Autora: Giselda Hironaka(*)
**O presente texto deste item corresponde, em parte, à palestra que a autora ministrou no I Congresso Internacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, realizado em Brasília, em 2006. Disponível em: file:///C:/Users/Giselda/Downloads/67702-Texto%20do%20artigo-89132-1-10-20131125%20(1).pdf
Modelos de família, ancestrais, feudais, modernas e pós-modernas – para deixar reduzido, em poucas variações, o percurso intenso – se sucederam e a foto sobre a lareira foi se alterando com a mudança dos costumes, com a conversão ou inversão dos valores, com a introdução de novos comportamentos e de novos princípios, com o abandono de matrizes em desuso, e assim por diante.
Por meio desta simbologia de mostrar a família por meio das fotos de um velho álbum, é de curiosa e real beleza a descrição que faz Luiz Edson Fachin em trabalho publicado em 2006. A simbologia adotada mostra as mudanças e as nuanças da família de antes e da família de agora, quer pelas posturas na foto, quer pela indumentária utilizada pelas pessoas, quer pelo jogo cênico preparado para o registro eterno. Mudam e colorem-se as fotos; muda e revigora-se a família.
A independência econômica da mulher a faz erguer-se, na foto, sair de trás do patriarca, levantar os olhos confiantes de quem, ao lado de seu parceiro de vida, organiza e administra a estrutura familiar.
Quanto aos filhos, seu papel também deixa de ser secundário e eles assumem boa elevação econômica na ordem familiar, assim como se destacam mais pelas suas qualidades próprias, seu preparo intelectual e sua crescente capacidade de decisão.
O divórcio, o controle da natalidade, a concepção assistida, a reciprocidade alimentar são valores novos que passam a permear o tecido familiar, para torná-lo mais arejado, mais receptivo, mais maleável, mais adaptável às concepções atuais da humanidade e da vida dos humanos. A fidelidade, como valor que não se desprendia da virtude e da abnegação no anterior tempo, hoje se descortina como a aspiração individualista do amor autêntico, não eivado de mentira ou de mediocridade, como descreve Gilles Lipovetsky em A sociedade pós-moralista: o crepúsculo do dever e a ética indolor dos tempos democráticos.[1] Mas, acima de tudo, espalha-se a ideia de afetividade, como o grande parâmetro modificador das relações familiais, estando a querer demonstrar que o verdadeiro elo entre as pessoas envolvidas nessas relações, nesse núcleo, nesse tecido, consubstancia-se no afeto.
A independência econômica da mulher a faz erguer-se, na foto, sair de trás do patriarca, levantar os olhos confiantes de quem, ao lado de seu parceiro de vida, organiza e administra a estrutura familiar.
Quanto aos filhos, seu papel também deixa de ser secundário e eles assumem boa elevação econômica na ordem familiar, assim como se destacam mais pelas suas qualidades próprias, seu preparo intelectual e sua crescente capacidade de decisão.
O divórcio, o controle da natalidade, a concepção assistida, a reciprocidade alimentar são valores novos que passam a permear o tecido familiar, para torná-lo mais arejado, mais receptivo, mais maleável, mais adaptável às concepções atuais da humanidade e da vida dos humanos. A fidelidade, como valor que não se desprendia da virtude e da abnegação no anterior tempo, hoje se descortina como a aspiração individualista do amor autêntico, não eivado de mentira ou de mediocridade, como descreve Gilles Lipovetsky em A sociedade pós-moralista: o crepúsculo do dever e a ética indolor dos tempos democráticos.[1] Mas, acima de tudo, espalha-se a ideia de afetividade, como o grande parâmetro modificador das relações familiais, estando a querer demonstrar que o verdadeiro elo entre as pessoas envolvidas nessas relações, nesse núcleo, nesse tecido, consubstancia-se no afeto.
