Era uma
segunda-feira qualquer. Tinha saído do serviço e estava a caminho da
universidade. Em minha cabeça, muitos pensamentos rolavam. Eu teria prova de
economia naquele dia e não havia estudado praticamente nada do conteúdo apreendido.
Na ansiedade dos meus 19 anos, eu havia passado o final de semana em baladas,
dispondo com amigos o tempo que tinha para me preparar. E agora, naquele
momento, restavam-me como consolo para recuperar o tempo perdido, apenas
aqueles minutos em que aguardava sentado, num dos frios bancos de concreto da
estação Santana do metrô de São Paulo, a chegada do ônibus que me levaria ao
destino desejado.
Foquei meus
pensamentos e pouco a pouco esmiuçava os conteúdos da prova. Estava alheio a
qualquer coisa que acontecia ao meu redor. Era uma das primeiras provas que eu
teria no semestre e o medo de uma possível reprovação tomava minha mente, mas
essa era uma perspectiva da qual eu não podia me dispor. Eu trabalhava para
pagar meus estudos e, ainda assim, meus ganhos não eram suficientes para arcar
com os custos da mensalidade, cuja prestação era completada com a ajuda que
meus pais ainda me davam.
Sobre meus
pais, bem... naquela época, a situação financeira do país estava meio
complicada. Meu pai, desempregado, sofria com fortes dores nas pernas por causa
de um reumatismo que o afetava. Minha mãe recebia um salário mínimo como pensão
do INSS e passava boa parte do seu tempo cortando cabelos, costurando e fazendo
blusas de tricô para aumentar nossa renda familiar e ainda me ajudar, no que
podia, com os gastos de meus estudos. Tempos incrivelmente difíceis! Estávamos
iniciando o plano real e não sabíamos o que poderia acontecer. A sociedade
estava muito apreensiva na ocasião.
Envolvido com os conceitos relacionados à
demanda, à lei da oferta e da procura, eu procurava me concentrar nas anotações
esboçadas em meu caderno e nos conceitos trazidos no livro. Puxava setas,
circulava informações, fazia observações, valia-me do que era possível a fim de
guardar o mínimo necessário para a realização da prova, e, de fato, não estava
nem aí para os acontecimentos ao meu redor. Queria mesmo, e desesperadamente,
me apropriar do mínimo que fosse a fim de garantir o necessário à minha
aprovação, até que, de repente, uma voz interrompeu minha concentração:
- Tio, compra
uma lixa!
Naquela hora,
nem olhei para a cara de quem me chamava. Não queria esboçar qualquer tipo de
conversa. Fingi que não era comigo e continuei meus estudos. Mas ele insistiu.
E, dessa vez, se não bastasse simplesmente utilizar-se da fala, ensaiou um
cutucão na minha perna:
- Tio, por
favor, compra uma lixa!
Indignado e meio
estressado, parei o que estava fazendo. Em meu pensamento tinha uma única
vontade, afastar de perto de mim aquele que me incomodava. Então, rispidamente,
respondi:
- Não tenho
dinheiro!
O garoto
sentou-se ao meu lado. Nesse momento, com o olhar aos cantos, eu o observei com
mais atenção. Devia ter, no máximo, cinco anos de idade. Era maltrapilho, estava
sujo, nariz escorrendo, mas, certamente, um rapazinho muito bonitinho e ávido
em conversar.
- Tio, o que
está fazendo?
Ainda sem
muita paciência, e com a mente lançada à prova que dali a pouco iria fazer, eu
respondi com muita má vontade:
- Estou estudando.
Olhos para
cima, como se estivesse pensando o que acontecia, ele interpôs:
- Desse
tamanhão e ainda estuda?
Achei graça.
E naquele momento estendi a conversa:
- Pois é!
Desse tamanhão e ainda estudo – respondi. E, na tentativa de confrontá-lo, logo
perguntei:
- E você,
desse tamanhinho todo, o que faz?
- Eu vendo
lixas, oras!
A resposta
que ele me deu naquele momento soou de duas maneiras para mim. A primeira,
tamanha naturalidade de sua fala, era como se fosse extremamente comum uma
criança daquele tamanho vender lixa por aí. E a segunda que, pela carinha que
ele fez, de certa forma, foi a que mais me incomodou, afinal, ele já havia me
dito que estava vendendo lixas e eu, obviamente, ainda esboçava desnecessária incapacidade
intelectual ao questioná-lo sobre o que ele fazia por ali.
- E sua mãe
sabe que você está aqui? - Indaguei.
