Esta é uma
história real. Alteramos as identidades a fim de evitar eventuais
constrangimentos.
A fazenda onde Afonso era o encarregado, na estrebaria que era grande, dispunha na parte da frente de espaço utilizado como escritório, pois tinha uma janela e possuía piso de tijolos. Logo depois da hora do almoço, ao mesmo tempo em que Afonso sentado à mesa no escritório terminava suas anotações, ele ouvia as conversas e muitas histórias contadas pelos empregados, no lado de fora, enquanto aguardavam a hora em que o sino seria batido para anunciar o reinício da lida diária deles. Entre elas destacavam-se as contadas pelo Toninho "Mentira" que era, indiscutivelmente, o mentiroso oficial da região. Sua fama já se espalhara por todos os cantos.
Este, entretanto, ficava bravo e irritado quando assim era chamado, resmungando:
- Eu só conto casos verdadeiros. Nunca minto, invento ou aumento. Vocês é que não entendem. Não tenho culpa se não conseguem entender a profundidade de meus casos.
O julgamento de quem estava com razão, fica para o leitor concluir no final.
Vejamos alguns dos causos contados por ele, sempre jurando que eram verdades incontestáveis e que tinham seu testemunho:
Cerca
Contava ele que em certa ocasião aconteceu uma coisa estranha na fazenda de um seu conhecido. Este foi o relato:
Pela manhã o amigo, passando perto de uma das cercas de sua propriedade, notou que os arames farpados estavam todos caídos no chão e sumidos os grampos que prendiam o arame na cerca.
Achou estranho e ficou preocupado, pois suas criações poderiam escapar e trazer outros problemas, tanto para localizá-los, como pelos estragos que poderiam fazer nas plantações. Imediatamente encaminhou-se para a sede da fazenda a fim de pegar ferramentas e grampos de cerca para prender os arames farpados.
Após um longo trabalho, a cerca estava consertada.
Na manhã seguinte, o
fazendeiro ao passar novamente pelo mesmo local, ficou assustado, pois os arames
farpados estavam, novamente no chão e os grampos sumidos.
Aí sua preocupação aumentou.
Pensou: "não seria algum
safado que estaria fazendo isso para prejudicá-lo ou seria alguém com más intenções?"
Mil pensamentos passaram e muitas outras hipóteses foram criadas, entretanto não conseguia ter certeza de nada.
Todavia, o espírito prático prevaleceu: consertou novamente a cerca, esperando que o problema não mais ocorresse.
Infelizmente, na manhã seguinte, os arames farpados estavam, outra vez no chão e, de novo, nem sombra dos grampos que os prendiam.
A raiva dele era grande. Procurou pegadas, marcas, algum vestígio, porém não encontrou nada, absolutamente nada.
Irritado lembrou-se de já ter ouvido que em certa região do país contratavam pessoas como "guarda de cerca". A tarefa delas era vigiar, à noite, para que a cerca "não andasse", o que faria a propriedade diminuir e a do vizinho aumentar.
Assim, resolveu que consertaria novamente a cerca, mas que esta seria, sem dúvida alguma, a última vez que estragariam sua cerca.
Ele encontrou-se com Toninho "Mentira" e contou-lhe sobre o estranho caso. Toninho aconselhou-o:
- Por que você não vigia o local nesta noite?
Ao entardecer, munido de uma
espingarda, o fazendeiro seguindo a sugestão de Toninho foi até a cerca
reconstruída. Procurou um local no qual pudesse esconder-se e ficou à espera. Foi
um pouco difícil acostumar-se à escuridão, pois era lua nova e, praticamente,
nenhum clarão para ajudar na vigília, se bem que isso era bom considerando que
permitia a tocaia perfeita.
As horas foram passando e a noite avançando. Nada acontecia.
Quando a noite já estava bem adiantada ele percebeu um vulto vindo em direção à cerca. Com cuidado e silenciosamente, engatilhou a espingarda. O vulto vinha devagar. Aproximando-se mais e mais. Foi quando o fazendeiro pode definir o intruso.
Era uma seriema que em todos esses dias, com fome e para não morrer de inanição, vinha até a cerca onde com os bicos arrancava os grampos e os comia. Assim, os arames farpados desprendiam-se dos mourões e caíam, explicou Toninho "Mentira" aos colegas que o ouviam...
Traíra
Teve, também, o caso contado por Toninho "Mentira" sobre as traíras mortas na beira de certa lagoa.
Primeiramente, é necessário lembrar alguns detalhes acerca da Traíra ou Lobó. Trata-se de peixe carnívoro de água doce encontrado em açudes, lagos, lagoas e rios.
Bem, Toninho "Mentira" gostava de pescar na lagoa que existia perto da fazenda onde Afonso era o encarregado e, preferencialmente, fazia isso pela manhã para não ter que enfrentar muito calor.
- Certo dia, quando cheguei à beira da lagoa, contou Toninho, encontrei algumas traíras mortas na grama, a poucos metros da água.
- Estranhei tal fato, apanhei esses peixes mortos, atirei-os na água e comecei minha pescaria.
- Quando havia pescado quantia de peixes suficiente para o almoço, juntei a tralha de pesca e voltei para casa.
No dia seguinte, quando Toninho voltou para nova pescaria, depara-se, outra vez, com a estranha situação: mais traíras mortas espalhadas pela beira da lagoa.
Curioso ele resolve gastar um tempo examinando os peixes. Pega um por um, olha atentamente e não vê marca deixada por anzol ou qualquer ferimento nas traíras. Não vê nenhum peixe morto boiando na lagoa. Então qual seria o motivo para encontrar essas traíras mortas fora da lagoa?
