Autora: Sylvia Regina Emygdio Pereira (*)
Pensei bastante sobre o que deveria escrever a respeito da Propriedade Intelectual, matéria de teoria tão vasta e tão importante, que, com suas criações, obras, sinais, e invenções, podemos dizer, auxilia a compor e a materializar o arcabouço cultural da humanidade e, mais que tudo, faz-se responsável pela materialização do sonho sonhado pelo ser humano, que ao materializá-lo sob alguma forma criativa escolhida, coloca seu infinito interior a viver e conviver com todos, influenciando e sendo influenciado nesta dimensão da realidade.
Contudo, não obstante toda a importância da Propriedade Intelectual, seu conhecimento e respectivo ensinamento no Brasil são, ainda, relegados e deficientes, da mesma maneira que seu aprendizado e a aplicação correta e justa de suas normas e diretrizes.
Para este artigo, pensei, em relatar a respeito de um momento importante que vivi há poucos meses, quando minha filha, genro, netinhas e netinho vieram passar o final do ano no Brasil e eu, comentando com eles a respeito do uso contrafator de criação arquitetônica em franquia, ouvi de minha netinha de 10 anos, que está no 5º ano de sua escola no Canadá, o seguinte: "vovó, eu sei, estudei isso no 3º ano, chama-se "copyright", e eu aprendi que não se pode copiar nada de ninguém, sem antes pedir a autorização de quem criou isso. Se eu fizer isso, alguma vez na escola, terei nota muito baixa, e se eu estiver já no ginásio, serei expulsa da escola...". Isso me fez pensar muito a respeito do progresso inerente a alguns países...
Pensar que aqui, no Brasil, mesmo as Faculdades e os cursos técnicos, responsáveis pela formação de futuros profissionais - cuja matéria prima de seus trabalhos e serviços é e será seu sonho criativo e a sua consequente criação – nada ou muito pouco ensinam a respeito de criatividade, da criação, e de suas respectivas normas, direitos, e aplicações... como, por exemplo, as Faculdades de Belas Artes, Arquitetura, Design, Música, Cinema, Engenharia, Marketing e Propaganda, Tecnologias, Relações Exteriores e muitas outras. Ainda pior, é pensar que, nessa mesma perspectiva, estão as Faculdades de Direito, que preparam e ensinam os futuros advogados e os futuros Julgadores deste país, pois que não se detêm sobre os Direitos de Autor, as Patentes, Marcas, Tecnologias, e muitos outros conceitos e institutos de tanta importância atual e internacional, relativos aos chamados "direitos imateriais"...
Pensei em relatar, também, alguns casos vividos por mim e por colegas que servem esta área, ocorridos pelo caminho de tantos anos, como sobre o Juiz que, ao saber que o cerne guerreado na lide, sob sua tutela, era uma discussão sobre a publicação de um livro, e que se manifestou a respeito, no sentido da aplicação à causa da Lei de Imprensa, (por se tratar de um livro impresso...!?! ) desconhecendo que o livro continha uma obra autoral criativa, com inerentes direitos de seu criador, plenamente regulados por Lei específica, a Lei n.º 9.610 de 19/02/1998, e que essa Lei autoral, em seus Artigos 53 e seguintes, expressamente, dispõe e regula a respeito da correta edição de obra literária, artística e científica, assim como, esclarece e fixa a maioria de seus respectivos detalhes legais de importância.
Entretanto, não obstante a existência dessa legislação específica e solidificada há tantos anos, muitos autores - em seu sonho por ver sua obra publicada em um livro e, diga-se, na prática de uma 'inútil vaidade de artista' - celebram, com editoras que desconhecem ou que ‘procuram desconhecer’ a normatização legal específica - contratos de cessão para a sua obra (sim, de cessão e não de edição...), firmando cláusulas que possibilitam a editora tomar e realizar o que bem entender com a criação-obra do autor, porque a cessão opera os efeitos de uma compra e venda, e o autor (cedente) aliena seus direitos autorais patrimoniais e os transfere à titularidade da editora (cessionária), que adquire a titularidade da obra criada e todos os seus direitos autorais patrimoniais pertinentes.
