Autor: Daniel Zveibil(*)
Dentre as tarefas atribuídas às Forças Armadas previstas no art. 142 da Constituição de 1988, fora objeto de grande controvérsia na última Presidência da República(2018-2022) a que seguir destacamos:
"Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem" [EM DESTAQUE].
A obra intitulada "A competência das Forças Armadas segundo o art. 142 da Constituição de 1988" coordenada por Marcelo Porciuncula e publicada pela Marcial Pons em 2022 é bem representativa dessa controvérsia por reunir posições francamente divergentes.
Posicionando as Forças Armadas como “Poder Moderador” em nossa República, parcela de juristas seguem a tese de Ives Gandra da Silva Martins:
"Em palestras posteriores, ao explicitar meu pensamento, inclusive nas aulas para a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, esclareci que, se houvesse um conflito entre o Poder Executivo e qualquer dos outros poderes com claro ferimento da Lei Maior, sem outro remédio constitucional, o presidente não poderia comandar as Forças Armadas na solução da questão, se fosse o poder solicitante, e, pois, parte do problema. Nessa hipótese, caberia aos comandantes das Três Armas a reposição da lei e da ordem. Por fim, sempre expus em palestras que a reposição da lei e da ordem seria pontual, isto é, naquele ponto rompido, sem que as instituições democráticas fossem abaladas."
(Artigo intitulado Minha interpretação do artigo 142 da Constituição Federal, disponível na impressa obra mencionada, ou na Revista Conjur em: https://www.conjur.com.br/2021-ago-27/ives-gandra-minha-interpretacao-artigo-142-constituicao)
Em acréscimo a este ponto de vista, Ives Gandra da Silva Martins nega que a terceira atribuição confunda-se com a segunda acima transcritas no art. 142 da Constituição de 1988, expondo exemplo que a seu ver demandaria intervenção pontual das Forças Armadas:
"Minha interpretação, há 31 anos, manifestada para alunos da universidade, em livros, conferências, artigos jornalísticos, rádio e televisão é que NO CAPÍTULO PARA A DEFESA DA DEMOCRACIA, DO ESTADO E DE SUAS INSTITUIÇÕES, se um Poder sentir-se atropelado por outro, poderá solicitar às Forças Armadas que ajam como Poder Moderador para repor, NAQUELE PONTO, A LEI E A ORDEM, se esta, realmente, tiver sido ferida pelo Poder em conflito com o postulante."Alguns juristas defendem a tese que a terceira atribuição e a segunda se confundem, pois para garantir as instituições, necessariamente, estarão as Forças Armadas garantindo a lei e a ordem, já que o único Poder Moderador seria o Judiciário.Parece-me incorreta tal exegese, muito embora eu sempre respeite as opiniões contrárias em matéria de Direito. Tinha até mesmo o hábito de provocar meus alunos de pós graduação da Universidade Mackenzie a divergirem de meus escritos, dando boas notas àqueles que bem fundamentassem suas posições. É que não haveria sentido de o constituinte usar um "pleonasmo enfático" no artigo 142 da Carta Magna, visto que a Lei Suprema não pode conter palavras inúteis.A própria menção à solicitação de Poder para garantir a lei e a ordem sinaliza uma garantia distinta daquela que estaria já na função de assegurar os poderes constitucionais, como atribuição das Forças Armadas.Exemplifico: vamos admitir que, declarando a inconstitucionalidade por omissão do Parlamento, que é atribuição do STF, o STF decidisse fazer a lei que o Congresso deveria fazer e não fez, violando o disposto no artigo 103, parágrafo 2º, assim redigido:Art. 103. (...) § 2º Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias."Ora, se o Congresso contestasse tal invasão de competência não poderia recorrer ao próprio STF invasor, apesar de ter pelo artigo 49, inciso XI, a obrigação de zelar por sua competência normativa perante os outros Poderes. Tem o dispositivo a seguinte redação:Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:(...) XI - zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes;Pelo artigo 142 da CF/88 caberia ao Congresso recorrer às Forças Armadas para reposição da lei (CF) e da ordem, não dando eficácia àquela norma que caberia apenas e tão somente ao Congresso redigir. Sua atuação seria, pois, pontual. Jamais para romper, mas para repor a lei e a ordem tisnada pela Suprema Corte, nada obstante — tenho dito e repetido — constituída, no Brasil, de brilhantes e ilustrados juristas."(Artigo intitulado Cabe às Forças Armadas moderar os conflitos entre os Poderes, disponível na impressa obra mencionada, ou na Revista Conjur em: https://www.conjur.com.br/2020-mai-28/ives-gandra-artigo-142-constituicao-brasileira)
Seguimos a corrente divergente, que nega às Forças Armadas o papel de "Poder Moderador".
