Quanto a questão da responsabilidade penal, deve-se ponderar o seguinte: o crime de sonegação fiscal não é um meio coercitivo de cobrança de tributos, pois bastaria o não pagamento de um tributo para que tal conduta gerasse obrigatoriamente um crime.
Perquirir a respeito da existência de fraude e seu potencial conhecimento pelo dirigente da empresa é o objetivo da ação penal. Com efeito, uma condenação criminal exige a demonstração de um nexo de causalidade entre a conduta do administrador e a prática da sonegação fiscal, nos termos do artigo 13 e 29 do CP.
Neste aspecto, o Superior Tribunal de Justiça entende que “a conduta de inadimplir o crédito tributário, de per si, pode não constituir crime. Caso o sujeito passivo declare todos os fatos geradores à Administração Tributária, conforme periodicidade exigida em lei, cumpra as obrigações tributárias acessórias e mantenha a escrituração contábil regular, não há falar em sonegação fiscal (Lei 8.137⁄1990, art. 1º), mas mero inadimplemento, passível de execução fiscal. Os crimes contra a ordem tributária, exceto o de apropriação indébita tributária e previdenciária, além do inadimplemento, pressupõem a ocorrência de alguma forma de fraude, que poderá ser consubstanciada em omissão de declaração, falsificação material ou ideológica, utilização de documentos material ou ideologicamente falsos, simulação, dentro outros meios” (RHC 72.074/MG, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 06/10/2016, DJe 19/10/2016).
Da mesma forma, o mesmo julgado sustenta que “imprescindível explicitar o liame do fato descrito com a pessoa do denunciado, malgrado a desnecessidade da pormenorização das condutas, até pelas comuns limitações de elementos de informações angariados nos crimes societários, por ocasião do oferecimento da denúncia, sob pena de inviabilizar a persecução penal nesses crimes. A acusação deve correlacionar com o mínimo de concretude os fatos delituosos com a atividade do acusado, não sendo suficiente a condição de sócio da sociedade, sob pena de responsabilização objetiva”.
Ademais, na fase instrutória, cabe ao Ministério Público, a teor do artigo 156 do CPP, o ônus de demonstrar e provar tal nexo, não bastando sua simples condição de administrador como suficiente para uma responsabilização penal.
Neste sentido:
HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. SISTEMA ACUSATÓRIO. INTELIGÊNCIA DO ART. 156 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. DECISÃO CONDENATÓRIA. FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. IMPOSSIBILIDADE. DOCUMENTO APRESENTADO PELA DEFESA IGNORADO PELO ÓRGÃO JULGADOR. VIOLAÇÃO DO DEVIDO PROCESSO PENAL E INFRINGÊNCIA AOS ARTIGOS 231 E 400 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. CONSTRANGIMENTO EVIDENCIADO. ORDEM CONCEDIDA.
1. O órgão acusador tem a obrigação jurídica de provar o alegado e não o réu demonstrar sua inocência.
2. É característica inafastável do sistema processual penal acusatório o ônus da prova da acusação, sendo vedado, nessa linha de raciocínio, a inversão do ônus da prova, nos termos do art. 156 do Código de Processo Penal.
3. Carece de fundamentação idônea a decisão condenatória que impõe ao recorrente a prova de sua inocência, bem como ignora documento apresentado pela Defesa a teor dos artigos 231 e 400 do Código de Processo Penal.
4. ORDEM CONCEDIDA para anular a decisão condenatória, para que outro julgamento seja proferido, apreciando-se, inclusive, a prova documental ignorada.
(HC 27.684/AM, Rel. Ministro PAULO MEDINA, SEXTA TURMA, julgado em 15.03.2007, DJ 09.04.2007 p. 267)
Com efeito, por mais que o administrador tenha responsabilidade tributária (CTN, art. 136), na esfera penal não basta ser sócio, deve-se aderir – ao menos – à conduta criminosa ou ter potencial conhecimento de que ela ocorrerá.
Na esfera penal “o simples fato de o réu ser proprietário de posto de gasolina não autoriza a instauração de processo criminal por crimes supostamente praticados no âmbito da sociedade, se não restar comprovado, ainda que com elementos a seremaprofundados no decorrer da ação penal, a mínimarelação de causa e efeito entre as imputações e a condição de dirigente da empresa, sob pena de se reconhecer a responsabilidade penal objetiva” (RHC 19.734/RO, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 26/09/2006, DJ 23/10/2006 p. 328).
Ademais, muitos produtos estão sujeitos ao regimento de substituição tributária, não havendo que se falar em responsabilidade penal solidária:
“a absolvição que se proclama tem por estribo unicamente a vigência do regime de substituição tributária - que atribui a incumbência do recolhimento do ICMS às distribuidoras de combustíveis (artigo 8o, inciso III, alínea "a", da Lei Paulista n° 6.374/89). Afinal, ao contrário do que pretende a autora, é incabível deslocar-se indistintamente a responsabilidade solidária estipulada no âmbito do Direito Tributário pelo art. 112, I, do RICMS de São Paulo, para o campo do Direito Penal, sob pena de responsabilizar-se objetivamente o agente. Para tanto far-se-ia necessária a prova inequívoca do dolo do acusado em concorrer para a sonegação fiscal em proveito do contribuinte principal, o que não ficou evidenciado nestes autos” (TJSP – Apelação nº 993.08.023093-5 – 3ª Câmara de Direito Criminal – Rel. Des. Geraldo Wohlers – j. 10.08.10).
Por tudo que foi exposto, deve o Ministério Público não se limitar a transcrever trechos dos tipos penais imputados e indicar simplesmente a condição de administrador do acusado, tendo efetivamente que descrever os atos fraudulentos utilizados para a realização da evasão fiscal, além de vincular concretamente, com verossimilhança, as condutas descritas às funções ordinariamente exercidas por um administrador e provar, durante a instrução penal o nexo de causalidade entre a conduta do dirigente e o tipo penal que lhe é imputado, sob pena de reconhecer-se uma indevida responsabilidade penal objetiva.
POR EVANDRO CAMILO VIEIRA
-Advogado;
-Pós-graduado em Direito Penal Econômico (FGV/SP);
-Coordenador do Grupo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da FGV/SP;
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