Nesse dia, nem pescar mais Toninho quis. Voltou para casa com "a pulga atrás da orelha".
Toninho "Mentira" conta que no terceiro dia, arisco, voltou à pescaria. Desta vez sua esperança era não mais se deparar com traíras mortas fora da lagoa.
Entretanto, sua expectativa esvaiu-se quando, chegando perto da lagoa, viu outras traíras mortas fora da água...
O ânimo para pescar desapareceu imediatamente. Voltou para sua casa arrasado.
Durante o resto do dia ficou pensando no que poderia ter causado as inusitadas situações dos últimos dias, mas não encontrava resposta convincente.
Após muito matutar, Toninho "Mentira" contou aos companheiros que decidiu e falou consigo mesmo em voz alta.
- Vou esclarecer isso, custe o que custar. Hoje à noite vou fazer plantão na beira da lagoa e esperar para saber a causa da morte dos peixes fora da água.
E assim, quando começou a escurecer, foi até a beira da lagoa. Estava prevenido com facão, espingarda e, para garantir, rosário, crucifixo e água benta.
Por sorte era noite de lua cheia e todo o local estava bastante iluminado.
Lá pelas tantas Toninho viu o cavalo da fazenda, na qual Afonso trabalhava, vindo em direção da lagoa. Ele conhecia muito bem o animal. Era o Brioso, velho, manso e tranquilo.
Chegando lá o cavalo inclinou-se e começou a beber água. De repente ele
levanta a cabeça e gira-a rapidamente para o lado, Toninho vê desprender-se do
animal uma traíra que mordera o focinho do Brioso. O peixe pula várias vezes na
margem tentando voltar para a água, mas é inútil sua luta. Por fim a traíra
desiste e fica imóvel. O cavalo volta a beber água e o fato volta a se repetir,
tendo como consequência outra traíra atirada fora da lagoa. Isto acontece mais
vezes até o Brioso saciar sua sede e cansar de ser mordido, resultando em
vários peixes agonizando à margem da água.
Quando terminou esta história, Toninho "Mentira" comentou que ficou aliviado ao descobrir a causa da mortandade de peixes e foi avisar Afonso para que prendesse melhor o Brioso, senão este poderia logo-logo ter uma infecção e até perder o focinho...
Caçada
Outra do mentiroso:
Toninho "Mentira" contava que,
além de pescar, gostava muito de caçar, principalmente codornas, nas matas que
existiam na redondeza. Dizia ele:
- É uma das coisas que me dão prazer e alegrias quando faço. A espingarda, herdei de meu pai. Nas caçadas, ela era como se fizesse parte de meus braços e extensão de meus olhos.
- Mas companheiro mesmo era Mascote, meu cachorro de estimação. Era um cão leal, fiel, preciso e paciente – falou ele.
Mascote, com a audição e
olfato que são melhores que os dos humanos, durante as caçadas, inspirava
confiança a Toninho e este contava:
- Na caçada, quando com paciência o cão descobria a caça, ficava com os pelos arrepiados, parava e imóvel, apontava para a ela, esperando preparar-me para atirar no momento certo.
Desfechado o tiro e abatida a ave, Mascote corria para apanhá-la e todo feliz trazê-la a mim.
- Foram incontáveis caçadas de sucesso, contava com orgulho Toninho.
Mas, (sempre há um "mas") certo dia, enquanto concentrado e imóvel apontava a caça, uma cobra surgiu por trás do cão e pica-o. Mascote começa a gemer com o efeito do veneno da picada. Toninho, imediatamente, mata a serpente. Entretanto, por estar longe da cidade, nada pode fazer para salvar seu cachorro querido, ficando sentado ao lado de Mascote agradando-o e alisando-o até este soltar seu último suspiro.
O cão de estimação foi levado para casa.
O carinho pelo cão era muito grande. Toninho não queria que acabasse assim, mas fazer o quê?
Pensou, pensou e pensou...
Um amigo sugeriu:
- Por que você não manda embalsamar?
- Acho isso um pouco macabro, ponderou Toninho. Mas, não quero simplesmente enterrá-lo...
- Ah!!! Já sei, contou "Mentira". Vou pedir para um amigo tirar o couro do Mascote, curtir e depois vou fazer um colete para mim. Assim ele continuará comigo em minhas caçadas.
E isto foi feito.
Toninho continua a contar que a partir de então sempre ia às caçadas vestido com o colete e para alegria dele era "ajudado" por Mascote, seu antigo cão de caça:
- Cada vez que durante a caçada aparecia uma codorna, o colete arrepiava os pelos, por mais incrível que possa parecer, indicando a mim que havia caça pronta para ser abatida. E era verdade. Cacei muitas codornas desta forma...
Quando contou esta aventura aos amigos, na hora do almoço, Afonso, ouvindo tudo de seu "escritório", ria a valer, o mesmo ocorrendo com os companheiros de Toninho "Mentira". Este, entretanto, como nas outras vezes em que contava seus casos, irritado com o riso dos colegas e aparentando estar bastante zangado dizia que:
- Juro que é tudo verdade, não tem nenhum motivo para vocês rirem e ficarem debochando de mim. Se for assim, eu nunca mais vou contar nada que me aconteceu ou que eu soube, seus descrentes e gozadores de uma figa...
*BENEDITO GODOY MORONI
-Graduado em Direito pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, Universidade de São Paulo(1972); e
-Membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e da Academia Venceslauense de Letras.
Nota do Editor:
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