A ideia de "Poder de Estado" guarda como pressuposto a separação do exercício do poder político, e tal separação assenta-se na desconfiança histórica que se formou na hipótese de haver excessiva concentração de poderes facilitadora de arbitrariedades e de abusos de poder.
Não faz sentido que a marca principal das Forças Armadas seja a subalternidade – “Art. 142. (...) são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina [DESTACADO] (...)” – e, contudo, sejam admitidas as três Forças como elemento do sistema de freios e contrapesos. Menos sentido ainda faz ao se reconhecer tamanha importância das Forças como suposto elemento no sistema de freios e contrapesos, a ponto de se lhes atribuir delicadíssima competência constitucional para resolução de conflitos de atribuições entre os Poderes do Estado.
A par de não existir uma única linha na Constituição Federal sobre autonomia constitucional das Forças Armadas, mínimo necessário para pertencer ao sistema de freios e contrapesos, não há como extrair da parte final do art. 142 da Constituição essa tarefa constitucional mediadora de conflitos entre Poderes do Estado.
O Poder Moderador existiu formalmente em nossa fase monárquica, previsto no art. 98 da Constituição de 1824 com a seguinte redação: "Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organisação Politica, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independencia, equilibrio, e harmonia dos demais Poderes Politicos."
Na parte final do dispositivo, percebe-se que o Moderador guardava como uma de suas funções cuidar da independência, equilíbrio e harmonia dos outros Poderes Políticos. Contudo, quem exercia o Poder Moderador era o Imperador segundo o longo art. 101 dessa mesma Constituição, detalhando inúmeras tarefas formadoras dessa "função moderadora":
"Art. 101. O Imperador exerce o Poder ModeradorI. Nomeando os Senadores, na fórma do Art. 43.II. Convocando a Assembléa Geral extraordinariamente nos intervallos das Sessões, quando assim o pede o bem do Imperio.III. Sanccionando os Decretos, e Resoluções da Assembléa Geral, para que tenham força de Lei: Art. 62.IV. Approvando, e suspendendo interinamente as Resoluções dos Conselhos Provinciaes: Arts. 86, e 87. (Vide Lei de 12.10.1832)V. Prorogando, ou adiando a Assembléa Geral, e dissolvendo a Camara dos Deputados, nos casos, em que o exigir a salvação do Estado; convocando immediatamente outra, que a substitua.VI. Nomeando, e demittindo livremente os Ministros de Estado.VII. Suspendendo os Magistrados nos casos do Art. 154.VIII. Perdoando, e moderando as penas impostas e os Réos condemnados por Sentença.IX. Concedendo Amnistia em caso urgente, e que assim aconselhem a humanidade, e bem do Estado."
Por outro lado, o Imperador segundo o art. 102 também era Chefe do Executivo, exercitando-o por meio de seus Ministros.
Como se pode notar, não havia real separação do exercício do poder político no texto constitucional outorgado de 1824 – basta olharmos as competências constitucionais do Poder Moderador –, não sendo outro o motivo de o constitucionalista português Jorge Miranda, comentando o nosso revogado art. 98 da Constituição de 1824, ponderar: "Um poder assim definido poderia estar no cerne de uma ditadura militar, não, de jeito nenhum, de um regime democrático de um Estado de direito" (A Constituição e as Forças Armadas, na coletânea coordenada por Marcelo Porciuncula e intitulada A competência das Forças Armadas segundo o art. 142 da Constituição de 1988).
Curiosamente, essa mesma Constituição de 1824 estabelecia em seu art. 147 que: "A Força Militar é essencialmente obediente; jamais se poderá reunir, sem que lhe seja ordenado pela Autoridade legitima." Em seguida, no art. 148, estabelece: "Ao Poder Executivo compete privativamente empregar a Força Armada de Mar, e Terra, como bem lhe parecer conveniente á Segurança, e defesa do Imperio."