Assim, com a celebração desses contratos de cessão, deixam de cumprir o ordenamento legal específico e correto, que prescreve detalhadamente a respeito da edição de obra conforme previsto na Lei Autoral, deixando de fixar aspectos de muita importância aos direitos dos autores e criadores das obras, como o número de edições e de livros a ser publicado em cada edição; a possibilidade de tradução; a de adaptações; partição da obra em volumes; além de outras modificações na obra do autor; o preço; a prestação de contas dos direitos autorais devidos ao autor, dentre outros detalhes de bastante importância. A alegria do autor com a publicação de sua criação, e, normalmente, a falta de assessoria especializada, supera qualquer possibilidade de um olhar mais acurado e a compreensão verdadeira e efetiva na leitura do contrato de cessão que é assinado!
O mais correto, antes da celebração de um contrato desse tipo, seria a consulta a um especialista, conhecedor na área da Propriedade Intelectual e dos direitos autorais... Ou, simplesmente, será que é mais fácil e mais rentável ignorar esses especialistas, assim como, toda uma estrutura jurídica já bem consolidada, embora, tão pouco conhecida e divulgada.
E, assim, na falta de interesse (proposital?) os direitos intelectuais e imateriais vão se perdendo, e a matéria sendo mais desconhecida e relegada no Brasil, além de muitos autores e criadores continuarem a conviver com uma situação demeritória, porque não recebem seus devidos créditos e respectivos direitos autorais - (e, por favor, atentem que são direitos autorais e não são "royalties", pois que estes correspondem à retribuição específica das marcas e patentes) - enquanto suas obras e livros respectivos, muitas vezes, continuam a ter sucesso e a serem muito vendidos e procurados, tanto sob a forma digital, como em papel.
De seu lado, esses autores e criadores, desrespeitados, e sem receber as suas devidas e justas remunerações - mesmo que, no decorrer do tempo, algumas vezes tenham vislumbrado uma melhor situação de ganhos e de respeito em outra contratação de sua criação, veem-se presos ao seu contrato de cessão originário, que erradamente regulara a publicação de sua obra, muitas vezes, por um prazo longuíssimo ou indeterminado, havendo, ainda, além disso, a possibilidade da obra haver se esgotada no mercado, sem qualquer preocupação de reedições ou novas tiragens por parte da Editora... restando ao Autor a impotência de nada poder fazer pacificamente. Mas, com tudo isso, como fica o respeito à obra criativa contida nesse produto?
Com a cessão, resta ao autor da obra criada somente os direitos autorais morais, que são inalienáveis e irrenunciáveis, não podendo ser negociados. Dentre esses direitos morais, que são de cunho personalíssimo, salientam-se o de sempre reivindicar a autoria da obra, de ter o nome do autor sempre indicado, o de manter a obra inédita, o de assegura a integridade da obra e de se opor à sua modificação, o de modificar sua criação e obra, podendo até retirar a obra de circulação e suspender alguma utilização afrontadora à reputação e imagem do autor.
A vigência dos direitos autorais, no Brasil, é de 70 anos, sucedendo ao autor, obedecida a ordem de seus sucessores segundo a lei civil nacional.
Poderíamos contar muitos casos e desafios que a prática de tantos anos acumulou, e tanto tentou desestimular... e, também, se poderia comentar a respeito do uso desautorizado de obras e criações dos mais variados tipos, que são copiadas e usadas sem a devida e indispensável autorização de seu autor ou titular, sequer sem seu devido crédito, colocadas a circular na Internet, preenchendo indevidamente inúmeras páginas digitais! Mas, este é um assunto extenso e triste e fica para outro artigo, não antes de reafirmar que o uso indevido e contrafator realizado no mundo real, é tão criminoso quanto o uso indevido, desautorizado, e contrafator realizado no mundo virtual, ou em qualquer outro meio, suporte, ambiente, sistema, ou dimensão, hoje conhecido ou que venham a ser descoberto ou inventado, inclusive no metaverso... E, para confirmar a afirmação, também está ai a Lei penal e seus artigos 184 e 186.
Mas, nem tudo são lágrimas e lamentações... uma das grandes vitórias da área, foi o caso de um Professor universitário de uma grande Universidade que registrara indevidamente, em seu nome, a criação e respectiva obra cinematográfica de autoria de um de seus alunos - que fora vencedora de um prêmio universitário e, como premio, havia sido transformada em um filme - fazendo o público crer que o Professor fosse o verdadeiro autor da obra. Essa situação foi devidamente apresentada e compreendida pelo Juiz da lide, que determinou que o Professor renunciasse à paternidade da obra junto aos Registros Oficiais de Direitos Autorais. Além disso, o Julgador concedeu uma liminar suspendendo a exibição do filme, que teve tempo de ser produzido durante o transcurso do processo, na sua respectiva sessão de premiação. Aqui, o peso de uma decisão correta e justa salvou de morte o talento e a carreira que se iniciava de um promissor diretor de cinema nacional, indo, ainda, contra o poder e a ganância, valorizando e preservando a Verdade e possibilitado que a criação, corporificada por intermédio das palavras e imagens criadas pelo seu verdadeiro autor, pudesse continuar a contribuir neste universo.
