privilegiando a capacidade do fazer e hoje ele prioriza o desenvolvimento cognitivo, representado pela cabeça, como fica o desenvolvimento da região toráxica, composta pelo coração e pulmão, que forma seu sistema rítmico?

A visão ampliada do ser humano, proposta pela Antroposofia, concebida pelo filósofo e educador Rudolf Steiner, 1861-1925, considera a espiritualidade parte da constituição do ser humano, assim como também aponta o corpo astral, um corpo de emoções.

Fomos até aqui guiados por uma visão fragmentada do ser humano, precisamos reconstruir sua visão integral como ponto de partida para a Educação, conforme diz o Profº Ruy Cezar do Espírito Santo em O renascimento do Sagrado na Educação: "a inserção da espiritualidade no contexto educacional é essencial". E para que isso aconteça, o primeiro passo é compreender a totalidade da constituição humana.

O reconhecimento da dimensão espiritual do ser humano, coloca-nos diante de grandes desafios como educadores. Considerando as palavras de Huberto Rohden, filósofo, educador e teólogo catarinense (1893-1981):

"Todo homem é muito mais aquilo que é potencialmente do que aquilo que é atualmente [...] Uma semente é potencialmente a planta que dela vai brotar, embora não seja ainda atualmente essa planta. A verdadeira natureza de uma semente de palmeira é a palmeira que dela nascerá. A ‘natura’ é a coisa ‘na(sci)tura’, isto é, aquela coisa que vai nascer. A potencialidade é, pois, a íntima natureza de um ser, a sua verdadeira natura ou natureza"

Pode-se afirmar que como educadores trabalhamos com aquilo que ainda não é visível no educando externamente, e devemos atuar como facilitadores na tarefa de tornar manifesto aquilo que ele carrega dentro de si, sua essência central, objetivar, sua subjetividade.

Como o educador pode estabelecer uma relação com a verdadeira essência do ser ainda não manifesta de modo a facilitar sua exteriorização, e não permitir que a temporalidade das atitudes desarmoniosas externas, interfira negativamente no processo educativo?

Rohden nos instiga ao afirmar que:

"Toda a verdadeira educação consiste em que o homem faça a sua existência à imagem e semelhança da sua essência; que essencialize a sua existência; que verticalize as suas horizontalidades; que divinize a sua humanidade; que faça o seu externo agir tão bom como é o seu interno ser".

Sob a perspectiva do reconhecimento dessa essência central do ser humano, invisível externamente, passemos agora para a compreensão da palavra educar.

Apreender verdadeiramente seu significado nos colocará num patamar mais elevado de entendimento da grandiosidade do papel da Educação.

Etimologicamente educar vem do verbo latim educare, que significa conduzir para fora, ou seja, despertar no homem o que nele se acha dormente. Desta forma, educar não é incutir algo, mas sim propiciar que venha à superfície o que existe dentro.

Paulo Freire diz que: "Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção". Freire cunhou o termo: educação bancária, para denunciar a prática do educador como detentor dos conteúdos que simplesmente são depositados nos educandos.

Esta temática já recorrente, pode ser observada nas citações de outros autores, a exemplo de Plutarco (1844, p.38): "O espírito (a cabeça) não é como uma jarra que se enche. Semelhante às matérias combustíveis, ela tem, antes, necessidade de um alimento que o sacie, que aqueça suas faculdades e anime o espírito para a busca da verdade".

Johann Heinrich Pestalozzi, educador suíço (1746-1827), também discorre a respeito dizendo que o educando não é semelhante a "um vaso vazio que se deve encher" acrescenta ainda que o educando é: "uma força real, viva, ativa por si mesma que, desde o primeiro momento da sua existência age no sentido de um corpo orgânico sobre seu próprio desenvolvimento" (PESTALOZZI, 2009, p. 160). Esta afirmação abre uma janela importante que deve ser explorada reconhecendo que cada ser humano carrega em si potencialidades, e são com essas potencialidades que o educador trabalhará, no sentido de despertá-las e trazê-las para fora.

