terça-feira, 19 de setembro de 2023

Cessão de Crédito Trabalhista


Autora: Ana Celina Siqueira (*)

A cessão de crédito, instituto do Direito Civil que permite que o credor transfira seu direito a um terceiro, foi, por longo tempo, considerada inaplicável na Justiça do Trabalho, tendo sido até mesmo expressamente proibida por um determinado período.

No entanto, alterações normativas e o avanço da jurisprudência, fruto da nova realidade das relações de trabalho, estão concorrendo para mudar esse panorama.

Inicialmente, o Provimento n. 2 da Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho, de 17 de maio de 2000, estabelecia que "os créditos do trabalhador apurados em reclamação trabalhista, além de impenhoráveis, não podem ser objeto de cessão.". Porém, já em dezembro do mesmo ano, com a publicação do Provimento n. 6, essa determinação foi revogada, ficando estabelecido que "A cessão de crédito prevista em lei (artigo 1065 do Código Civil) é juridicamente possível, não podendo, porém, ser operacionalizada no âmbito da Justiça do Trabalho, sendo como é um negócio jurídico entre empregado e terceiro que não se coloca em quaisquer dos pólos da relação processual trabalhista. "

A modulação da redação proibitiva foi suficiente para ensejar divergência sobre o tema, porquanto a nova redação permitiu diferenciar a cessão do direito trabalhista da cessão do crédito trabalhista. O direito seria irrenunciável e, portanto, não suscetível de transferência a terceiro, porém o crédito, por corresponder à expressão monetária do direito, seria passível negociação. Preponderava, ainda, a corrente que defende que o caráter irrenunciável dos direitos trabalhistas obsta a cessão de crédito deles decorrente, nos próprios termos do artigo 286 do Código Civil, que veda a cessão quando a natureza da obrigação não permitir.

Merece ser registrada a alteração ocorrida quando da publicação da Consolidação dos Provimentos da Corregedoria da Justiça do Trabalho em 28 de outubro de 2008 que passou a prever em seu artigo 100 que "a cessão de crédito prevista no artigo 286 do Código Civil não se aplica na Justiça do Trabalho". A partir daí, o debate recrudesceu e diversas decisões foram proferidas no sentido de não reconhecer eficácia à cessão de crédito trabalhista no âmbito da Justiça do Trabalho ao fundamento de que a ela não competiria verificar a validade ou não do negócio jurídico considerado de natureza essencialmente civil. Argumentou-se que esse tratamento poderia gerar situação de insegurança jurídica por permitir que o cessionário do crédito o pleiteasse na Justiça Comum em face do mesmo devedor da ação trabalhista, uma vez que a cessão não geraria efeito no processo do trabalho nem autorizaria a substituição processual do credor primitivo pelo cessionário.

Com a publicação da Consolidação dos Provimentos da Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho, em 17 de agosto de 2012, o Tribunal Superior do Trabalho deixou de disciplinar a matéria, suprimindo qualquer referência expressa em seus normativos internos, situação mantida até o momento.

À exclusão da proibição expressa ou das restrições à validade da cessão de crédito trabalhista na Consolidação dos Provimentos da Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho vieram se somar alterações legislativas, tais como as trazidas pela  Lei 14.112/2020, que estabeleceu que os créditos cedidos a qualquer título no processo de falência mantêm sua natureza e classificação quanto à ordem de pagamento, na esteira do que já estabelecia a Emenda Constitucional n. 62/2009 no tocante aos precatórios. Nos termos do artigo 100, § 13, da Constituição Federal, o credor de crédito em precatório poderá cedê-lo a terceiro, porém, nesse caso, não se aplica a preferência concedida aos precatórios de natureza alimentar, de onde se conclui pela possibilidade da cessão de crédito alimentar em precatório.

Tudo isso contribuiu para fortalecer a tese favorável à admissão da cessão e assim chegamos às recentes decisões do Tribunal Superior do Trabalho que expressamente admitem a cessão de créditos trabalhistas.

No processo AIRR 820-23.2015.5.06.0221, o Ministro Douglas Alencar Rodrigues, não obstante ter negado o pedido da ação por ausência de pressuposto processual, deixou expressamente consignado ser possível a cessão de créditos trabalhistas.

No mesmo sentido posicionou-se também o Ministro Agra Belmonte, no julgamento do processo AIRR 1000508-86.2018.5.02.0075, ao deferir pedido de sucessão processual da Explorer II Fundo de Investimento em Direitos Creditórios não Padronizados como credora dos valores devidos a um vigilante de São Paulo. Os créditos haviam sido cedidos pelo trabalhador à Pro Soluti Consultoria e Investimentos em Ativos Judiciais que, por sua vez, os cedeu à Explorer, ficando o vigilante excluído da ação. Em decisão monocrática, o Ministro Agra Belmonte esposou a tese da pertinência da aplicação do Código Civil ao caso e assinalou que a cessão de crédito trabalhista está prevista no artigo 83, parágrafo 5° da Lei de Falências (Lei 11.101/2005) e na Lei 14.193/2021 que instituiu a Sociedade Anônima do Futebol. Agra Belmonte considerou que a cessão de crédito devidamente constituído em juízo não configura renúncia a direitos trabalhistas e que, "desde que observados os requisitos de validade do negócio jurídico, é uma ferramenta a ser utilizada por aquele trabalhador que, diante da demora na resolução da ação, necessita satisfazer com maior urgências as suas necessidades".

Com estas considerações, não se pretende esgotar o tema mas, ao contrário, suscitar a reflexão sobre assunto que há de ensejar desdobramentos importantes, dentre os quais atuação de empresas e fundos de investimento constituídos exatamente com o objetivo de atuar nesse novo nicho do mercado.

*ANA CELINA RIBEIRO CIANCIO SIQUEIRA




 





-Graduação em Direito  pela Faculdade de Direito da USP (1973);

-Analista Judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 2a.Região (1993);

-Secretária - Geral Judiciária do TRT da 2a.Região (2004);

 - Secretária do Tribunal Pleno do TRT da 2a Região (2004); e

- Comendadora da Ordem do Mérito Judiciário do Trabalho da 2a.Região (2005)

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