Mudam os homens. Mudam seus agrupamentos sociais. Mudam as instituições. Mudam os institutos jurídicos. Muda a família. Mudam as relações familiais, não para serem outras, mas para desempenharem novos e distintos papéis. Constrói-se uma família eudemonista, na qual se acentuam as relações de sentimentos entre os membros do grupo: valorizam-se as funções afetivas da família que se torna o refúgio privilegiado das pessoas contra as pressões econômicas e sociais. É o fenômeno social da família conjugal, ou nuclear ou de procriação, onde o que mais conta, portanto, é a intensidade das relações pessoais de seus membros, como já o dizem Oliveira e Muniz, desde o início da década de 90. [2]
A família que se quer, contemporaneamente, mais do que ser exclusivamente aquela arrolada em normas e editos, é aquela que se diz eudemonista, isto é, aquela família na qual cada um de seus membros busca alcançar o seu pessoal projeto de felicidade, de modo a que todo o grupo familiar também seja feliz. Em Ética a Nicômaco (1.12.8.) Aristóteles escreveu, e com toda a razão: “A felicidade é um princípio; é para alcançá-la que realizamos todos os outros atos; ela é exatamente o gênio de nossas motivações.”
A condição matrimonializada foi sempre eternizada, com chance zero de desorganização ou desfazimento, especialmente se em favor da libertação da mulher, uma vez que sua projeção e atuação no meio familiar estavam muito mais voltadas à concepção, geração e criação de filhos do que propriamente o prazer que lhe pudesse ser proporcionado pela relação sexual e afetiva com o seu partícipe de jornadas. A proclamação da pureza das mulheres, a condenação ao adultério, a proibição do aborto e a recriminação às práticas contraceptivas concorreram no sentido de a elas não ser permitido o que aos homens era, ainda que sob os pudores silenciosos da falsa moral novecentista, como por exemplo, o desfrute de prazeres efêmeros. A visibilidade do adultério masculino contava, por isso mesmo, com a complacência social e até mesmo religiosa em certos casos, minimizando, em favor dos homens, uma severidade e uma rigidez que sempre estiveram presentes na trajetória de condutas femininas.
Sem lar, não há família; sem família, não há moral; e, sem moral, não há sociedade nem pátria! proclamou Jules Simon, político e pensador falecido em 1896, e que foi primeiro ministro da França entre os anos de 1876 e 1877. Compreensível que o dissesse, ao seu tempo. Incompreensível que, em tempos globalizados e redefinidos, ainda se afirme categoricamente, hoje, esta sofismática e excludente conclusão. Não perdeu a família seu carisma, seu papel de refúgio e fortaleza para os anseios primeiros de cada um de seus membros. Não. A família ainda é e sempre será este locus privilegiado. Mas o que já parece não mais persistir é, provavelmente, esta sua tônica de indissolubilidade de vínculos, de obrigatoriedade de realização contínua, a qualquer preço ou custo, de amarras de não-libertação.
Ainda assim, não foi exatamente de um dia para o outro que o divórcio, como percurso para o reencontro de destinos mais promissores, instalou-se no mundo contemporâneo. As pressões de toda a sorte, morais, religiosas, éticas e culturais, empataram durante grande número de décadas, e até hoje, a aceitação plena do rompimento da matrimonialização das relações conjugais. Às mulheres divorciadas se imputou o status da indignidade e aos seus filhos a pecha de filhos sem pai. Idas e vindas de aceitação e de rejeição ao novo modus de desfazimento da sociedade conjugal foram amplamente sentidas e registradas ao longo da modernidade, como que em dança de caranguejos, com passos à frente e com passos atrás. Aliás, até os dias de hoje, em certas antigas e importantes culturas, ainda é assim, quando não se proíbe terminantemente a ideia de desfazimento do laço matrimonial. Paira uma ideia, em certos pensamentos e culturas, de que o rompimento dos laços de conjugalidade corresponderia a uma efetiva perda, e essa sensação é insuportável pelos que se alistam nas colunas dos eternos vencedores.
