domingo, 3 de julho de 2022

Reflexões sobre a vergonha


Autora: Renata Pereira (*) 



Todos os seres humanos do mundo nascem programados para sentir alegria, medo, raiva, nojo e surpresa, pois essas emoções, chamadas de emoções primárias, são essenciais para garantir a sobrevivência da espécie humana. Sem o medo, nos exporíamos a perigos, se não sentíssemos raiva, não nos protegeríamos de inimigos, é o nojo que nos impede de comer algo estragado, a tristeza nos leva a refletir sobre nossas ações e a cuidarmos uns dos outros e a alegria nos revigora e dá sentido a nossa vida. Desde bebês sentimos tudo isso, mas somos ensinados a identificar e nomear cada uma dessas emoções a partir da convivência com nossos cuidadores. São eles que nos dizem que estamos tristes quando choramos, com raiva quando gritamos e assim por diante.

Porém, na interação com nossas famílias também aprendemos a sentir o que chamamos de emoções sociais. Tais sentimentos, como vergonha, por exemplo, não têm a função de garantir nossa sobrevivência e sim de nos ajudar a conviver em sociedade. A vergonha não nasce com a gente e é experienciada de modo diferente de acordo com a cultura a que pertencemos, mas todo ser humano sente vergonha.

Uma das primeiras coisas que fazemos instintivamente para garantir nossa sobrevivência é despertar afeição e outros sentimentos positivos nos outros, e precisamos fazer isso para que eles cuidem de nós, caso contrário, morremos. Por isso, temos tanto medo de sermos rejeitados e aprendemos desde cedo a nos preocuparmos e nos importarmos com o que as pessoas pensam de nós. Para nossos cérebros, rejeição é vista como risco de morte, por isso dói tanto.

Por sermos seres racionais, aprendemos a fazer coisas como avaliar e comparar, então, se crescemos em famílias que criticam muito, elogiam pouco, punem demais, se somos ou nos sentimos preteridos ou comparados com os outros, aprendemos a sentir o que chamamos vergonha externa. Com o tempo e se vivemos experiências desse tipo em outros ambientes sociais além da família, como na igreja ou na escola, por exemplo, vamos desenvolvendo a vergonha interna, que é quando nós mesmos passamos a nos comparar e criticar.

Portanto, somos ensinados a sentir vergonha de quem somos, o que nos leva a não conseguirmos nos aceitar. E, quanto menos nos aceitamos, mais buscamos aceitação do outro e mais tememos ser rejeitados. O perfeccionismo é a estratégia mais comum nessa busca por aceitação, pois se conseguirmos ser perfeitos, ninguém verá nossos defeitos, ninguém conhecerá as partes das quais nos envergonhamos, e esse se torna o único meio de sermos aceitos, já que o que somos é visto como insuficiente ou indigno de ser amado. Muitos transtornos depressivos e ansiosos têm por trás um intenso sentimento de vergonha.

Mas, a vergonha que nos paralisa, que faz com que nos escondamos por medo de sermos punidos ou rejeitados é a forma como nós, ocidentais, nos relacionamos com essa emoção, pois no oriente, principalmente de acordo com os ensinamentos budistas, a vergonha é tida como uma virtude, pois é ela que permite que os seres humanos diferenciem o certo do errado, é ela que impede que as pessoas prejudiquem uma as outras, e é ela que conduz os seres humanos a reparação quando fazem mal a outros.

Conseguem perceber a força disso?. Por essa lógica, quem deveria sentir vergonha é o agressor, não a vítima, o racista não o preto, o homofóbico, não o gay. A partir desse ponto de vista, ninguém teria de sentir vergonha por não ter o carro do ano e sim por parar na vaga destinada a pessoa com deficiência, o filho não teria vergonha por tirar nota baixa, mas o pai deveria se envergonhar por chamar o filho de burro. O funcionário que gagueja em uma apresentação de trabalho não teria de que se envergonhar, mas aquele que plagia a apresentação, sim. Ninguém precisaria ter vergonha de cair na rua, de tirar uma dúvida na sala de aula.

Todos os dias, vejo no consultório pessoas deixando de realizar sonhos por medo de passar vergonha. Todos os dias, escuto pessoas me dizerem que querem morrer porque não aguentam mais sentir a dor gerada por sua própria autocritica. A forma como nossa sociedade se relaciona com a vergonha é pouco efetiva porque causa um sofrimento emocional sem tamanho e permite uma inversão de valores sem controle. O caminho para mudar isso passa por não ter medo de se expor ao ridículo, por refletir sobre o que, de fato é ridículo, por defender o direito de ser como se é e negar buscar padrões de aparência e desempenho inatingíveis, por autoaceitação, autocompaixão, por desconstrução, estudo, fortalecimento, relações seguras, respeito, amor e amadurecimento.

Comece ficando atento às situações nas quais você sente vergonha, se você não tiver prejudicado ninguém, provavelmente, você não tem de que se envergonhar, então, só siga em frente, não se esconda.

*RENATA PEREIRA























-Psicóloga formada pela Universidade Prebsteriana Mackenzie;
-Especialista em Terapia Comportamental Cognitiva pelo Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP; e
Atende adolescentes e adultos em psicoterapia individual e em grupo.


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E-mail: renatapereira548@gmail.com
Twitter:@Repereira548

Nota do Editor:

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