Enfim, o que é preciso é que seja compreendido, profunda e amplamente, o seguinte: que sem o criador e sem sua criação intelectual e respectivas obras, inventos e sinais, não existiriam sequer as editoras, muitas indústrias, e muito do desenvolvimento alcançado, além de todo o aproveitamento econômico do bem intelectual criado. Portanto, cabe a todos nós cuidarmos muito bem desses bens imateriais!
Também louvável foi a atitude de alguns Órgãos públicos governamentais, que buscaram o aprendizado e a orientação correta para os seus específicos programas e respectivos contratos que lidavam com a compra de inúmeras obras, e que antes de receberem as informações corretas a respeito do típico contrato de edição, essas criações e respectivas obras já haviam sido negociadas e adquiridas, muitas vezes, por esses Órgãos fomentadores, sem sequer o conhecimento de seus autores, em compras de milhões de exemplares contra enormes vultos financeiros, pois as editoras, de posse de contratos de cessão firmados com seus respectivos autores, muitos há muitos e muitos anos, negociavam as obras como se somente suas fossem, diretamente com o Órgão comprador, não recebendo os efetivos autores das obras e criações comercializadas, na maioria das vezes, sequer o prévio conhecimento dessa negociação, muito menos os devidos e indispensáveis direitos autorais remuneratórios pelo seu empenho criativo...
Dessas explicações - que tentamos fossem as mais sucintas - pode-se facilmente verificar que o desconhecimento desta matéria, pelo autor, a respeito de sua propriedade intelectual e de sua criação, facilmente, o conduz a que a editora lhe apresente um contrato de cessão para a sua assinatura, e, muitas vezes, a editora, em boa-fé também, por falta de conhecimento legal e de uma assessoria especializada na área em que atua, apresenta ao autor um contrato de cessão, achando que é a única forma correta para poder publicar uma obra.
É por isso que, havendo oportunidade, procuro falar e motivar sobre o direito imaterial e a propriedade intelectual, de reflexos profundos e importantes ao avanço de nossa humanidade, com a valorização necessária do homem criador, pois não se pode esquecer o que, há muito tempo, de forma otimista, escreveu William Shakespeare: "que obra prima é o homem! Como é nobre pela razão! Quão infinito pelas capacidades! Como é significativo e admirável na forma e nos movimentos! Nos atos quão semelhante aos anjos! Na apreensão, como se próxima dos deuses adorno do mundo, modelo das criaturas (...)" (W. Shakespeare, Hamlet, II, ii).
Por fim, pensei em prestar uma homenagem a meu pai que, nesta data - intuitivamente escolhida pelo caro colega Raphael Werneck para a publicação do meu artigo - completaria, hoje, 28 de março, 101 anos de idade, pois que viveu muito pouco, tendo morrido aos 54 anos – mas, que, nas décadas de 60 e 70, ao lado de sua especialidade, o direito imobiliário, pode advogar com orgulho e ousadia em Propriedade Intelectual, defendendo diversas patentes, no Brasil e no exterior, advogando para a TV Tupi, os Diários Associados, os Discos Copacabana, a Casa Beviláqua, a Lex, dentre outros. Cresci ouvindo sobre essas histórias e aprendi a advogar, primeiro como sua estagiária, observando-o e vendo-o como aplicava o direito, sempre na forma que ensinava e afirmava: advogar é uma forma de servir!
Com tudo isso, pude realmente comprovar que todo o infinito que há no homem acaba por se demonstrar e corporificar em sua criação e deve ser protegido e defendido bravamente da forma justa e correta!
*SYLVIA REGINA DE CARVALHO EMYGDIO PEREIRA
-Advogada graduada pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (1972);
-Mestrado em Direito (L.L.M.) na New York University em "Trade Regulation" com especialização em propriedade intelectual (1974);
-Membro da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção de São Paulo, sob o nº 31.479; e
-Fundadora do escritório "Emygdio Pereira Advogados Associados";
-Sócia Fundadora do IIDA- Instituto Interamericano de Direito de Autor/USO e do LIBRAS - Licenciantes do Brasil em Direitos do Autor e
-Ministra aulas de Propriedade Intelectual em diversas Faculdades.
Nota do Editor:
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