A família de hoje tende a ser mais sincera, digamos assim, no sentido de que as hipocrisias e as simulações de antes já não encontram mais lugar em cena, estando este espaço muito mais disponibilizado para os tratos francos e as rupturas consentidas e bem analisadas.
No enquadramento da família atual, uma gama maior de modelos se apresenta, assumindo ela um desenho plural, aberto, mutlifacetário e globalizado, servindo como locus privilegiado para o desenvolvimento da personalidade humana, no dizer de Cristiano Chaves Farias. Ele encaminha suas conclusões para dizer que o atual ambiente da pós-modernidade é o ambiente ideal para a realização espiritual e física do ser humano, ou seja, somente se justifica a proteção da família para que se efetive a tutela da própria pessoa humana. É, por conseguinte, a família servindo como instrumento para a realização plena da pessoa humana e não mais vislumbrada como simples instituição jurídica e social, voltada para fins patrimoniais e reprodutivos.[3]
Hoje, o afeto – considerado como valor jurídico – promoveu a família de um status patriarcal para um status nuclear. Se, no anterior tempo, o afeto “era presumido em razão de o vínculo jurídico dar a existência de uma família”, no espaço atual “ele é um dos elementos responsáveis pela visibilidade e continuidade das relações familiais”.[4] José Fernando Simão[5] escreve – ao cabo de seu artigo denominado O valor jurídico do afeto. A novela ‘Páginas da Vida’ e a parentalidade socioafetiva – a seguinte grande verdade: A ficção superou, em certos aspectos, a realidade. Reconhecer o valor jurídico do afeto é admitir que os princípios contidos na Constituição Federal efetivamente produzem efeitos sobre a legislação civil como um todo.
Enfim, a nova família da contemporaneidade não é melhor nem pior do que os modelos familiares que a antecederam, mas é diferente deles. Nesta família, os aspectos de positividade são bem-vindos e são capazes, quiçá, de deixar que se dê ênfase aos aspectos que assim não sejam, porque aqueles são aspectos que dizem respeito mais às trocas, às verdades, à cooperação, à complexidade e, principalmente ao afeto entre seus membros.
REFERENCIAS
REFERENCIAS
[1] LIPOVETSKY, Gilles. A sociedade pós-moralista: o crepúsculo do dever e a ética indolor dos novos tempos democráticos. Tradução de Armando Braio Ara. Barueri, SP: Manole, 2005;
[2] OLIVEIRA, José Lamartine Correa de e MUNIZ, Francisco José Ferreira. Curso de Direito de Família. Juruá, Curitiba: 1999;
[3] FARIAS, Cristiano Chaves de. A família da pós-modernidade\ mais que fotografia, possibilidade de convivência. Disponível em: . http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/fam%C3%ADlia-da-p%C3%B3s-modernidade-mais-que-fotografia-possibilidade-de-conviv%C3%AAncia;
[4] CARBONERA, Silvana Maria. O papel jurídico do afeto nas relações de família, in Luiz Edson Fachin (coord). Repensando fundamentos de Direito Civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 309; e
[5] SIMÃO, José Fernando. O valor jurídico do afeto. A novela ‘Páginas da Vida’ e a parentalidade socioafetiva (http://professorflaviotartuce.blogspot.com.br/2007/03/excelente-artigo-jos-fernando-simo-o.html - acesso em 10.12.2013)
*GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA
-Advogada graduada pela Faculdade de Direito da USP(1972);
-Professora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP;
-Coordenadora Titular do Programa de Mestrado e Doutorado da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo – FADISP;
-Coordenadora Titular da área de Direito Civil dos cursos de Especialização da Escola Paulista de Direito;
-Fundadora e Diretora Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM;
-Diretora Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Civil – IBDCivil e
-Ex Procuradora Federal.
Nota do Editor:
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