sábado, 11 de julho de 2015

Uma transvaloração dos valores




Desde a filosofia de Sócrates até os nossos dias, percebemos que muito se fala de moral. Segundo Nietzsche, porém, as pessoas não sabem muito bem o que é verdadeiramente “moral” e chegam a confundi-la com o bem e mal. Para buscar compreender a questão, colocamos também nós a pergunta: qual a origem da moral? O que é a moral? Ela é mutável? Ela é única ou existem várias “morais”? Qual a sua história? O ressentimento seria criador de uma moral? Qual a sua importância para a vida do ser humano?

Nietzsche constata que tudo que recebera de conceito sobre a moral advinha de leis, tradições e instituições que não podiam garantir a veracidade do conceito de moral. Portanto, o filósofo alemão constrói sua filosofia baseada numa crítica à moral, aos valores que foram impostos pela sociedade. A obra “Genealogia da Moral: Uma Polêmica” realiza uma crítica radical ao conceito que recebera de moral[1]. O filosofo diz: “não vejo ninguém que tenha ousado fazer uma crítica dos juízos de valores morais […]. Até o momento ninguém examinou o valor da mais famosa das medicinas chamada moral: […]. Esse é justamente nosso projeto” [2].

Nietzsche critica em primeiro lugar a pessoa de Sócrates juntamente com toda a tradição filosófica que não se preocupou em questionar o conceito de moral. Pelo contrário, acreditam cegamente nessa moral. “Na qualidade de toda tradição filosófica, Sócrates é ao mesmo tempo repugnante e fascinante”. [3] Como se não bastasse uma crítica a toda a tradição filosófica, estende-a também à metafísica que transporta suas respostas para um plano que está para além da realidade. “O fim da fábula, anunciando o zênite da humanidade sem “ídolo”, ensinada por “Zaratustra”. Este ídolo de um “mundo verdadeiro” é o protótipo da metafísica, necessariamente dualista, venerando um além imaginário, batizado de “o ser”, “Deus” ou “a coisa em si””. [4] Com essa crítica à metafísica propõe ao ser humano que ele seja o seu criador, seja responsável por criar um mundo mais autêntico e sem fábulas, sem projetar sua vida para algo que esteja fora dessa realidade.

O filósofo chega à conclusão de que a moral é uma interpretação que busca atender às necessidades e interesses pessoais.

A moral surge como um aglomerado de normas para controlar o comportamento do grupo humano em que está inserida por intermédio de valores que foram construídos pelo que, muitas vezes, conhecemos como costumes e tradição (de geração a geração, os valores são passados de pais a filhos sem maiores questionamentos e, quando tais valores não correspondem mais aos valores impostos pela sociedade, aí então certos “costumes” são colocados abaixo) (SOUSA, 2009, p.14).

Ao analisarmos a história do cristianismo podemos perceber que, muitas vezes, a moral “esteve a serviço do grupo dos que, também em grupo ou como ditadores, manipulam esse grupo maior que é a humanidade”. [5] Nietzsche constata que a moral é relativa, mutável levando em conta o meio no qual esteja inserida, com seus fortes e fracos. Por isso deseja que os homens não se submetam aos valores morais que são tidos como bem e mal. [6]

Segundo Sousa (2009), a história da moral não passou de formas de controle do pensamento e das ações humanas através das instituições. Ao perceber que as instituições são as principais responsáveis por transmitir a moral, Nietzsche afirma que essa moral está muito distante de ser aquilo que deveria ser. E propõe que se viva de uma forma diferente: com mais intensidade, autenticidade e sem projeções para uma vida futura. Isto seria viver de forma mesquinha esperando que essa força de viver viesse das classes dominantes ou das instituições. [7]

A grande proposta do nosso autor é que aconteça uma transvaloração de todos os valores que foram recebidos e negados, proibidos. A moral consiste na “transvaloração de todos os valores, em um desprender-se de todos os valores morais, e um confiar e dizer Sim a tudo o que até aqui foi proibido,desprezado, maldito”[8]. Visto que não se pode confiar nos conceitos recebidos de moral, pois são impostos, transvaloração é questionamento dos valores transmitidos como absolutos. É fazer uma releitura mais aprofundada, tirar a visão sagrada do ser humano. “Suspeitando do valor da moral, a genealogia pretende desvalorizar os valores prevalentes até então” [9]. Transvaloração é rompimento com o homem ideal pela tradição para que se tenha o homem real, este que não segue e sofre as consequências de não aderir aos valores impostos, isto é, não ter medo de ser tachado como imoral por não segui-los, visto que o conceito que se tem de “bem e mal” varia de pessoa para outra.

Num segundo momento, o autor preocupa-se em fazer uma crítica ao cristianismo, à igreja, aos padres que, em seu ponto de vista, se valeram de argumentos e outras coisas mais para se criar um pensamento fraco, limitado e coercitivo. “Os sacerdotes querem exatamente a degeneração do todo, da humanidade: por isso conservam o que degenera. A este preço eles a dominam… Que sentido têm aqueles conceitos mentirosos, os conceitos auxiliares de moral, “alma”, “espírito”, “livre-arbítrio”, “Deus” se não o de arruinar fisiologicamente a humanidade?…”. [10] Segundo Nietzsche, quando se retira o olhar do corpo e se preocupa com a “salvação da alma” , isso é uma ruína do ser humano, pois o tira do cento de sua vida, inibe-o na realização de si como pessoa, o que Nietzsche chama de “ausência de si” [11]·. Não nos resta dúvida de que as diversas aplicações e exigências da moral são na realidade uma forma de não deixar surgir a verdade sobre o lamentável oposto disso, isto é, que a humanidade esteve nas mãos dos sacerdotes.[12] A proposta do filósofo é que se faça um retorno no tempo e de apresentar que jamais houve “A Moral”, uma moral objetiva, absoluta. O que existem são “pequenas morais”, particulares, a partir de interesses. Destas, o cristianismo representa o seu apogeu[13]. A moral não tem Deus como origem ou espírito, mas os homens e, mais profundamente ainda, suas vontades e instintos[14].

