À guisa de introdução ao tema, é imperioso deixar claro que a teoria do adimplemento substancial não visa, em seu conteúdo, criar uma regra em que os contratos entabulados entre partes sejam, necessariamente, relativizados no que tange ao seu cumprimento. Muito pelo contrário, os princípios norteadores dos contratos devem ser precisamente observados, contudo, diante de uma ótica mais próxima da realidade fática.
A teoria aqui tratada surgiu diante da necessidade eminente de se superar certos formalismos exacerbados na execução do contrato, quer com isso dizer que, muito embora o credor tenha o direito de receber sua quota parte contratual, não o pode fazer sem respeitar os princípios primorosos da boa-fé objetiva (art. 422 CC), a função social do contrato (art. 421 CC), a vedação ao abuso do direito (art. 187 CC) e a vedação ao locupletamento ilícito (art. 884 CC).
Pois bem. No atual cotidiano moderno, em que as facilidades de crédito para aquisição de bens móveis e imóveis alcançaram grande parte da população, ainda que diante de uma crise política e financeira no país, não são raros os contratos de alienação fiduciária que diariamente são pactuados, em sua grande maioria tendo como objeto veículos em geral.
Com o aumento dos pactos fiduciários, também cresce o número de contratantes inadimplentes, o que gera o rompimento da obrigação contratual e, com isso, o direito da instituição financeira em cobrar ou reaver o bem negociado com o devedor, eis que nos referidos contratos o devedor possui tão somente a posse direta do bem, restando a propriedade, até adimplemento integral, para o prestador do serviço. Nesse momento surge a chamada busca e apreensão, em se tratando de bem móvel, que nada mais é do que uma maneira do credor ser ter o bem restituído diante da inadimplência do devedor.
Porém, a busca e apreensão deve observar uma série de requisitos antes mesmo de ser instaurada, como a notificação previa do devedor quanto aos débitos em aberto, a intimação deste pessoalmente no endereço mencionado no contrato, entre outros que não comungam com a teoria proposta, já que esta visa assegurar a suspensão da busca e apreensão, única e exclusivamente, diante do adimplemento de maior parte do contrato.
Essa teoria assegura a vedação da resolução do contrato tendo em vista os princípios que o fundamentam, quando o devedor não cumpre integralmente com sua obrigação de forma plena mas aproxima-se, consideravelmente, deste resultado final.
Obtempere-se que a caracterização do adimplemento substancial não se dá de forma simples, necessitando de requisitos específicos, que são comumente analisados pelos tribunais superiores. O primeiro acórdão proferido sobre a matéria foi de autoria do Min. do STJ Ruy Rosado Aguiar Jr. e até hoje é observado como norteador da matéria, já que cita os seguintes requisitos: a um, a existência de expectativas legitimas geradas pelo comportamento das partes; a dois, o pagamento faltante deve ser ínfimo se comparado com o total do contrato; a três, a possibilidade de conservação da eficácia do negócio sem prejuízo ao direito do credor de pleitear a quantia devida por meios ordinários.
Pelo amor ao tema, note-se que um dos requisitos nos remonta à ideia de valor ínfimo da dívida em comparação ao total do negócio, nesse ponto existe grande discussão acerca de “o que seria valor ínfimo”. Para tanto, em se tratando do entendimento do STJ, vários são os julgados que atribuíram ao valor ínfimo a importância de 20% e até mesmo de 14%, conforme julgados dos Resp 469.577/SC e Resp. 1051270/RS, respectivamente. Porém, trata-se de matéria extremamente subjetiva a ser analisada caso a caso.
Nota-se que o adimplemento substancial fundamenta-se na limitação do exercício do direito do credor diante da boa-fé que é esperada, salvaguardando-se a função social do contrato que estaria sendo assegurada o que, por consequência, também atrai a primazia da conservação dos negócios jurídicos.
Em outras palavras, o adimplemento substancial visa assegurar a eficácia do contrato, diante de sua função social, para que este possa ser devidamente adimplido por todos os contratantes, afastando-se a ideia de resolução deste por inadimplemento ínfimo.
