domingo, 24 de julho de 2016

Como chegamos a esse ponto?


"Minha alma de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão de meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!".
Livro de Soror Saudade, 1923)
Florbela Espanca.

Se o trecho a cima for lido rapidamente, a primeira impressão que passa é que se trata de uma declaração de amor a alguém. Mas se nos atentarmos mais um pouco, perceberemos que não precisa ser necessariamente a uma pessoa, pode ser a algo como um time de futebol, uma religião ou líder religioso, um trabalho, uma causa, um ideal, líder ou partido político.... Enfim, muitas coisas podem tornar-se a razão de vida ou a vida de alguém. Muitas coisas podem merecer receber uma "declaração de amor".

De modo simples, o que nos faz nos interessarmos, gostarmos ou amarmos algo ou alguém é o fato de nos identificarmos com ele. Algo na pessoa ou na coisa faz sentido para nós, nos representa, se encaixa em nossa visão de nós mesmos e do mundo; contém algo que gostaríamos de ter; permite que projetemos aspectos nossos.

Assim, quanto mais nos identificamos com algo, mais intensamente gostamos dele. No entanto, para haver identificação precisa existir identidade. Cada um de nós possui um conjunto de características e traços próprios, que nos diferenciam das outras pessoas e fazem com que sejamos quem somos. O processo de construção de quem somos ou da nossa identidade é contínuo, ele tem como base em características herdadas de nossos pais que já nascem conosco, mas o ambiente externo e as experiências que vivemos todos os dias influenciam muito quem fomos, somos e seremos.

Se uma pessoa é estimulada a ser quem é e sente-se aceita e amada assim, ela vai ter mais clareza para saber do que gosta e demonstrará isso aos outros. Por outro lado, se ser quem se é gera consequências negativas, a pessoa aprende que só vai ser aceita se deixar de ser quem é e passar a ser o que os outros esperam. Nesse caso, a pessoa pode não conseguir admitir do que gosta nem para si mesma quanto mais conseguir demonstrar isso ao mundo.

Pessoas seguras de sua identidade podem identificar-se fortemente com um time de futebol, uma religião, um trabalho ou um partido político porque encontram nessas coisas afinidades, elas a representam. Essas pessoas podem dedicar-se muito a uma ou mais dessas coisas, elas podem dar muito sentido a suas vidas, mas essa dedicação não as cega, pois a pessoa entende que a coisa é uma parte do que ela é e não exatamente tudo o que ela é.

Pessoas que não foram estimuladas a ser o que realmente são, buscam o que devem ser fora delas e se identificam com as coisas para preencher vazios, para fugir de sua caótica realidade e para tentar recuperar sua auto-estima. Assim, fica fácil se fundir com o objeto de sua identificação, transformando-se nele e dedicando-se a ele de forma compulsiva. Essa pessoa não sabe quem é, então, não se identifica com várias coisas, mas se agarra fortemente a uma só. Ela não tem certeza se aquilo realmente a representa, então, não aceita questionamentos e não debate, impõe seu modo de pensar. Não quer ser colocada em contato com outros jeitos de ser, pois ficaria perdida, então, usa o preconceito para se convencer de que seu jeito é o único que é certo e se afasta de tudo o que é diferente, fechando-se em um mundo onde não tenha que pensar sobre quem realmente é.

Defender uma causa deixa de ser um sonho e passa a ser uma missão, pois significa defender a si mesmo. Pessoas se tornam inimigos e conspiradores que devem ser banidos simplesmente porque pensam diferente. O mundo é dividido entre bem e mal, práticas violentas são aceitáveis e entendidas como necessárias, e quando se tenta chama-los à razão, alguns se comportam como se estivessem delirando, dando argumentos e explicações sem lógica para suas atitudes.

Se pensarmos em um jovem inseguro em relação à sua identidade, que, por influência de amigos, ingressa em uma torcida organizada, por exemplo. Ele ganha um grupo para pertencer, supostos amigos, reconhecimento, sua vida ganha sentido porque ele tem um papel e uma missão e sua auto-estima passa a existir, pois ele se enxerga agora como mais forte, mais poderoso, indestrutível. O que ele perde? Amigos que pensam diferente, outras possibilidades de vida, e pode passar a ter conflitos morais e éticos, pois tem alguns valores próprios e sabe o que é certo e errado. Mas para agradar o grupo e não perder tudo o que conquistou,faz coisas que não gostaria e enfraquece mais ainda sua identidade, pois passa a depender mais ainda do grupo para fugir de si mesmo.

Não quero dizer com isso que pessoas seguras de suas identidades não possam se tornar fanáticas nem, muito menos que todas as pessoas que tiveram dificuldades na construção de suas identidades vão virar fanáticos. Quero dizer, sim, que há muito sofrimento por trás do fanatismo, que ele é mais um sintoma de uma sociedade que adoece mais gravemente a cada dia. Certamente, temos que punir os crimes que essas pessoas possam vir a cometer, mas só isso não basta. Precisamos deles para tentar entender o que não deu certo? Como chegamos a esse ponto?. Esse texto não se propõe a dar as respostas, mas a fazer a pergunta.


Para finalizar, gostaria de enfatizar que não uso o termo "identidade frágil" como sinonimo de "cabeça fraca", que é pejorativo e implica um juízo de valor. As pessoas que passam pela situação que descrevo fizeram o melhor que podiam para enfrentar os mais variados tipo de situações adversas em suas vidas. Continuo acreditando, por mais difícil que pareça, às vezes, que ninguém escolhe sofrer ou fazer sofrer. Mas concordo, também, que certos tipos de atitudes são injustificáveis. De minha parte me sinto um pouco responsável por elas, pois pertenço à sociedade que fornece as condições para tais atos. Justificável ou não, procuro fazer minha parte para mudar isso.

Por RENATA PEREIRA












-Psicóloga formada pela Universidade Prebsteriana Mackenzie;
-Especialista em Terapia Comportamental Cognitiva pelo Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP;e
Atende adolescentes e adultos em psicoterapia individual e em grupo.
CONTATOS:
Email: renatapereira548@gmail.com
Twitter:@Repereira548

5 comentários:

  1. Texto muito bem explicitado,com grande conhecimento de causa.Parabéns, Renata!

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    1. Muito obrigada por ler o Blog do Werneck e por ter apreciado o artigo!!!

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  2. Parabéns!Renata pelo texto..
    Nos agregou conhecimentos...

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  3. Muito obrigada por ler o Blog do Weneck e por ter apreciado o artigo!!!

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