Segundo Machado (1999), Nietzsche testifica que a sociedade, enquanto poderosos e instituições, é a principal responsável por criar os valores para toda a humanidade, mas sempre julgando se são ou não nocivos a si mesma[15]. Os valores de morais, segundo Nietzsche, são criados, em um primeiro momento, pelos nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento em oposto a tudo que se tem como baixo, vulgar plebeu, e sempre tendo como base seus próprios interesses. [16] Devido aos nobres se considerarem os superiores e por causa da distância de posição e pensamento, “tomaram para si o direito de criar valores, cunhar nomes para os valores: que lhes importava a utilidade.” [17] Mas o cristianismo, em segundo momento, inverte isso, fazendo nascer de si o espírito do ressentimento, e não, como se crê, do espírito, a grande revolta contra a dominação dos valores nobres[18]. Não são mais os nobres que criam a moral, mas os pobres, os fracos. Na obra “Genealogia da Moral”, são apresentados três argumentos para esse tipo de niilismo: o ressentimento, a má consciência e o ideal ascético.[19]

A respeito do ressentimento podemos dizer que é um termo técnico para designar a força dos fracos contra os fortes. Contribui para a criação de uma nova moral, moral do ressentimento, esta que se volta, pensa, favorece os fracos, e não os fortes, os poderosos. Este termo serve de crítica genealógica[20]. Por ele, propõe-se ao ser humano um voltar-se para si e se servir de forças para combater o poder dos melhores que se impõem. O fracassado tem consciência do que é, porém não possui força suficiente para se alegrar, o que incorre um desprezo de si, cansa, desgosta, despreza a si mesmo[21]. Por isso, o cristianismo é acusado, por Nietzsche, de alimentar uma ideia fraca no ser humano e consequentemente um ressentimento contra os valores aristocratas[22]. Visto que todos os seres humanos sempre desejam, querem e que os sacerdotes os alimentam com uma ideia fraca, isso acaba gerando seu aniquilamento, faze-nos pequenos, impede-nos de pensar, induze-nos a querer o nada[23].

Vimos, pois, em primeiro lugar, que a obra “Genealogia da Moral” é uma crítica feita a toda a tradição filosófica, à metafísica e ao cristianismo. Estes teriam forjado um conceito de moral que atendesse aos interesses e desejos das maiorias. E em segundo lugar, que a moral, para Nietzsche, não advém de leis ou instituições. Mas de um questionar o conceito de moral que fora recebido até então pela tradição filosófica, pala metafísica e pelo cristianismo, fazer uma releitura no que fora passado de geração para geração como indubitável, isso engendraria uma moral que proporcionará ao ser humano viver de forma mais autêntica, intensa, espontânea.

Referências

CAMUS, Sébastien et al. 100 obras-chave de filosofia. Trad. Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis: Vozes, 2010.

LEFRANC, Jean. Compreender Nietzsche. Trad.Lucia M. Endlich Orth. Petrópolis: vozes, 2005.

MACHADO, Roberto Cabral de Melo. Nietzsche e a verdade. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

______. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: companhia das letras, 1998.

SOUSA, Mauro Araujo de. Nietzsche: viver intensamente tornar-se o que se é. São Paulo: Paulus, 2009. (Coleção Filosofia em questão).

[1] NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia de moral. prefácio, § 2.

[2] MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade. p. 59.

[3] CAMUS, Sébastien et al. 100 obras-chave de filosofia. p. 20.

[4] CAMUS, Sébastien et al. 100 obras-chave de filosofia. p. 21.
[5] SOUSA, Mauro. Nietzsche. p. 14.

[6] SOUSA, Mauro. Nietzsche. p. 15.

[7] SOUSA, Mauro. Nietzsche. p. 16.

[8] NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. “Aurora”, § 1.

[9] MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade. p. 69.

[10] NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. “Aurora”, § 2.

[11] NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. “Aurora”, § 2.

[12] NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. “Aurora”, § 2.

[13] NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia de moral. I § 6.

[14] CAMUS, Sébastien… [et al]. 100 obras-chave de filosofia. p. 106.

[15] MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade. p. 63

[16] NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia de moral. I, § 2.

[17] NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia de moral. I, § 2.

[18] NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. “Genealogia da moral”, § 1.

[19] NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. “Genealogia da moral”, § 1.

[20] LEFRANC, Jean. Compreender Nietzsche. p. 155

[21] LEFRANC, Jean. Compreender Nietzsche. p. 155

[22] LEFRANC, Jean. Compreender Nietzsche. p. 146

[23] LEFRANC, Jean. Compreender

Postado em 02.11.2011 emhttp://pensamentoextemporaneo.com.br/
Por ALESSANDRO FERREIRA DE ANDRADE  BLANK

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