domingo, 29 de novembro de 2020

Corpos fabricados que corrompem a potência de criação


 Autora: Fabiana Benetti(*)


Introdução 

Como podemos transmitir a cultura de formas menos narcísicas? Forma essa, que perde a substância dos acontecimentos na vida e da continuidade temporal, onde a modalidade afetiva se apresenta mais nas satisfações imediatas que cede espaço à imagem e ao som. Onde a palavra perde relevância como apoio do pensamento, da subjetividade, da intersubjetividade e do vínculo. Esta forma faz surgir sujeitos mais indiferentes à potência que abarca o movimento da elaboração e criação de símbolos e, consequentemente, realidades, como também sujeitos mais ligados à estética e poder, que fomentam a competitividade e o apagamento das diferenças singulares dos indivíduos. Sujeitos estes que não suportam as frustrações que os processos de vínculos fazem nascer. 

Como podemos ampliar modos de relações e existências mais potentes na qual estamos vivendo atualmente em plena pandemia, que também nos traz a possibilidade de nos reorganizarmos frente ao caos do corpo e desses valores que também os produzem? 

Espinosa [(1632-1677)ed.2013,p.236] no seu livro Ética, nos elucida: "Assim, esforçamo-nos, nesta vida sobretudo, para que o corpo de nossa infância se transforme, tanto quanto o permite a sua natureza e tanto quanto lhe seja conveniente, em um outro corpo, que seja capaz de muitas coisas e que esteja referido a uma mente que tenha extrema consciência de si mesma, de Deus e das coisas." Na obra desse autor, ele afirma que o corpo é a potência do corpo, que é o esforço do corpo para se compor com outros corpos, para fazer querer e agir. Deus, nesse contexto, se apresenta como potência de perseverar a natureza que se esforça para criar e existir. 

A partir da perspectiva que a vida é sentida pelo corpo, muitas vezes esta percepção se perde nas distorções trazidas pelas crenças narcísicas que desenham as relações humanas nas quais acabam perdendo a força do criar novos agenciamentos para diferentes composições. Cumprem assim uma impressão que reproduz conjugações automáticas, formatadas e familiares, hierárquicas, poderosas e despotencializadas. Elas acabam por obnubilar as coexistências possíveis e criativas entre as diferenças, outras linguagens, com outras formas de captura pelo conteúdo simbólico e que formam e informam realidades diversas, criando modos singulares de expressão, que abrem novas realidades, composições, relações, encontros e criações. 

O vírus 

Pense-se no trabalho de Felix Guatarri na clínica de La Borde em 1955. Ele buscou formas de terapia política que trouxessem um verdadeiro campo experimental para uma série de propostas psiquiátricas modernas, alternativas e revolucionárias, usadas até hoje. Essa clínica não tratava apenas os indivíduos, mas também os sistemas, as instituições, as configurações de poder que muitas vezes esvaziam nossas potências singulares. Configurações que se revelam de forma bem concreta nesse momento de pandemia, como reflexo e sintoma dessa organização falha e tão viciada no poder. 

Estamos vivendo o não saber de um vírus fabricado pelo modo humano de viver. O mundo se fragiliza pelo não saber o que fazer: aí, o corpo se apresenta com a falta de simbolização frente ao trauma* que traz uma resposta de repressão (Covid) da condição que nos criamos. O corpo que reage de inúmeras formas, dependendo da saúde biopoliticopsicosocial e fratura narcísica. O corpo se torna falível ao vírus. O vírus atua em cada pessoa de acordo com seu modo de subjetivação. Esse vírus parece que impacta de acordo com a condição que o sujeito ja estava vivendo antes do vírus. 

O predomínio de uma relação dual narcísica nas relações contemporâneas é um fato, sendo que o vínculo intersubjetivo, que envolve consciências singulares só se tornará possível na medida em que se passe a uma configuração múltipla e horizontal (não hierárquica), constituída pelo eu, os outros e as infinitas possibilidades de composição disto. Sabemos que a falta de controlarmos o que se apresenta dessas composições, através dessa subjetivação apoiada no patriarcado, Ao pensar que suprimos de forma absoluta o espaço infinito das possíveis e impossíveis conexões, estamos enquadrando a vida humana de modo dual, binário, em ideais preestabelecidas a partir de um saber não sujeito a dúvida, desta forma fomos pegos de surpresa pelo vírus, que nos coloca num estado de dúvida e vulnerabilidade, tratando com o campo da morte, desconstruindo o poder absoluto do que dá acesso à imortalidade. 

Gênero 

Sobre o dispositivo de gênero (feminino- masculino): ele domina as representações em nossas subjetividades. Ele produz uma identidade cultural que traz uma linguagem, uma estética, uma realidade psíquica, sexual, política e social na formatação de modos de expressão e existência – normalmente fundamentada pela transmissão narcísica da família hetero privatizada, sagrada, idealizada. Nesse modo em que se habita, imprime-se uma moldura sobre os modos de desejar possíveis dentro da lei sobre como é ser homem ou mulher e uma família, nessa civilização que se apoia em um sistema de gênero binário- tomado como saudável e original- que inibe o inconsciente que tem a vontade de potência. Segundo Deleuze e Guatarri (O Anti-Édipo Ed.2010, p.373): "O inconsciente diz respeito à física; não é absolutamente por metáfora que o corpo sem orgãos e as suas intensidades são a própria matéria". " Inconsciente das máquinas desejantes- relação necessária entre forças inextrincavelmente ligadas, sendo uma das forças elementares através das quais o inconsciente se produz."(p.374) 

Muitas reproduções maquínicas de modos tecnocapitalistas se apoiam em jogos e corpos binários (masculino e feminino) como modelos estéticos e de linguagem que afirmam a normalidade. Assim se faz uma sociedade precisar da ciência e medicina para curar a patologia, mas o individuo não cabe na padronização de lugares que nós, frutos do colonialismo europeu, machista, branco, hetero, capitalista, criamos e reproduzimos. Nessas molduras sociais se encaixem indivíduos patologizados e colocados como minoria pelo fato de não entrarem nessas opções biopolíticas (práticas disciplinares que visam o corpo de uma população), dadas por essas molduras hierárquicas e cheias de poderes. 

