A gratuidade de justiça originou-se do Projeto de Lei 1433/48, elaborado pela Comissão Mista de Leis Complementares do Congresso Nacional, que foi aprovado e transformado na Lei 1.060 de 5 de fevereiro de 1950, sancionada pelo Presidente Dutra ([1]). Trata-se de Lei regulando o inciso 35 do artigo 141 do Capítulo II, que tratava dos "Direitos e Garantias Individuais"na Constituição Federal de 1946.
Sem sombra de dúvida trata-se de norma destinada a assegurar justiça social, possibilitando o acesso de todas as pessoas à Justiça, e não só àqueles que podem pagar para ver seus direitos examinados pelo Judiciário.
O texto primitivo da Lei 1060/50, porém, estabelecia que:
" Art. 4º A parte, que pretender gozar os benefícios da assistência judiciária, requererá ao Juiz competente que lhos conceda, mencionando, na petição, o rendimento ou vencimento que percebe e os encargos próprios e os da família.§ 1º A petição será instruída por um atestado de que conste ser o requerente necessitado, não podendo pagar as despesas do processo. Este documento será expedido, isento de selos e emolumentos, pela autoridade policial ou pelo Prefeito municipal.§ 2º Nas capitais dos Estados e no Distrito Federal, o atestado da competência do Prefeito poderá ser expedido por autoridade expressamente designada pelo mesmo."
Ou seja, cabia ao requerente provar sua necessidade da gratuidade de custas e despesas processuais, as quais abrangiam, segundo o texto original da Lei:
Ocorre que o Código de Processo Civil, que derrogou parte da Lei anterior, estabelece em seu artigo 99 que:
"Art. 99. O pedido de gratuidade da justiça pode ser formulado na petição inicial, na contestação, na petição para ingresso de terceiro no processo ou em recurso.
§ 1º Se superveniente à primeira manifestação da parte na instância, o pedido poderá ser formulado por petição simples, nos autos do próprio processo, e não suspenderá seu curso.
§ 2º O juiz somente poderá indeferir o pedido se houver nos autos elementos que evidenciem a falta dos pressupostos legais para a concessão de gratuidade, devendo, antes de indeferir o pedido, determinar à parte a comprovação do preenchimento dos referidos pressupostos.
§ 3º Presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural.
§ 4º A assistência do requerente por advogado particular não impede a concessão de gratuidade da justiça"
Ou seja, se o requerente do benefício for pessoa física ([2]) não precisa mais fazer prova de sua necessidade, cabendo à parte contrária, se quiser, formular impugnação (artigo 100 do CPC), numa inversão, a nosso ver, absurda do ônus processual.
Com efeito, a jurisprudência majoritária tem se orientado no sentido de que basta a declaração da parte, para que o benefício seja concedido.
Muito embora o parágrafo único do artigo 100 do CPC, em caso de má-fé do requerente, estabeleça uma multa equivalente ao décuplo das despesas que tiver deixado de adiantar, além da sujeição a processo crime por declaração falsa a parte contrária que pretenda a revogação do benefício, enfrenta dificuldades praticamente intransponíveis para provar a falta de necessidade do requerente.
Como a Lei não fixa um critério objetivo para a concessão do benefício, infelizmente, a desonestidade impera, em grande parte dos casos. Mesmo quando deferida pelo Juiz, a pedido do impugnante, a exibição de declarações de renda, extratos bancários e de cartão de crédito (o que dificilmente ocorre), o que se vê, na prática forense, é que há inúmeros "demandistas", que ocultam patrimônio e renda, pleiteiam e obtêm o benefício.
E é aí que reside a gravidade da questão: a isenção das verbas de sucumbência escancarou as portas para o abuso de direito, quando o requerente do benefício é Autor da ação.
O que se verifica, na prática forense, é que o número de ações com pedidos milionários, de procedência duvidosa, em que o Autor requer o benefício da gratuidade de justiça, tem aumentado substancialmente, já que isento de ter que fazer face às despesas e ônus sucumbenciais, especialmente honorários da parte adversa. Com isso, os pedidos mais estapafúrdios pipocam em juízo, causando prejuízo não só ao erário público e à parte contrária, que se vê obrigada a defender-se, como o atravancamento do Judiciário.
No Relatório do CNJ, "A Justiça em números 2019" lê-se:
"A concessão da AJG tem crescido ao longo dos últimos 4 anos, quando o índice passou a ser calculado. O índice foi de 27% em 2015, de 32% em 2016, 33% em 2017 e de 34% em 2018, ou seja, um aumento de 6,7 pontos percentuais no período. (p. 84)
Os gastos com assistência judiciária gratuita equivalem a 1,09% do total das despesas do Poder Judiciário, ao custo de R$4,91 por habitante. Os Tribunais Regionais Federais possuem os maiores gastos com assistência judiciária gratuita, proporcionalmente às suas despesas, e os tribunais de justiça, os maiores gastos por habitante. (p. 86) ([3])."
Observe-se que gratuidade de justiça e assistência judiciária não são exatamente a mesma coisa, já que a segunda inclui o pagamento, pelo Estado, de advogado para a parte, porém, o Relatório acima referido, trata dos gastos gerais com a gratuidade judiciária, além de apenas listar os casos solucionados, durante cada período, não mencionando aqueles em curso.
De qualquer modo, a nosso ver, esse aumento não reflete apenas o aumento de demandas "normais", mas também aquelas propostas por indivíduos que, titulares de direitos duvidosos ou até sem direito algum que, - beneficiados pela gratuidade - se aventuram em lides temerárias, principalmente ações de indenização das mais diversas, quase sempre com pedidos cumulados de danos morais absurdos, incentivados pelo fato de não terem nada a perder.
Está na hora de reformular o instituto, para fixar critérios objetivos e proteger quem realmente precisa da proteção do Estado.
REFERÊNCIAS
[1] Fac simile da tramitação do projeto pode ser visto em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1226501&filename=Dossie+-PL+1433/1948
[2] No caso de pessoas jurídica a prova deve ser feita juntamente com o pedido (Súmula 481 do STJ – Faz jus ao benefício da justiça gratuita a pessoa jurídica com ou sem fins lucrativos que demonstrar sua impossibilidade de arcar com os encargos processuais)
[3] Vide resumo em https://www.cnj.jus.br/maior-parte-dos-brasileiros-e-atendida-por-juizos-unicos/
BATUIRA ROGERIO MENEGHESSO LINO
BATUIRA ROGERIO MENEGHESSO LINO
-Advogado em São Paulo;
-Graduado em 1972 pela USP;
-Atuando na área de consultivo e contencioso cível;
-É sócio do escritório Lino, Beraldi e Belluzzo Advogados.
E-mail: lino@lbba.com.br
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