Da mesma forma que Rohden (2005, p.13) diz: "...dentro de cada um de nós existe algo maior e melhor do que aquilo que existe fora de nós. O homem é muito mais aquilo que pode vir a ser e deseja ser do que aquilo que é no plano histórico da sua vida. O homem é a sua permanente e silenciosa atitude interna, e não os seus ruidosos atos externos e transitórios. O homem é a sua eterna potencialidade, e não apenas a sua atualidade temporal."

Convém agora perguntar: Qual a qualidade do olhar que precisamos desenvolver para enxergar e confiar na essência não manifesta de uma criança?

Tomemos como referência a vida de Cristo que em toda sua trajetória demonstrou compaixão e ofereceu um olhar atento e individualizado a todos que dele se aproximavam. Qual a qualidade do olhar de Cristo?

Um olhar capaz de alcançar a essência do ser humano, um olhar fluídico, que não se fixa em um único ponto. Um olhar penetrante, de longo alcance, livre de julgamentos e preconceitos, que enxerga a necessidade humana individualizada. Um olhar que se renova a cada dia, criando novas possibilidades de vir a ser. Um olhar profético, capaz de alcançar o futuro, independente das circunstâncias adversas do momento presente, que vê além das aparências e comportamento em si.

Certas crianças encontram-se prisioneiras de um olhar cristalizado e estigmatizante, um olhar viciado, que enxerga as mesmas coisas sempre, e que, portanto, não estimula, não favorece a manifestação de suas potencialidades, pelo contrário, reforça atos externos que não expressam sua essência interior.

Cabe aqui uma citação de Wolfgang von Goethe que demonstra a relevância da relação que deve ser estabelecida com o que ainda não se manifestou: "Trate um homem como ele é e ele permanecerá como é; trate-o como ele deve ser e ele será como pode e deve ser."

Identificamos pela abordagem dos autores citados, a necessidade de um trabalho apurado de autoconhecimento e autoeducação daqueles que se dispõem ao exercício da docência.

Para a compreensão da relevância da autoeducação, analisemos o pensamento de Steiner:

"Não há, basicamente, em nenhum nível, uma outra educação que não seja a auto-educação. [...] Toda educação é autoeducação e nós, como professores e educadores, somos, em realidade, apenas o entorno da criança educando-se a si própria. Devemos criar o mais propício ambiente para que a criança se eduque junto a nós, da maneira como ela precisa educar-se por meio de seu destino interior."

Podemos entender ‘destino interior’ como a essência central distinta, individual do ser humano.

Paulo Freire também fala que é necessário se educar para educar e que se educar é impregnar de sentido cada momento da vida, cada ato do cotidiano.

Portanto, eu educo o outro, educando a mim mesmo, e o que faço enquanto educador, é criar o ambiente favorável em volta da criança, proporcionando assim condições por meio das quais a própria criança se revele.

Como um jardineiro, nossa tarefa é encontrar as condições adequadas para cada tipo de semente, o tipo certo de solo, o adubo adequado, a proteção e irrigação corretas, achar os ingredientes apropriados que darão suporte e força a semente, para que ela brote, surja para fora, emerja sua natureza e cresça formosa.

Levando em conta que uma das características marcantes da criança é sua capacidade imitativa, podemos ressaltar a importância de modelos adequados de homens e mulheres em torno da criança como espelhamento de seres humanos íntegros. A criança não repete apenas a fala, o movimento e gestual do adulto, ela é capaz de assimilar o que o educador é, e assim reproduzir sua maneira de viver. E mais tarde, quando adolescente, de forma contumaz, procurará a veracidade nos educadores, tutores e pais, por meio da comparação entre o que esses falam e suas ações, seu jeito de se colocar no mundo, de ser e viver.

Por esta razão o educador, como referencial para a criança, adolescente e jovem, tem grande responsabilidade, pois atua no campo ético moral. Daí a importância do seu trabalho constante de autoconhecimento, como instrumento de revisão, aprimoramento e desenvolvimento humano, como processo de construção de si mesmo, num contínuo explorar-se, conhecer-se, transformar-se.