Ainda hoje, nossa cultura arrasta o patriarcado como referência que se orienta pelo dispositivo de gênero, que se apoia na crença sobre o quanto a anatomia ainda determina o gênero e a identidade sexual do sujeito, achata a complexidade da singularidade da sexualidade individual de cada ser humano, que vai para além das ficções somáticas Masculino e feminino como definições únicas de modo de ser. Masculino e feminino são termos sem conteúdo empírico, mas sim se apresentam como verdades científicas que se apoiam em um critério de reconhecimento do "objeto de forma visível e material". Assim as metáforas sobre o naturalismo sexual (o que é masculino e feminino) são fabricadas como um sistema, que movimenta os ideais biopolíticos como códigos normativos de reconhecimento visual sobre o pênis (masculino) e a vagina (feminino) da pessoa. Isto resulta numa produção de subjetividade, produtos de indústria governamental, pública, midiática, farmacológica, entre outras. 

Em 1950, aquele modelo passou a ser confrontado com a ascensão política do feminismo e dos discursos sobre homossexualidade. Ela surgiu como resistência ao regime, que considerava como verdadeiro o sexo natural, definitivo, imutável e transcendental. Ainda hoje, porém, o feminismo perde de vista a subjetividade implicada num gênero e na sexualidade como construção simbólica, cultural, formatada dentro de apenas dois modos de expressão. Infelizmente, ainda em cada êxito feminista se seguiu um retrocesso. A cada golpe feminino, um contra golpe social destinado a domar os impulsos centrífugos da liberação do dever-ser-da-mulher não foi desconstruído. 

Especialmente no que diz respeito à diferença social, cultural e política, o feminismo ainda apenas reage à opressão do machismo, com intuito ainda de se afirmar em sua existência. Contudo ele investe em um embasamento de uma sexualidade normativa que visa o gênero, pela violência do poder entre as diferenças, a mulher ainda tem medo de perder a estabilidade de uma categoria que a faz existir: "a de mulher", "a de mãe". Contudo, o feminismo entra como anestésico na vivência sob o patriarcado, apoiando assim uma subjetividade poderosa e bilateral, como um programa operacional capaz de desencadear muitas percepções sensoriais sob a forma de afetos, desejos, ações, crenças e identidades que não consideram um gênero neutro. 

Enquanto reproduzirmos essa cultura de procriar os mesmos padrões, sempre que o gênero se enuncia, deixam de ser criadas novas perspectivas sobre o corpo e a sexualidade. 

Segundo Judith Butler: "o gênero é um sistema de regras, convenções, normas sociais e práticas institucionais que produz performaticamente o sujeito. Sublinhando que o gênero não pode ser mais considerado como uma essência ou uma verdade psicológica, mas como uma pratica discursiva, corporal e performativa por meio da qual o sujeito adquire inteligibilidade social e reconhecimento político." ( Corpos que importam, ed.2019, p.233) 

Quando um corpo humano abandona as práticas estéticas que abarcam uma posição biopoliticopsicosocial para se afirmar em sua potência, desindentificando-se da identidade sexual para uma multiplicidade de desejos, práticas e estéticas, ele experimenta novas sensibilidades e linguagens, novas formas de vidas coletivas e de alianças afetivas. Desta forma, amplia-se a subjetividade para infinitas formas de amar, deixando de lado o alegadamente indiscutível modo político Cis de se viver. Contudo, esse corpo humano pode experimentar uma permuta de prazeres e de descarga sexual, regulada mais pela excitação molecular, cartografando mapas de conexões, circuitos, movimentos, intensidades, velocidades, reflexos, convulsões e tremores que abrem um tempo de acontecimento de produção de afetos. O corpo é a casa de nossa potência que se movimenta para se afirmar e se expressar como passagem e extensão de novos corpos e criações de outros corpos/espaços.

O sexo em expansão de territórios não privatizados investe na produção do inconsciente maquínico, que se manifesta em diversos modos de composição, conjugação e criação nas relações. 

(*)FABIANA BENETTI

-Psicóloga, psicanalista, especialista em psicossomática e esquizoanalista;
-Psicóloga graduada pela Universidade Paulista(1997);
-Aprimoramento em Analises do comportamento aplicado(ABA) United Response ,Londres,2001; 
-Pós Graduada em Cross Cultural Psychology pela Brunel University em  Londres, 2002;
-Atendimento em consultório particular em São Paulo-Tel/what´s 11 985363035.
-Membro do Departamento de Psicossomática do Instituto Sedes Sapientiae;e
-Agenciamento  em Filosofia e Esquizoanálise com Peter Pál Pelbart e Luiz Fuganti.

Nota do Editor:


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