quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Testamento: Um ato de cuidado


 Autora: Gabriela Aisen(*)


O testamento, para além das tecnicalidades jurídicas, é um instituto inserido no imaginário popular, pois está no cotidiano das pessoas e é sempre lembrado como tema central de toda sorte de manifestações artísticas.

Seja na literatura, na dramaturgia ou no cinema, é comum serem retratadas icônicas cenas da leitura do testamento, em algum escritório luxuoso, repleto de engravatados e pessoas apreensivas em razão da morte de um magnata, que pode levar ao inesperado.

Para ilustrar esta questão, convém citar um clássico como a tragédia Rei Lear, de William Shakespeare, cujo enredo narra a história de um Rei que resolve, em vida, legar seu Reino às 03 (três) filhas e é traído por 02 (duas) delas.

Outras pessoas, por sua vez, lembram-se de personalidades famosas da mídia que destinaram a sua herança de maneira a desagradar familiares, amigos, conhecidos e, não raras vezes, deram início a longos processos judiciais envolvendo o seu expressivo patrimônio.

Já alguns, ao seu turno, preferem apenas ignorar esta temática por receio de, supostamente, atrair má sorte ou até mesmo uma morte prematura para si mesmo. Fez testamento e faleceu, coitado! O imaginário popular é fértil quando se fala sobre a morte, ainda que o tema seja tabu para muitos.

Todavia, a verdade é que fazer um testamento pode ser o maior gesto de proteção e de carinho que as pessoas podem tomar em relação a aqueles que amam.

Isto ficou claro, por exemplo, com a eclosão da pandemia da Covid-19, que certamente evidenciou a fragilidade e a efemeridade da vida, comprovando a importância de deixar registradas as manifestações de vontade para depois do falecimento.

Se "viver não é preciso" como diria Fernando Pessoa, morrer bem pode sê-lo.

Desta feita, engana-se quem acha que o testamento se dá apenas em relação aos bens patrimoniais, uma vez que este também pode retratar temas relacionados aos direitos personalíssimos, tais como o direito de imagem ou de uma obra produzida em vida, e até mesmo conter disposições sobre quais providências devem ser tomadas em caso de grave doença, o conhecido como Testamento Vital, juridicamente chamado de Diretivas Antecipadas de Vontade.

Até mesmo as questões atuais envolvendo tecnologia e inteligência artificial têm a ver com o testamento, a exemplo de recente notícia veiculada na mídia expondo que a cantora Madonna alterou o seu testamento com o intuito de deixar expressa a proibição do uso de sua imagem em hologramas para reprodução de sua imagem após o falecimento, considerando a intensificação da utilização da inteligência artificial na área da cultura e do entretenimento.

Primeiramente é preciso esclarecer quem pode testar no Brasil, e sob quais circunstâncias. O Código Civil, em seu artigo 1.860 estabelece que toda pessoa maior de 16 (dezesseis) anos e que tenha pleno discernimento pode elaborar o seu testamento. Não podem testar, por outro lado, aqueles que estiverem acometidos por doenças psiquiátricas que lhes comprometam a lucidez ou aqueles que estejam sob o efeito de substâncias entorpecentes, sob pena de ser considerado inválido o testamento. Percebe-se, portanto, que antes de atingir a maioridade civil aos 18 (dezoito) anos é possível registrar as disposições de última vontade, tamanha a relevância deste instrumento para o planejamento patrimonial.

O próximo passo diz respeito a quem pode receber a herança objeto do testamento. Diferentemente de países estrangeiros, em território brasileiro apenas as pessoas físicas (nascidas ou já concebidas ao tempo da abertura da sucessão) e as pessoas jurídicas são legítimas destinatárias do patrimônio a ser recebido por força do testamento. Equivale dizer que são vedadas disposições testamentárias que beneficiem animais, tal como fora veiculado que a ex-presidente da Academia Brasileira de Letras, a escritora Nélida Piñon teria deixado 04 (quatro) apartamentos de luxo aos seus 02 (dois) cachorros em seu testamento.

Certamente bem assessorada, a escritora tomou os cuidados necessários para garantir a mantença dos seus animais de estimação, nomeando uma pessoa para ser a titular do patrimônio, cuja finalidade é o sustento dos bichinhos.

Ao contrário do que muitos possam pensar, não são somente os artistas ou indivíduos com grandes fortunas que são beneficiados com a lavratura de testamentos. Este instrumento, inclusive, pode auxiliar na resolução de preocupações do cotidiano que podem vir a acometer qualquer um. A principal vantagem de fazer um testamento é justamente decidir em vida a destinação do seu patrimônio, para que a sucessão ocorra de maneira célere e eficaz, de preferência sem a instauração de conflito e dos morosos processos judiciais entre os herdeiros.