- A minha mãe
sabe. Ela está doente. Aí a gente tem que levar dinheiro para comprar pão,
leite...
- Mas quem cuida
de você aqui? – Insisti.
- É aquela
mulher! – Ele apontou com o dedo para uma senhora. Ela ficava sentada em um
gramado e tinha em torno de si muitas crianças. Ali, pelo que eu pude perceber,
ela recolhia de cada um os centavos obtidos com a venda das lixas.
Fiquei
estarrecido por um instante.
Dias atrás eu
havia assistido a uma reportagem que falava sobre as “mães da rua” e muitas
situações, como a que eu estava presenciando naquele instante, haviam sido
relatadas pelo repórter durante a sua apresentação.
As “mães da
rua” eram mulheres que aproveitavam de crianças, tirando-lhes a infância, para
explorar sua capacidade de trabalho. Mulheres que abusavam do trabalho infantil
e que davam, às crianças que aliciavam, algumas quinquilharias em troca do que
faziam.
Tentando
melhor compreender a situação, perguntei ao garoto:
- E quanto
você ganha por cada maço de lixa que vende?
Cada maço era
composto por cinco lixas e custava vinte e cinco centavos. Ele, então, me
respondeu que ganhava por cada maço vendido, uma moedinha de cinco centavos.
Economicamente, confesso, pois estava com os
conteúdos de minha prova na cabeça, até achei o negócio interessante. Afinal de
contas, ele tinha uma comissão de vinte por cento sobre cada produto vendido,
mas é claro, pensamentos insanos à parte, fiquei completamente consternado ao
me dar conta de quem era aquele garoto e do que ele fazia ali. Tive vontade de
sair e denunciar aquela mulher, mas faltou-me a coragem. Fiquei no âmbito da
indignação e, por medo, não fiz nada. Pelo contrário! Em minha presente
imaturidade, decidi pelo pior: Eu ia comprar uma lixa!
Olhei para os
lados e notei que meu ônibus se aproximava do ponto e eu precisaria colocar um
fim na situação.
Coloquei a
mão no bolso para pegar as moedinhas com as quais compraria as lixas e
lembrei-me que nada tinha de valor, a não ser o cheque com o qual pagaria a
mensalidade de minha faculdade.
Naquele
instante, meu coração bateu mais forte.
Olhei para o
garoto, enquanto guardava meu material na mochila, e, recuando, comentei:
- Olha! Eu
até compraria uma de suas lixas, mas infelizmente eu me dei conta de que estou
sem dinheiro. Tenho que pagar a mensalidade da faculdade, tenho que pagar o
ônibus da ida para lá e depois o da volta para casa. Estou com fome e não tenho
se quer dinheiro para comer um lanche. Além de tudo isso, meus pais ainda estão
me ajudando porque não estou dando conta de tudo sozinho – e, completamente
envergonhado, ainda exclamei - dessa vez, não poderei lhe ajudar!
O garoto me
fitou.
Era como se
estivesse fazendo uma leitura sobre mim.
Por um
instante nada comentou.
Ficamos
apenas nos olhando, até que, em um gesto que me desconcertaria para o resto de
minha vida, ele enfiou a mão no bolso, retirando todas as moedas que tinha
dentro dele, dizendo-me:
- Tio, toma para
você! É para te ajudar, então!
POR FÁBIO ROBERTO CHAGAS DE SOUZA
Especialista
-no Ensino de Filosofia, em Gestão Escolar e
-em Liderança, Motivação, Gestão de Pessoas e de Equipes.
Atualmente, trabalha no Senac São Paulo como técnico de Desenvolvimento Profissional.
Mora em Taubaté, Estado de São Paulo
Nota do Editor:
Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.
Muito Bom esse Texto
ResponderExcluirMuito Bom o Texto pra Refletir
ResponderExcluirExcelente análise social em um estilo jornalístico e, acima de tudo, poético. PARABÉNS, meu Amigo Fábio Roberto. ABRAÇOS!
ResponderExcluirLuís Lago
São paulo 23/jan/2017
Emocionante ler esse relato. Imagino quantas vezes mais emocionante foi vivê-lo. Muito bom o texto e as reflexões que traz. Parabéns, amigo.
ResponderExcluirArrepiante! Parabéns, Fábio!!!
ResponderExcluirNão sei se hj acordei fragilizada, mas chorei. Lindo texto. Uma lição de vida! Parabéns! 👏👏👏😍🙏
ResponderExcluirArtigo gostoso de ler. Fácil de se enxergar no lugar e até mesmo tendo as mesmas reações. O quanto deixamos de ver ao enxergarmos somente nosso umbigo?
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