As Constituições republicanas em momento algum alteram essa subalternidade das Forças Armadas, exceto quando as próprias Forças rasgaram o texto constitucional por meio de Atos Institucionais impondo-se pela força bruta ou, para usarmos os termos da Constituição de 1824, quando se reuniram sem que lhes fosse ordenado por autoridade legítima...
A propósito, a corrente defensora das Forças Armadas como "moderadora"” dos conflitos entre Poderes do Estado usa o argumento de que se o texto constitucional faz menção a intervenção das Forças por solicitação de Poder para garantir a lei e a ordem, logo haveria suposta garantia distinta daquela que estaria já na função de assegurar os Poderes constitucionais, como atribuição constitucional das Forças Armadas.
Neste ponto, parece-nos que Tércio Sampaio Ferraz respondeu adequadamente a este argumento, apontando que o dispositivo apenas democratizou a solicitação das Forças Armadas como garantia da lei e da ordem:
"O ponto diferenciador da Constituição de 1988 em relação às constituições anteriores foi a extensão a todos os Poderes constituídos da capacidade de convocar as Forças Armadas, para sua própria garantia e da lei e da ordem. Tal ampliação foi feita para neutralizar eventuais abusos autoritários do Poder Executivo, na medida em que os outros Poderes agora também podem requisitar o emprego da Lei e da Ordem, o que pode ser feito inclusive pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Congresso Nacional, contra os arroubos autoritários do Poder Executivo."
(O artigo 142 da Constituição Federal, na coletânea coordenada por Marcelo Porciuncula e intitulada A competência das Forças Armadas segundo o art. 142 da Constituição de 1988)
O exemplo histórico da Presidência da República de 2018-2022 bem revelou a lógica dessa interpretação, porque em diversas oportunidades o ocupante da Chefia do Executivo manifestou sua crença nas Forças Armadas como titular de poder constitucional para intervir em outros Poderes.
Bem diversamente, porém, o conjunto do texto da Constituição de 1988 nega esta possibilidade. Seu texto revela caber ao Poder Judiciário a competência para solucionar conflitos entre Poderes do Estado quando não houver solução política adequada em face de dúvida objetiva quanto às fronteiras atributivas constitucionais entre Poderes conflitantes.
Registre-se que o Brasil tem tradição constitucional não só em solucionar conflitos federativos (verticais) pela via principal e concentrada no Supremo Tribunal Federal, havendo também para solucionar conflitos de atribuição entre Poderes do Estado (horizontais) conforme documentado em outro trabalho (v. nosso mestrado: Conflitos de atribuição entre Poderes do Estado: a tutela judicial do sistema de freios e contrapesos como questão principal. Prefácio de Luiz Guilherme Arcaro Conci. Belo Horizonte: Dialética, 2021, cap. 2, p. 101/197).
Os demais conflitos de atribuição que não se encaixem nas competências concentradas do Supremo Tribunal Federal e, a partir de 1988, do Superior Tribunal de Justiça, como bem notou Caio Tácito já em 1946 são solucionados por via incidental, "seja pela via de mandado de segurança ou de ação popular, seja como incidente em qualquer ação comum ou especial" (Caio Tácito, verbete Conflito de atribuições, no Repertório Enciclopédico do Direito brasileiro. Vol. XI. Rio de Janeiro: Borsoi, 1947, p. 49).
A Constituição de 1988 não admite outra solução quando o contencioso entre Poderes não é solucionável politicamente dentro das possibilidades viáveis segundo os limites impostos pela ordem jurídica.
Portanto, o desenho da Constituição de 1988 não confia às três Forças Armadas atribuição de função moderadora entre conflitos de Poderes do Estado, algo incompatível a quem possui como marca principal a rígida subalternidade ao poder civil.
*DANIEL GUIMARÃES ZVEIBIL
-Mestrado pela USP (2006);
-Doutorado pela USP (2017);
-Possui trabalhos em processo constitucional,
-Professor de pós-graduação e
-Defensor público do Estado.
Nota do Editor:
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