Neste sentido, a finalidade mais conhecida do testamento é a instituição de legados, ou seja, designar bens certos ou patrimônio (integral ou frações) para determinadas pessoas que eventualmente não receberiam automaticamente a herança, acaso não fosse registrado este desejo.

Isto porque, quando uma pessoa falece sem deixar testamento, toda a sua herança é dividida entre os seus herdeiros necessários, de acordo com a ordem de vocação hereditária estabelecida pelo artigo 1.829, do Código Civil, composta pelos descendentes, ascendentes, cônjuge/companheiro(a) e colaterais.

Contudo, há a possibilidade de ser destinada a metade do patrimônio do testador para terceiros, através da chamada parcela disponível da herança, de modo que pessoas queridas sejam contempladas após o falecimento do testador com parte dos seus bens. Estes legados muitas vezes são deixados a parentes ou amigos próximos, funcionários de confiança e até mesmo organizações não governamentais (ONGs) que eram apoiadas em vida pelo testador.

Em âmbito corporativo, a instituição de legados em testamento pode ser uma excelente ferramenta para auxiliar empresários na continuidade da sociedade, após o seu falecimento, ainda mais levando-se em consideração que, no Brasil, renomadas empresas são compostas por membros de uma mesma família.

Ao deixar em legado as quotas sociais de determinada sociedade para os sócios remanescentes da empresa, privilegia-se a manutenção da participação societária daqueles que já faziam parte do quadro social, e evita-se que pessoas estranhas à relação institucional, como filhos e cônjuges que nunca participaram da atividade empresarial nela ingressem em decorrência sucessória, e eventualmente atrapalhem o bom andamento da corporação.

Em casos nos quais o testador possui herdeiros endividados, filhos menores de idade ou pessoas as quais pretende proteger patrimonialmente - como aqueles que possuem alguma doença que cause invalidez -, este pode incluir cláusulas restritivas nos bens que serão por eles recebidos quando da abertura da sucessão. Desta maneira, além de deixar recursos para seus entes queridos, o testador pode assegurar a manutenção do patrimônio herdado. São elas as cláusulas de impenhorabilidade, de incomunicabilidade e de inalienabilidade.

Em breves linhas, a primeira prevê que o patrimônio herdado com a cláusula de impenhorabilidade não pode responder pelas eventuais dívidas do destinatário da herança, de modo que seus credores não poderão obtê-lo judicialmente.

Já a cláusula de incomunicabilidade disciplina que os bens herdados não se comunicam com o cônjuge do herdeiro e, portanto, não serão objeto de partilha de bens na hipótese do seu divórcio.

Por fim, a cláusula de inalienabilidade, mais utilizada para bens imóveis, desautoriza, por exemplo, a venda deste bem, e deve ser utilizada somente quando o testador deseja que o imóvel em questão não seja facilmente transferido pelo herdeiro.

Para além das disposições patrimoniais, o testamento pode ser utilizado até mesmo para o reconhecimento de vínculo civil ou de parentalidade que o testador não formalizou em vida.

Como se sabe, a herança do apresentador Augusto Liberato, o Gugu, foi objeto de intenso processo judicial, cujo cerne fora o reconhecimento de possível união estável por ele mantida, porquanto 02 (duas) pessoas pleitearam judicialmente o reconhecimento póstumo do relacionamento e, consequentemente, a declaração do status de herdeiro necessário do apresentador.

Através da lavratura de um testamento, o próprio Gugu poderia ter reconhecido se mantinha ou não algum relacionamento caracterizado como união estável e indicar quem era o seu(sua) companheiro(a), com a finalidade de evitar conflitos patrimoniais após o seu falecimento.

O mesmo pode ser realizado para o reconhecimento de filhos havidos fora do casamento ou anteriores ao relacionamento conjugal. Neste caso, é dispensada a realização de exame genético para a comprovação da relação de parentalidade entre o testador e o filho por ele reconhecido, formalidade esta muitas vezes imposta em processos de investigação de paternidade.

Sendo assim, tem-se que a lavratura do testamento é essencial para o bem-estar da família, posto que é instrumento hábil de planejamento do testador para a transferência de seu acervo patrimonial após o falecimento. Organizar em vida como se dará a sucessão, de acordo com as necessidades dos herdeiros pode apaziguar os receios do testador, na medida em que se torna conhecido e previsível o destino de seus bens e as eventuais cláusulas restritivas que os acompanharão.

Se a chama da vida do testador se apagar, as disposições patrimoniais e extrapatrimoniais feitas em um bom e minucioso testamento, certamente podem evitar uma série de brigas, discussões e até tragédias familiares, para que ele possa efetivamente descansar em paz.

*GABRIELA  AISEN

















-Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo (2018);
-Especialização em Direito de Família pela Universidade de Coimbra (2019) e
-Pós - graduada em Direito de Família e Sucessões pela Escola Paulista de Direito (2021)

Nota do Editor:

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