Para melhor ilustrar o tema, seguem alguns julgados em que fora utilizada a teoria do adimplemento substancial:
"ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA - BUSCA E APREENSÃO - FALTA DA ÚLTIMA PRESTAÇÃO - ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL - O cumprimento do contrato de financiamento, com a falta apenas da última prestação, não autoriza o credor a lançar mão da ação de busca e apreensão, em lugar da cobrança da parcela faltante. O adimplemento substancial do contrato pelo devedor não autoriza ao credor a propositura de ação para a extinção do contrato, salvo se demonstrada a perda do interesse na continuidade da execução, que não é o caso. Na espécie, ainda houve a consignação judicial do valor da última parcela. Não atende à exigência da boa-fé objetiva a atitude do credor que desconhece esses fatos e promove a busca e apreensão, com pedido liminar de reintegração de posse. Recurso não conhecido. (REsp 272.739/MG, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 01.03.2001, DJ 02.04.2001 p. 299).”
“AGRAVO REGIMENTAL. VENDA COM RESERVA DE DOMÍNIO. BUSCA E APREENSÃO. INDEFERIMENTO. ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL DO CONTRATO. COMPROVAÇÃO. REEXAME DE PROVA. SÚMULA 7/STJ. 1. Tendo o decisum do Tribunal de origem reconhecido o não cabimento da busca e apreensão em razão do adimplemento substancial do contrato, a apreciação da controvérsia importa em reexame do conjunto probatório dos autos, razão por que não pode ser conhecida em sede de recurso especial, ut súmula 07/STJ. 2. Agravo regimental não provido. (AgRg no Ag 607.406/RS, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julgado em 09/11/2004, -fé DJ 29/11/2004 p. 346).”
Diante todo o exposto, percebe-se que a aplicação da teoria proposta é de fato muito instável, tendo em vista a ausência de previsão legal objetiva, mas tão somente previsão de princípios que a fundamentem. Para tanto, nota-se a imprescindível necessidade de interpretações jurisprudenciais e doutrinárias que deem substancia para a aplicação diária da teoria até que eventualmente possua uma legislação própria que a regulamente.
In fine, pelo senso de justiça comum a teoria encontra lugar diante de todo arcabouço jurídico, eis que a resolução do contrato em detrimento de uma das partes que já o cumpriu quase que em sua totalidade é uma maneira arbitraria e injusta de se buscar seu adimplemento integral. De outro lado, a boa fé que é esperada nesses negócios jurídicos se remonta a tempos passados, quando a ideia do adimplemento substancial iniciou-se, o que obviamente não coaduna com a nossa realidade.
Desta feita, reserva-se para os julgadores a árdua atribuição de analisarem os requisitos e a condição do contrato para aplicarem, ou não, a teoria e suspenderem eventuais abusos de direitos.
Referências:
BRASIL, Código Civil. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. In Vade Mecum Acadêmico de Direito 7. ed. São Paulo: RT, 2015;
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Órgão Julgador: 4ª Turma. REsp 272.739/MG, Relator: Ruy Rosado de Aguiar. Data do julgamento: 01.03.2001. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON>. Acesso em: 23 out. 2009
______, Código de Defesa do Consumidor, Lei. 8.078 de 11 de setembro de 1990. In Vade Mecum Acadêmico de Direito 7. ed. São Paulo: RT, 2015;
http://www.conjur.com.br/2015-jun-29/direito-civil-atual-interpretacao-doutrina-adimplemento-substancial-parte#_ftn6 – acesso em 20 de junho de 2016;
Por ALVARO FERREIRA NETO
– Formado em 2015 pela Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce – FADIVALE;
- Advogado no escritório de advocacia Nalon e Ribeiro Advogados (http://nalonribeiroadvogados.adv.br/)
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Esclarecedor e muito útil para os dias atuais. Parabéns!!
ResponderExcluirEsclarecedor e muito útil para os dias atuais. Parabéns!
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