Autora: Kelly Cristina Lima Martins(*)
Em épocas em que a violência doméstica vem somando expressivos índices, olhares de profissionais de muitas áreas vem buscando ao longo das décadas, formas de amparo e salvaguarda da integridade física, moral e psíquica das vítimas dessa natureza de violência, deste modo, a formulação das políticas e estratégias de intervenção no âmbito da violência doméstica vem delineando formas de evitar que esse tipo de violência cresça ao longo das gerações.
A Lei 11.340/2006, intitulada Lei Maria da Penha, representou um avanço histórico na luta contra a violência de gênero e é regida por 46 artigos cuja finalidade é salvaguardar a integridade física e outros bens jurídicos da mulher e punir criminalmente seus agressores. Esta Lei apresenta mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher nos termos do parágrafo 8° do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar. A partir do primeiro artigo entende-se que a Lei foi criada para combater qualquer tipo de violência contra a mulher.
A lei não poderia ser mais didática. Primeiro define o que seja violência doméstica (LMP, art. 5°): qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral e patrimonial. Depois estabelece seu campo de abrangência. A violência passa a ser domestica quando praticada: (a) no âmbito da unidade domestica; (b) no âmbito da família; ou (c) em qualquer relação intima de afeto, independente de orientação sexual da vítima.
Apesar de e existir um desenvolvimento da estrutura psíquica masculina do ponto de vista cultural, eles cresceram tendo a ideia da superioridade masculina no âmbito doméstico e na subjugação da companheira como padrões corretos de comportamento.
Um problema que acontece com frequência é que os agressores, autorizados pela cultura de desigualdade entre homens e mulheres, não enxergam seus atos como violência, de forma que, muitas das vezes, por conta da desinformação, realmente desconhecem seu comportamento como conduta criminosa. Na verdade, vivenciaram desde a infância o mesmo comportamento dos pais e integralizaram psicologicamente esse modelo como normal.
Violência doméstica contra as mulheres é um fenômeno muito complexo. Muitas das mulheres vítimas são mães e, consequentemente, muitas crianças ficam expostas a situações de violência que podem ter consequências graves no seu desenvolvimento. Estudos dão conta dos danos gerados do fato de a criança ou o adolescente testemunhar episódios de violência entre seus pais ou pessoas próximas de si. É a chamada vitimização indireta. Essa criança, embora não tenha sido agredida fisicamente, é diretamente afetada pelo impacto da violência dirigida contra uma pessoa com quem mantém uma relação próxima, na maioria das vezes, a mãe.
Dados apontados no estudo "Um Rosto Familiar: a violência na vida de crianças e adolescentes", da Unicef, publicado em 2017, revelam que uma em cada quatro crianças menores de 5 anos, no mundo, ou seja, cerca 177 milhões, vive com uma mãe vítima de violência doméstica. No Brasil, conforme o relatório do Ligue 180 – Balanço 2016.1, mais de 80% dos filhos presenciaram ou sofreram violência junto com as mães. [1]
Neste sentido, faz-se necessário, portanto, a reestruturação da família fundamentada em relações mais simétricas entre homens e mulheres, entre pais e filhos, que possibilite mudança na conformação dos comportamentos sociais. Para tal, é preciso que tenha consciência de sua história de violência e que profissionais, informações e estímulos significativos ofereçam novos modelos de interação e inter-relações baseados em relações mais simétricas entre homens e mulheres, entre pais e filhos que desconstruam as representações ancoradas no poder de um e submissão do outro, como meio de permitir a construção de relações familiares respeitosas e mais saudáveis.
Estudos demonstram os danos que emergem do fato de a criança ou o adolescente testemunhar episódios de violência entre seus pais ou pessoas próximas de si. É a chamada vitimização indireta. Esse indivíduo, apesar de não ter sofrido nenhuma violência, é contagiada pelo impacto da violência dirigida contra uma pessoa com quem mantém uma relação próxima. A violência contra a mãe, nesses casos, é a mais comum forma de violência psicológica contra a criança.
Os impactos da violência direta também são sentidos na perpetuação do fenômeno da violência, levando a que, por meio de processos psíquicos interiorizados, ela seja reproduzida pela vítima indireta em outro momento de sua vida, o que faz com que os profissionais estudiosos do comportamento afirmem que a violência doméstica deriva de um “comportamento aprendido”, provocados pela internalização e aprendizagem de modelos violentos e papeis de gênero errôneos.