Enquanto educadores, precisamos nos tornar modelos mais adequados para as novas gerações que iniciam seus processos de construção de seres humanos no mundo.

A ARTE COMO CAMINHO DE REENCANTAMENTO DA EDUCAÇÃO

A educação convencional que vem se perpetuando, está fundamentada numa concepção materialista, cientificista, mecanicista, pautada na transmissão de conhecimento e informação. Vem privilegiando o desenvolvimento do lado cognitivo, deixando em segundo plano o corpo e a alma da criança. Isto porque o homem moderno tem endeusado a abstração, a fórmula, a quantificação e os avanços tecnológicos.

A partir da concepção do ser humano integral, não podemos mais fundamentar o sistema educacional levando em conta apenas uma parte do que é o homem. Precisamos educar na/para inteireza.

Precisamos educar para a vida, abarcar o coração do homem no processo educativo, considerando seus sentimentos, emoções, relações. É necessário trazer para a educação temas essenciais, como o amor, a alegria, solidariedade, gentileza, temas estes que a racionalidade moderna não comporta por não conseguir explica-los cientificamente.

Precisamos reencantar a educação, com uma linguagem que fale à alma da criança, por meio de vivências artísticas, estéticas. A arte é o caminho que permite o desenvolvimento harmônico da criança, porque é a linguagem do coração. Ela permeia a razão e a conecta com o lado anímico da criança, fortalecendo a sua vontade, o seu fazer no mundo, e suas interações com o mundo.

A expressão artística, seja pela pintura, modelagem, dança, teatro, poesia, música, etc., desperta a consciência do mundo interior de cada ser, faz a ponte entre o lado intelectual humano e sua capacidade de ação, possibilita a criação de algo resultante da sua imaginação e fantasia.

Rudolf Steiner afirma que: "A pedagogia não pode ser uma ciência – deve ser uma arte". Educação é arte. Que possamos nos sentir inspirados para fazer uma nova escola, fundamentada no respeito à totalidade do ser humano, na confiança do desenvolvimento e aprimoramento das potencialidades humanas.

Esta nova escola começa dentro de cada educador, na sala de aula, olhando nos olhos dos alunos e promovendo encontros verdadeiros.

Como síntese desta reflexão, fica aqui a poesia do Profº Ruy Cezar do Espírito Santo:

A Grande Transformação

Buscar a fonte da inspiração artística

É dirigir-se ao mais dentro do Homem

À Fonte única que de forma original

Derrama o fruto da sua percepção

Encontrar essa Fonte

É desvelar a possibilidade do Amor

É trazer o Homem novamente aos dez anos,

De onde se afastou pelo que chamamos de "educação"...

O Amor dissipou-se no instante em que o "jovem de 10 anos"

Sentiu-se perdido nos labirintos escolares,

Onde cabeças sem coração são "formadas"

Sem a presença da Arte...

Assim, resgatar a Arte

É redescobri a Fonte interior de Alegria e Amor...

É voltar aos dez anos, desta vez

Ciente do sentido e da significação da existência.

*ANA LUCIA MACHADO















Pós-graduada em Deficiência Intelectual pelo Instituto APAE de São Paulo/Unifenas.

Especialização em Transdisciplinariedade em Educação, Saúde, Liderança e Cultura de Paz pela UNIPAZ, e em Pedagogia Waldorf pelo Centro de Formação de professores Waldorf de São Paulo.

Graduada em Relações Públicas pela Faculdade Cásper Líbero.

 -Autora dos livros Clarear – a pedagogia Waldorf em debate, “A Turma da Floresta uma brincadeira puxa outra e ‘Livro do Educador brincando com a natureza’; 

-Fundadora da plataforma digital educandotudo muda.com.br, coordenadora do projeto natureza em família – Playoutside: Alegria de Brincar na Natureza. Membro da Aliança pela Infância, e da Rede Nacional Primeira Infância. 

Site: www.educandotudomuda.com.br  

Contato: analucianaturalarte@yahoo.com.br

Email: analucianaturalarte@yahoo.com.br

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Nota do Editor:


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