Pesquisas realizadas com agressores mostram um histórico de vida muito comum entre eles: "um percentual elevado dos futuros agressores foram anteriormente ou tem sido testemunhas destas condutas violentas que foram aprendidas durante os períodos de desenvolvimento e maturação do indivíduo."[2], daí o caráter transgeracional desse tipo de violência, que atinge os homens e as mulheres, embora por conta de fenômenos psíquicos diversos. Para os homens o que prevalece é a apreensão do comportamento agressivo; para as mulheres, o que elas aprendem diz com a submissão, com a obediência, com o conformar-se com o seu "destino".
Os prejuízos para os filhos ocorrem em todos os níveis: social, psicológico, emocional e comportamental, "afetando de forma altamente negativa seu bem-estar e seu desenvolvimento, com sequelas a longo prazo que, inclusive, pode chegar a transmitir-se por meio de sucessivas gerações. " [3]
Com efeito, os profissionais da intervenção social, especialmente psicólogos e assistentes sociais, apresentam um olhar menos limitado do fenômeno, questionando a divisão entre os conceitos de vítima direta e indireta, quando referidos às crianças inseridas em contextos familiares onde existe violência. Embora se entenda que no âmbito judicial, especialmente da justiça penal, a intervenção deva assentar em garantias, pelo que tem de ser provada a condição de vítima, considera-se que o fenômeno devia ser compreendido de forma mais ampla.
O combate à violência doméstica depende, fundamentalmente, de amplas medidas sociais, criação de políticas públicas e profundas mudanças estruturais da sociedade, sobretudo extrapenais, incentivado ideologicamente uma quebra de paradigma, discutindo essa temática, apontando o leque dos danos causados aos envolvidos, suas implicações legais , gerando um esforço conjunto na educação preventiva para diminuir a resposta punitiva.
Na abordagem do fenômeno, do ponto de vista da intervenção, sobrepõem-se duas instâncias: De um lado, os mecanismos de resposta à violência de gênero e, de outro lado, os serviços de proteção de crianças e jovens. Há, portanto, de considerar que o fenômeno deveria ser compreendido de forma mais ampla, como necessitado de um terceiro mecanismo cuja finalidade trataria da abordagem e discussões acerca de violência doméstica com crianças e jovens no âmbito da educação formal, através de atividades que incluam palestras, aulas lúdicas e trabalhos acadêmicos adequados ao nível de entendimento e aprendizado, tal abordagem consistiria em introduzir informações preliminares sobre violência de gênero em âmbito doméstico, o papel do Estado na atuação junto aos agressores e vítimas numa abordagem educativa e preventiva, visando introduzir na infância acadêmica informações para a desconstrução de estereótipos de gênero, ou seja, dos papéis nos meninos e meninas, potenciais agressores e vítimas de violência doméstica, afim de impactar positivamente esse índice nas próximas gerações.
REFERÊNCIAS:
[1] http://www.spm.gov.br/balanco180_2016-3.pdf
[2] CARRILLO DE ALBORDOZ, Eduardo. Aspectos clínicos y médico-legales de la violencia de género. In: FARIÑA, Francisca, ARCE Ramón, BUELA-CASAL Gualberto (eds.). Violencia de género: tratado psicológico y legal. Madrid: Biblioteca Nueva, 2015, p. 170;
[3] SEIJO MARTÍNEZ, Dolores. La violencia doméstica: repercusiones en los hijos. In: FARIÑA, Francisca, ARCE Ramón, BUELA-CASAL Gualberto (eds.). Violencia de género: tratado psicológico y legal. Madrid: Biblioteca Nueva, 2015, p. 120;
[4] De 2006 a 2020: A Evolução da Lei Maria Da Penha, Disponível em: https://www.educamundo.com.br/conteudo/ebook-lei-maria-da-penha?search=&device=c&matchtype=b&gclid=EAIaIQobChMIld3jpLve6gIVEoWRCh2jJAvYEAAYBCAAEgKnE_D_BwE
GUIMARÃES, Maria Carolina S. e NOVAES, Sylvia Caiuby. Vulneráveis.
Disponível: http://www.ufrgs.br/bioetica/vulnera.htm
Acesso: novembro/2018; e
Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 3 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
KELLY CRISTINA LIMA MARTINS
Bacharela em Direito pela Faculdade Maurício de Nassau/PB;e
-Pós graduada em criminologia e psicologia investigativa criminal pela UNIPÊ/PB.
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